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São atípicos, quase anormais, incríveis e também pouco credíveis — foram estes os adjetivos usados, alguns contraditórios, pelos especialistas ouvidos pelo Observador. Servem para classificar os resultados nos exames do secundário em 2020, com uma espantosa subida de médias, ano em que todas as escolas, sem exceção, viram as notas subir. Em ano de pandemia, com parte significativa das aulas dadas através de um computador, ninguém acredita que os alunos tenham aprendido mais e melhor, ao ponto de haver escolas que subiram a média em 5 valores. O cenário é ainda menos plausível se nos lembrarmos de que as falhas apontadas ao ensino à distância foram constantes ao longo do ano. As justificações para os bons resultados variam, consoante a pessoa ouvida, e a mais consensual tem a ver com a estrutura do exame.
Se há quem defenda que essa estrutura nova deveria ser para manter, há quem peça o contrário, por considerar que o instrumento de avaliação não foi fiável.
O que foi diferente nas provas? Com tanto tempo passado em casa, o risco de os exames terem perguntas sobre matéria que os alunos simplesmente não deram era grande. A solução do Ministério da Educação foi criar um bloco de perguntas opcionais, que se vai manter nos exames deste ano, permitindo aos alunos escolher a que perguntas preferiam responder. Uma outra alteração fez também diferença: os alunos podiam responder a todas as perguntas opcionais e só as mais bem cotadas contariam. Um jogo que, havendo tempo de exame suficiente para dar resposta a tudo, seria mais facilmente jogado pelos bons alunos, garantindo-lhes classificações mais altas.
O que nos dizem os rankings? Em 15 gráficos, perceba como andam as secundárias de Portugal
“Podemos achar que os alunos ficaram mais inteligentes e que os professores conseguiram transmitir melhor o conhecimento nas aulas, mas isso é pouco credível quando se diz que aquilo a que chamamos ensino à distância, que foi um ensino remoto de emergência, foi um flop. Depois temos exames a mostrar que, afinal, o desempenho dos alunos até foi melhor. Se é assim, teremos de dizer que o ensino online não foi tão mau”, ironiza João Marôco, do Instituto Superior de Psicologia Aplicada. O professor, que no Instituto de Avaliação Educativa (IAVE) coordenou estudos internacionais de avaliação de alunos como o PISA e o TIMSS, considera que os exames de 2020 não foram sérios.
Para manter ou para esquecer? As opiniões dividem-se
“Quem olhou para os novos critérios acharia estranho que não se vissem estas subidas. Melhor que isto era impossível. Quando só as melhores respostas contavam… isto é brincar com coisas sérias, é tentar passar a imagem política de que a escola está a responder às necessidades, quando não está”, argumenta João Marôco, que preferia não ver o exemplo repetido.
“O mecanismo de avaliação não foi sério, não deve ser repetida esta inovação avaliativa em que só avaliamos os alunos na matéria que eles sabem. A prova não foi séria para avaliar o real conhecimento dos alunos: os resultados não são comparáveis com resultados anteriores, nem sequer refletem o verdadeiro conhecimento dos alunos”, acrescenta o professor do ISPA.
Falando pelas associações de pais, Jorge Ascenção encara a questão de outra maneira e recusa falar em facilitismo: “Os exames foram elaborados no pressuposto de que não vivemos um ano normal e de que não se devia prejudicar os alunos que viram a sua educação condicionada. É óbvio que foi mais fácil, mas também foi mais difícil aprender.”
Apesar disso, não tem dúvidas de que as novidades na estrutura dos exames justificam a subida de médias. O que os dados do Ministério da Educação mostram é que não houve uma única escola em que as médias globais dos exames tenham descido. A subida foi generalizada, tanto em escolas privadas como públicas, e na maioria (343 em 538 com dados disponíveis para os dois anos) a subida foi de 2 valores. A segunda maior fatia foi para o aumento de 3 valores (121 escolas) e a terceira para o aumento de 1 único valor (57 escolas).
Para além disso, apenas duas escolas no ranking surgem com média negativa (abaixo de 9,5), quando o ano passado eram 93.
“Essa subida atípica, quase anormal, tem a ver com a própria formulação dos exames, já que os alunos podiam escolher as perguntas com as quais se sentiam mais à vontade. A probabilidade de errar era menor e, para além disso, mesmo que respondessem a todas, só contavam as melhores. Os próprios critérios favoreceram a subida de nota”, acrescenta Jorge Ascenção, presidente da Confap, Confederação Nacional das Associações de Pais.
A Escola Básica e Secundária Miguel Torga, em Bragança, foi a que teve a subida mais elevada do país, de 5,3 pontos, passando de um valor quase negativo para uma média acima dos 15 valores (9,75 para 15,07). Neste estabelecimento de ensino, há outra subida que impressiona: em 2019 encontrava-se em 399.º no ranking do secundário (em 539 escolas) e, este ano, está em 56.º lugar, sendo a terceira escola pública mais bem cotada. Apesar de haver uma queda no número de exames realizados, não é significativa, descendo de 97 provas para 78. De 2017 para cá, as notas internas atribuídas pela escola aos seus alunos estão alinhadas com as notas internas atribuídas pelas outras escolas do país a alunos com resultados semelhantes nos exames. Ou seja, não tem por hábito inflacionar notas.
Assim que se conheceram os resultados dos exames, em agosto, ficou evidente o padrão de subida: as notas da 1.ª fase melhoraram (e muito) em relação a anos anteriores. Matemática Aplicada às Ciências Sociais foi a única exceção com a média a cair 1,5 valores. Já a Matemática A, o crescimento foi de 1,8, passando a média de 11,5 para 13,3 valores. Português teve a subida menos significativa (0,2) e a mais alta (3,3) sentiu-se em duas disciplinas: Geografia A e Biologia e Geologia.
Lurdes Figueiral, presidente da Associação de Professores de Matemática, defende que a estrutura da prova foi um fator muito positivo, com clara influência nos resultados. Mas, ao contrário de João Marôco, acredita que devia manter-se no futuro. “A estrutura do exame de 2020 permitiu avaliar aquilo que os alunos melhor sabem e o que aprenderam em vez de avaliar o que eles não sabem. Devemos discutir qual a função do exame: se é para seriar alunos para o ingresso no ensino superior ou se é para avaliar o que aprenderam.”
“Só se deve perguntar o que se ensina”, acrescenta, por seu lado, Jorge Ascenção.
João Marôco discorda frontalmente: “A lição deste ano é óbvia: a avaliação tem de ser séria, tem de ser válida e tem de avaliar o currículo como ele é ensinado, não como é preconizado.”
No top 50 não há um único lugar para as escolas públicas
O domínio dos colégios nos primeiros lugares é ainda mais vincado do que em outros anos. Em 2018, os primeiros 28 lugares eram para escolas privadas. No ano passado, esse número subiu para 36. Agora, os 50 lugares cimeiros na tabela que ordena escolas pelas médias dos exames são todos do ensino particular e cooperativo.
Nuno Crato, ministro da Educação entre 2011 e 2015, frisa que os dados deste ano “são particularmente limitados, pela situação que se viveu e pelas decisões que se tomaram”, mas podem ser retiradas algumas conclusões. “Há alguns sinais preocupantes. Um deles é a distância entre o desempenho dos estudantes das escolas privadas e públicas”, sublinha.
“Falando-se tanto da importância do ensino público e diabolizando, por vezes, o ensino privado, como é possível que a distância entre os dois sistemas se mantenha e até aumente, nomeadamente nas melhores escolas?”, refere o antigo ministro do Governo de Pedro Passos Coelho (PSD).
Nuno Crato defende que “os rankings são importantes”, não por si só, mas pela informação que fornecem sobre o sistema educativo, sendo “um direito dos pais, das famílias e dos cidadãos perceber como evoluem as nossas escolas, de forma a poder atuar sobre essa realidade, para a melhorar”. E a melhoria, depois dos mais recentes resultados, tem, para si, um caminho traçado à vista.
“O importante não será criticar as escolas privadas, mas sim estimular o ensino público a melhorar.” E isso, defende, só pode ser feito aumentando a sua autonomia, valorizando um currículo ambicioso e promovendo uma avaliação sistemática. “Não é o que se tem feito. Dever-se-iam tirar lições e apoiar as escolas e professores, acarinhar a ambição curricular e a avaliação, nas suas várias formas, nomeadamente em aferições sistemáticas e em exames. Precisamos ainda de mais sinais para o perceber?”, questiona o antigo ministro.
Ana Balcão Reis, professora associada da Nova SBE, universidade que há cinco anos trabalha os dados do Ministério da Educação em parceria com o Observador, alerta também para a importância de ter dados mais completos. “O lugar no ranking por si só não permite avaliar a qualidade de uma escola”, mas contribui para uma “maior transparência e prestação de contas” do que se passa nas escolas.” No entanto, acredita que esta informação deve ser complementada com outros indicadores, como os Percursos Diretos de Sucesso e o novo indicador de Equidade.
“Para qualquer destes indicadores ser produzido é fundamental haver uma avaliação externa às escolas como exames nacionais realizados por todos os alunos e é preciso também poder conhecer o que é a realidade da população de cada escola. Assim poderemos compreender quais as escolas que mais estão a contribuir para as aprendizagens dos alunos, tendo em conta o meio social em que estão inseridas”, conclui.
Mesmo só com bons alunos, os padrões de sempre mantêm-se
“É escandaloso o quão bem os alunos se saíram nos exames”, diz Rodrigo Queiroz e Melo, que defende que seria injusto fazer um exame normal em ano de pandemia. “Este é um exame muito mais interessante, porque em vez de se andar à procura do que o aluno não sabe, procura-se o que ele sabe, mesmo que isso, admito, permita ter uma melhor nota”, sublinha o presidente da AEEP, a associação que junta escolas, colégios, externatos e internatos de ensino particular e cooperativo.
“São resultados incríveis para quem esteve um semestre em casa, com pandemia. De março em diante, os alunos do secundário não voltaram à escola, a não ser na reta final de preparação para os exames. E o que vemos? A Matemática A mais de metade teve acima de 150 pontos, ou seja, tiveram uma pontuação brutal sem ir às aulas”, argumenta Queiroz e Melo. “Se calhar, em vez de ter 45 mil alunos na sala de aula, só precisava de ter 20 mil para nos concentrarmos nos que não estão a aprender matemática. O modo como lidamos com os alunos do secundário é ineficiente e irrelevante”, conclui o professor da Universidade Católica.
Para si, a estrutura do exame foi “mais inteligente e deu-nos resultados mais inteligentes”, esperando que assim se mantenha no futuro. Queiroz e Melo reconhece que a mudança foi um fator de peso na melhoria das notas, algo que seria de esperar também pelo facto de que só os alunos que pretendiam ingressar no ensino superior fizeram exames e em menor número do que noutros anos. “Menos exames deu aos alunos mais tempo para se concentrarem e até isso é mais inteligente. Não tiveram de fazer tudo a 200 à hora. A outra explicação era de que o ensino online correu excepcionalmente bem e sabemos que não foi o que aconteceu.”
Falando pelos diretores das escolas públicas, também Filinto Lima acredita que estrutura da prova aliada a alunos mais focados num projeto de vida que passa por prosseguir estudos académicos foi determinante. “São duas explicações que podem ser metidas no mesmo cesto: exames feitos por alunos que queriam ingressar no ensino superior e a mudança de paradigma na construção da provas que indiciavam, desde logo, que as notas poderiam subir”, defende.
No global, vê, em simultâneo, o copo meio cheio e meio vazio. “É, ao mesmo tempo, uma boa novidade e uma má novidade. Boa porque os resultados nos exames foram superiores. Má porque indicia que se continua a transformar o ensino secundário numa mera preparação para os exames, o que é muito redutor”, diz o presidente da ANDAEP, Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas.
Por norma, a associação que representa colégios não comenta a dicotomia privado versus público, por considerar que não deve ser esse o centro do debate sobre educação. Este ano, é difícil escusar-se a comentar a diferença.
“Os exames tiveram imensos filtros e foram feitos pelos bons alunos. Se o padrão é igual ao de outros anos, sem os mais fracos, algo está mal no ensino público, o que, na minha opinião pessoal, não da AEEP, tem a ver com o concurso de professores. A grande diferença entre público e privado é a comunidade dos adultos”, defende o coordenador do Mestrado em Ciências da Educação da Católica. “Quem tem filhos a frequentar o secundário numa escola privada tem a expectativa de que vão seguir para o ensino superior. Os muito bons alunos irão entrar sempre, mas quanto aos outros, os menos bons, o que vemos é que o privado puxa mais por eles do que o público e acaba por ser mais democrático nas competências intelectuais”, conclui.
Tanto para Filinto Lima como para Queiroz e Melo era importante ter um debate sério sobre o modelo de ingresso no ensino superior.
Alunos da privadas estavam a postos para o ensino online
“Este ano, os rankings mostraram a grande diferença entre a capacidade logística das escolas privadas e públicas”, defende João Marôco, dizendo que nas escolas públicas o ensino à distância funcionou mal, embora tenha havido algumas com boas experiências.
“O diferencial entre escolas públicas e privadas resulta essencialmente de as privadas terem sido capazes de abraçar o ensino remoto, uma vez que muitas já usavam as novas tecnologias do ensino. Quando foi preciso migrar a 100% para o ensino à distância, professores e alunos já estavam familiarizados e a transição foi mais suave”, defende o professor do ISPA.
“Outro fator importante: os alunos de escolas privadas, por pertencerem normalmente a uma classe socioeconómica mais alta, têm maior acesso às tecnologias de informação, à banda larga, a tablets e computadores melhores”, acrescenta.
Na rede pública, a falta de equipamento para aceder às aulas à distância foi um problema bem real. Os computadores prometidos pelo primeiro-ministro para todos os alunos da escola pública e que deveriam ter sido distribuídos no início deste ano letivo, continuam por entregar. Com 1,2 milhões de alunos na rede de ensino do Estado, foram distribuídos até agora cerca de 450 mil aparelhos, estando a promessa de António Costa longe de ser cumprida.
“Às escolas públicas, apesar das promessas, a parte de computadores que chegou já chegou tarde”, acrescenta João Marôco, lembrando que muitos computadores não estavam sequer preparados para entrega imediata aos alunos, havendo trabalho acrescido para os professores de TIC (Tecnologias da Informação e Comunicação), a quem coube tratar de formatações e instalação de programas.
Sobre esta diferença visível entre público e privado, Filinto Lima volta a insistir numa ideia que defende há anos: é importante ter um amplo debate sobre o ingresso ao ensino superior e deixar de ver o secundário como uma fase de preparação para exames, e nada mais. “As escolas públicas não têm obsessão de treino de penáltis, que são os exames, preocupamo-nos a preparação integral dos alunos para o jogo da vida. Esta má altura da nossa vida, de pandemia, é uma oportunidade para fazermos uma reflexão sobre o que andamos a fazer no secundário.”