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Aconteceu em 2019, mas a pandemia meteu-se pelo meio. Assim sendo, adiou-se a cerimónia. Em maio desse ano, a notícia alegrou quem já se alegrava antes, mas com o trio mágico do artista: olhos azuis, voz incisiva, versos feitos de encanto. Eis então o Prémio Camões, o mais importante da língua portuguesa, para Chico Buarque de Hollanda. Atribuído anualmente em todo o espaço lusófono, distingue não um livro, mas uma obra.
Chico Buarque, cuja criação na música será mais conhecida do que a da literatura, começou a fazer caminho na indústria livreira em 1974, com Fazenda Modelo. Seguiram-se Chapeuzinho Amarelo (1979) e A Bordo do Rui Barbosa (1981), com ilustrações de Vallandro Keating. A partir daí, vieram os romances — e os livros que viajaram também para Portugal: Estorvo (1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003), Leite Derramado (2009), O Irmão Alemão (2014) e Essa Gente (2019). Em 2021, foi publicado Anos de chumbo, um livro de contos. Todos os livros de Chico Buarque a partir de Estorvo, inclusive, têm sido, nos últimos anos, publicados em Portugal pela Penguin, chancela Companhia das Letras, no que parece uma grande aposta no autor, estando agendada para a próximo mês a publicação de uma edição especial de Leite Derramado, com ilustrações de Juan Cavia.
Assumamos as evidências: não terá chegado a surpreender a decisão do júri, mesmo para quem conhece mais Chico Buarque em palco e nos discos. Nas palavras dos decisores, que destacaram o “carácter multifacetado” da produção de Buarque, a obra do brasileiro contribuiu “para a formação cultural de diferentes gerações em todos os países onde se fala a língua portuguesa”. Antonio Cicero, que fazia parte do júri, afirmou ainda que a distinção era “um reconhecimento pela poesia” de Buarque “nas letras de música, que também são literárias”, citando “Construção”, música lançada em 1971, que Cicero considerou “um poema até raro de se fazer”. A decisão terá sido unânime e, assim, a 31ª edição do prémio voltou às mãos de um brasileiro, três anos após a premiação de Raduan Nassar. Antes deste, já 11 brasileiros tinham recebido o prémio Camões, instituído em 1998: João Cabral de Melo Neto (1990), Rachel de Queiroz (1993), Jorge Amado (1994), Antonio Candido (1998), Autran Dourado (2000), Rubem Fonseca (2003), Lygia Fagundes Telles (2005), João Ubaldo Ribeiro (2008), Ferreira Gullar (2010), Dalton Trevisan (2012) e Alberto da Costa e Silva (2014). Em 2022, o prémio foi para Silviano Santiago.
Quatro anos após a atribuição do prémio a Chico Buarque, chega finalmente a data de entrega do galardão, momento com existência física e a presença do próprio em Portugal (antes da série de concertos que tem agendados para Lisboa e Porto no início de junho). Esta segunda-feira, dia 24 de Abril, o autor e cantor estará no Palácio de Queluz, numa iniciativa conjunta entre os presidentes das repúblicas de Portugal e do Brasil. Hora certa para um reencontro com o Chico Buarque escritor.
Nestas páginas tudo é emoção
Estorvo é o primeiro romance de Chico Buarque e foi vencedor do prémio Jabuti. É assim que se começa, pedindo pouca licença. Para escrevê-lo, o agora autor parou a carreira musical durante treze meses. Escreveu o livro, que acabou por quase não ser lançado, uma vez que o editor Luiz Schwarcz perdeu a disquete com o texto original. Uma impressão anterior em papel salvou o romance e eis então a publicação: a edição de 30 mil cópias esgotou em dois dias.
A ideia de “entrada a pés juntos” está na cabeça do leitor à medida que o romance vai deslizando à sua frente. Logo a abrir, ali está o narrador a dormir quando ouve a campainha. Espreita pelo olho mágico e, do outro lado, está um homem engravatado à sua procura. Não o reconhece, a campainha insiste, o olho mágico vai distorcendo as feições do outro lado. O narrador entra numa espécie de pânico, foge de casa e cai numa espiral obsessiva.
Nesta primeira incursão, Chico Buarque andou no território perigoso que marca a fronteira entre realidade e alucinação. Para o leitor, o início de um e o fim do outro também não é claro, e para isso muito conta a opção pela escrita na primeira pessoa. O olho mágico acaba por ter um peso quase metafórico, uma vez que, na narrativa, separa a visão deformada que o narrador passa a ter da vida, numa mistura permanente entre familiaridade e estranheza.
Desta primeira experiência de Chico Buarque na área do romance, sobressai uma sensação: tormento. E, em simultâneo, uma exigência para com a prosa, cuidada, escorreita, e um humor que tem capacidade de dar umas alfinetadas a quem lê.
Depois, veio Benjamim, mais um ano de trabalho de Chico Buarque. Na hora da entrega do livro à editora, faltava-lhe a última frase, que serviria para matar a história. Com uma prosa voltada para as imagens, quase guiada por elas, o livro tem um cunho cinematográfico que o faz diferir do anterior. Num estado de quase encantamento, o leitor segue por uma experiência vertiginosa, em que a prosa é tratada de forma musical, inebriando via lirismo. Aqui, o suspense dita a experiência de leitura, e a história, desta vez narrada na terceira pessoa, permite ao leitor entrar em várias cabeças, ver o mundo por mais do que um par de olhos. Este Benjamim, ao contrário da ideia de “benjamim” como o “filho preferido”, aparenta não ser o preferido de ninguém. Na primeira frase do livro, outra vez a pés juntos, ei-lo diante de um pelotão de fuzilamento.
Ao acompanhar Benjamim Zambraia, o leitor não apenas se mete dentro da cabeça dele, como passa a conhecer a sua perturbação. Buarque já traz elementos quase omnipresentes à sua prosa, como o lirismo e a ideia de embate entre realidade e invenção. O tumulto interior está sempre lá a marcar a construção da psique das personagens.
Neste caso, para isso muito ajuda a relação conflituosa de Benjamim com o passado: a mulher da sua vida morreu, cabe-lhe procurá-la noutra, fingindo que a encontra. Nesse movimento, de procura, de impulso, está o inescapável vício no passado, a sua incapacidade de viver sem estar refém da efemeridade, da coisa irrecuperável. E, como esse passado é sublimado, santificado, parece sempre que o melhor já lá vai, que, contra a beleza e a felicidade da juventude, só resta a lassidão de viver o que lhe falta.
Ao construir a personagem, Chico Buarque vai brincando com a ambiguidade. Há elementos de alucinação, há outros de absoluto desalento. No fim, tudo é emoção veiculada por uma prosa rápida que desorienta o leitor.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre Chico Buarque.
Em Budapeste ou no Rio, um retrato brasileiro
Com Budapeste, se dúvidas houvesse, Chico Buarque confirma-se como escritor. Aliás, só um escritor para escrever sobre escritores. Aqui, José Costa é um escritor-fantasma, pelos vistos invulgarmente talentoso. Trabalha na Agência Cultural Cunha & Costa, de que é sócio, e o que faz é sempre a pedido e anónimo. Ali, tudo conta: cartas, artigos, discursos e até livros. A prosa é dele, a assinatura é de outro. Estando agora a terminar uma biografia romanceada, sente o apelo de escrever literatura a sério. Ao voltar de um congresso de escritores-fantasma, José dá por si a fazer uma escala imprevista em Budapeste, e a partir daí chega o encanto, tanto com a cor da cidade como com a língua.
Casado com Vanda, que vive no Rio de Janeiro, Costa passa a ter Kriska em Budapeste, e passa a viajar entre uma cidade e outra. De repente, eis Chico Buarque a sair do quotidiano para se meter novamente no terreno das fronteiras, com uma personagem entre duas vidas, duas cidades e duas línguas, no que literariamente é desenvolvido como um impasse. O romance não será tanto uma questão de enredo quanto de labirinto, e Chico Buarque vai usando um estilo falso-leve para ir encaminhando o leitor para onde quer. Budapeste ganhou o prémio Jabuti e o IV Prémio Passo Fundo Zaffarie Bourbon de Literatura.
E como se escreve e descreve a versatilidade de Chico Buarque? Com Leite Derramado, por exemplo, que oferece um longo e magnífico monólogo. Aqui, temos um homem numa cama de hospital, no que aparentam ser o seus momentos finais. É membro de uma família tradicional brasileira, e a sua longa conversa, dirigida à filha, às enfermeiras e a quem mais estiver por perto, conta a história da linhagem desde os ancestrais portugueses. Com isso, eis a história de séculos do Brasil, que conta com escravatura, um barão do Império, a independência de Portugal e um senador da Primeira República. A voz que narra é singular, bem trabalhada, sem solavancos, e isto apesar do discurso desarticulado, propositado, que serve para compor a verosimilhança narrativa.
À medida que o leitor lê, também ouve, num trabalho exímio de transformação de escrita em voz oral. Num cenário aparentemente confinado – a cama de um hospital –, a cabeça viaja com o poder da literatura, e eis de repente a história do Brasil como pano de fundo e personagem no mesmo movimento, constituindo a narrativa ao invés de somente a possibilitar. Da sua cama, o narrador vai dando um retrato panorâmico do Brasil, não apenas pelos séculos de história, mas pelo que conta do mundo, da corrupção política, dos preconceitos de classe, de um país erguido na desigualdade entre os sexos.
Partindo do que aparentemente era micro, Chico Buarque mostrou o macro, num romance coeso e de múltiplos méritos, sedimentando mais o seu percurso como autor, agora com um romance que sabe a saga familiar. E, como a vida não é apenas o desenrolar dos grandes acontecimentos históricos, ainda temos aquela pequena dor à portuguesa – aqui à brasileira – em que o homem vai tocando, aqui e ali, na paixão por uma mulher, vivida a meio gás. Matilde acaba também por se tornar inesquecível, com os seus toques trágicos de Madame Bovary, com o historial de ciúmes que lhe deu um fim antes do tempo. O romance venceu o Prémio Portugal Telecom de Literatura e o Prémio Jabuti.
Essa verdade e essa gente também são as de Chico
O Irmão Alemão saiu em 2014 e, desta vez, há uma mistura entre elementos autobiográficos e elementos fictícios. Em causa estará um — precisamente — irmão alemão de Chico Buarque, filho de Sergio Buarque de Hollanda, que no livro é Sergio de Hollander. O pai do narrador, e do autor, viveu na Alemanha, e aqui temos a busca pelo irmão que nunca chegou a conhecer.
A maior parte do enredo desenvolve-se durante a juventude do narrador. São os anos da ditadura militar no Brasil, e ali temos o quotidiano da família. O pai é um intelectual que passa os dias a ler; a mãe dedica-se à família e organiza a biblioteca do marido. Há ainda dois filhos, sendo o narrador o mais novo. Como o pai, interessa-se por livros – e passa a interessar-se pelo irmão ao ver uma carta vinda da Alemanha dentro de um.
Como noutros exercícios literários de Chico Buarque, aqui temos a obsessão a marcar o ritmo à prosa. Há um ritmo quase delirante, totalmente obsessivo, nesta procura de um irmão desaparecido. A realidade e o devaneio misturam-se e, para os leitores incautos, é possível que biografia e ficção se entrelacem, que se creia no que é inventado, que se duvide do que é certo, que se fique perdido no jogo que a literatura permite. O irmão alemão acaba por ser, assim, mais uma prova da versatilidade do autor.
Facto: Essa Gente já não terá sido matéria para sustentar a atribuição do Prémio Camões, já que foi publicado a posteriori. Mas as suas páginas fazem-se de uma personalidade literária construída também com tudo o que veio antes. Aqui temos, mais uma vez, um escritor no cerne da narrativa. Ao contrário do anterior, este existe em plena decadência, perante uma crise financeira e outra emocional. À sua volta, a decadência é outra: é o colapso do Rio de Janeiro. Voltando para o Brasil coetâneo, ainda pré-segunda eleição de Lula, o romance existe sob a forma de uma tragicomédia.
Manuel Duarte, o escritor, fez um romance histórico que virou moda nos anos 1990. Agora, a vida é outra: um deserto criativo, a perdição sentimental. De um lado, há dívidas que lhe dão cabo do bolso; de outro, um filho de quem tem de cuidar; de outro ainda, várias ex-mulheres. No meio disto, há a vontade de um novo livro para meter sal na vida.
Se o Leblon serve para uns passeios em que se procura uma ideia, o Rio de Janeiro, num todo, aparece como várias ideias a cair em catadupa. Por todo o lado, há conflitos sociais, uma violência mais escancarada, um cenário em que o presente parece afundar-se em convulsões. Mais uma vez, no que já parece um traço característico da prosa de Chico Buarque, há a fronteira difusa entre vida e delírio, e um ritmo em jeito de vertigem que garante a leitura até ao fim.
A literatura como palco para a ficção da vida real
A inconfundível voz de Chico Buarque, que tantos discos e concertos deu, tem outras notas na literatura. Como poucos, o autor brasileiro sabe manejar e manipular a língua portuguesa, indo a vários terrenos, enlevando o leitor. O Prémio Camões, que visa estreitar os laços culturais entre os vários países da lusofonia, sendo instituído pelos governos de Portugal e do Brasil, tem ainda o intuito de enriquecer o património cultural em português. Para tal, vale o conjunto de uma obra.
E Chico Buarque, cujo trabalho na música também tem o seu quê (gigante) de literário, sendo aqui possível fazer-se o paralelismo com o Nobel de Literatura dado a Bob Dylan, vai além do americano porque construiu um conjunto de romances fortes, bem doseados e surpreendentes, tanto pelos rumos das narrativas como pela aparente facilidade com que o músculo da escrita é usado para levar o texto avante.
Cada novo livro de Chico Buarque é uma prova da sua versatilidade. Ainda assim, os traços comuns são evidentes, e nota-se que, da parte do autor, há, para lá de uma tendência quase lírica, de um tratamento da palavra quase musical, uma predilecção pela ideia de semi-perdição das personagens, que vivem sempre às margens de si mesmas, desorientadas por elas próprias ou pela vida, num conflito mais psicológico do que real. Assim, o autor brasileiro mostra o seu pendor para usar o terreno da literatura para jogar com a ambiguidade, e para usar o terreno da literatura como palco para a força da ficção na própria vida. No caso, é a alucinação que ganha corpo, e é esta que vai esbatendo as fronteiras dentro da própria composição literária.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia