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As séries, os filmes e os julgamentos que ninguém escreveu: o que é que os super ricos têm?

Porque é que vemos os helicópteros de "Succession", os "problemas" de "Billions", porque é que vamos ao tribunal com Gwyneth ou Johnny? Porque queremos escapismo, mas também queremos vê-los perder.

Uma das mais manifestas demonstrações da quantificação de tudo — atividade que é um sub-produto da era da Internet 2.0 e do Capitalismo de Dados — é a proliferação de listas de “Melhor de” pela “www” fora. Sabem do que estou a falar: é quase impossível navegar pela web, clicando aleatoriamente em links e caixinhas e bonequinhos e símbolos, sem ir parar, ao fim de trinta segundos, a conteúdos com títulos tão diversificados como “Os 10 Melhores Pratos Para Comer em Portugal”, “As 10 Mais Fantásticas Praias da América do Sul”, “Os Melhores Golos de Calcanhar da História da Liga dos Campeões”, sendo que no último caso trata-se de um vídeo de um só golo: o de Madjer, ao serviço do FC Porto, contra o Bayern, no estádio Prater, em Viena, maio de 1987.

Vivemos na Era Dourada da Televisão, que se metamorfoseou em Era Dourada do Streaming, sendo ambas parte da Era Dourada das Séries: e estamos nessa era desde que, por um mero acaso, “Seinfeld”, “Os Sopranos” e “The Wire” surgiram, num intervalo de tempo razoavelmente curto para alguém (um americano, certamente) ter visto nisso um sinal: o cinema morreu, agora a GRANDE ESCRITA está na televisão.

Desde o dia em que essa afirmação foi proferida até hoje, não passa uma semana sem que uma série seja proclamada a melhor de sempre e oh-tão-melhor-do-que o cinema que se faz hoje em dia – até porque, dizem-nos, o cinema morreu (Asghar Farhadi, Abdellatif Kechiche e Bong Joon-ho riram-se). E desde esse dia que A Internet se entretém a fazer listas como As 20 Melhores Citações de Sempre de Séries de TV.

Não há nenhum dever moral em resistir ao ímpeto de fazer listas e reduzir tudo (argumento, atores, realização) a listas, mas podemos enquadrá-las ou, pelo menos, retirar-lhes a pompa: se eu disser que “It’s like Jaws… if everyone worked for Jaws” é uma das melhores frases da primeira metade da temporada 4 de “Succession” (que têm estreado um por semana desde há um mês), não estou a fazer clickbait, mas apenas a realçar, de forma resumida, a capacidade que um argumentista teve de, com uma frase, iluminar uma série, simbolizar qual o cerne da mesma – e, no caso, o que é trabalhar para um bully rico.

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O que raio podemos ter em comum com estas pessoas, que se deslocam de jato privado e têm empregados só para lhes trazer o sabonete ao banho?

Macall Polay

A cena acontece no segundo episódio, quando o primo Greg (aquela espécie de lapa que tenta compensar a sua falta de qualidades distintivas com o recurso a uma espécie de atitude submissa para com os familiares ricos) diz a Tom (marido de uma das possíveis herdeiras da fortuna de Logan Roy, o dono da Waystar, uma cadeia de media)… o primo Greg, dizia eu, entra com Tom na sala da ATN (uma das três networks da família Roy), olha para aquelas pessoas todas e diz-lhe:

“It’s like Jaws… If in Jaws everyone worked for Jaws”.

Um pouco de trivia geek: Greg está a referir-se ao filme “Tubarão”, no original “Jaws”, de Spielberg (não por coincidência, o filme que encerra a época do cinema de autor e que inaugura o cinema de blockbuster e a transformação dos estúdios em corporate businesses); o tubarão de “Jaws” não se chamava “Jaws” (chamava-se Bruce, o nome do advogado de Spielberg); mas se Greg usasse o nome Bruce ninguém iria perceber a piada; usando “Jaws”, toda a gente chega lá: trabalhar diretamente para este tipo de rico é como se as pessoas na praia de “Jaws” fossem empregados do tubarão.

O que nos leva a uma simples pergunta: porque é que isto nos interessa? Porque é que nos interessa a vida dos ricos, a roupa dos ricos, o drama dos ricos, o mal que os ricos causam à sua volta e a si mesmos? Porque é que gastamos algum do nosso tempo com séries como “Succession” ou “White Lotus” ou “Billions”, ou filmes como “Triângulo da Tristeza” ou “Parasitas”, ou vemos e discutimos e temos certezas acerca de julgamentos como o de Gwyneth Paltrow ou Johnny Depp? O que raio podemos ter em comum com estas pessoas, que se deslocam de jato privado e têm empregados só para lhes trazer o sabonete ao banho e possuem mais casas do que eu tenho calças?

Há uma diferença formal entre os casos de Gwyneth Paltrow / Johnny Depp e os restantes que mencionei: a primeira situação é feita de casos reais de pessoas reais; a segunda é ficção. E por mais que a ficção queira, nunca poderá chegar ao grau de delírio da vida real. Depp e Paltrow são super-estrelas – e mesmo quem está a marimbar-se para as super-estrelas já as viu algures numa revista no dentista, quando ficámos sem bateria no smartphone e não havia mais nada para ler.

GettyImages-1249036029 Johnny Depp & Amber Heard Defamation Trial Continues

Porque é que vemos, discutimos e temos certezas acerca de julgamentos como o de Gwyneth Paltrow ou Johnny Depp?

GC Images

Quando uma série começa, não é certo que venha a ter fãs ou atenção dos media; quando Paltrow ou Depp se levantam do sofá, isso gera cliques. E quando se levantam do sofá para se dirigirem para um tribunal, isso gera milhões de cliques diários – mais ainda quando se descobre que ou batiam na mulher ou a mulher batia neles ou estavam bêbedos e drogados quando estavam a tomar conta dos filhos ou atropelaram alguém a esquiar ou foram atropelados por alguém a esquiar e em nenhum destes momentos lhes ocorreu resolver a contenda de forma civilizada, dividir ao meio os bens (que são mais do que suficientes para viverem uma vida inteira sem chatices), passar um cheque ao esquiador.

Outro cenário trágico real, aliás, já mencionado: estamos no dentista, não há bateria no smartphone, somos obrigados a pegar numa revista cor-de-rosa para passar o tempo – e ficamos a saber que a atriz X comprou uma casa na Riviera, remodelada pelo arquiteto Y, casou com o desportista/comediante/entrepreneur W. A casa é linda, os miúdos fazem potes em barro e contactam com a natureza e, apesar do dinheiro e da fama, o ator só quer ser o seu melhor “eu”.

E depois está em tribunal porque bateu na mulher ou ela lhe bateu e aparentemente estão sempre ambos bêbedos e drogados. Isto mexe connosco ao nível de várias camadas do subconsciente: por um lado, quando abrimos aquelas revistas e vemos as casas destas pessoas, gostaríamos de ter uma casa assim, a conta bancária deles, os filhos perfeitos deles, andar sempre vestidos de linho e passar o dia a fazer potes de barro e yoga e sermos o nosso melhor “eu”.

Na nossa relação com os ricos coexistem – muitas vezes em confronto – essas duas dinâmicas: a aspiracional (queremos ter aquela conta bancária, aquelas casas, aquelas roupas) e a de conforto (queremos que aquelas pessoas não estejam sempre num patamar superior ao nosso e traz-nos conforto saber que afinal os ultra-ricos também têm a cabeça preenchida de problemas, como nós).

Mas talvez não haja admiração sem inveja – e do mesmo modo que gostaríamos de ter o que eles têm, (arrisco que) perversamente sentimos um certo prazer em saber que uma pessoa que vive numa bolha, rodeada de gente que só lhe diz “sim”, a quem não falta nada, não tenha afinal uma vida assim tão perfeita. Não estamos propriamente a desejar-lhes mal – estamos só a querer que tenham problemas, como todos os outros têm problemas, como nós temos problemas.

Na nossa relação com os ricos coexistem – muitas vezes em confronto – essas duas dinâmicas: a aspiracional (queremos ter aquela conta bancária, aquelas casas, aquelas roupas) e a de conforto (queremos que aquelas pessoas não estejam sempre num patamar superior ao nosso e traz-nos conforto saber que afinal os ultra-ricos também têm a cabeça preenchida de problemas, como nós).

Poucas séries exploraram isso tão bem como “Succession”. “Billions” é trash TV para gente sofisticada: os problemas dos ricos vistos do ponto de vista da soap opera “de qualidade” — e por “de qualidade” refiro-me ao tipo de conteúdo suficientemente conhecedor da história dos conteúdos para saber criar uma personagem, escrever bons diálogos, filmar, mas que decidiu apelar aos instintos primários dos espectadores e não tem vergonha disso. “Succession” é mais complexa: quando começa, Logan Roy (o magnata dos media que está no centro da narrativa) já está naquela idade em que tem de decidir qual dos filhos o sucederá à frente da Waystar, o conglomerado de media que criou.

"Billions" é 'trash' TV para gente sofisticada: os problemas dos ricos vistos do ponto de vista da 'soap opera' “de qualidade”

Cada um dos filhos tem razões para se afastar do pai: Logan é um bully (e, insinua-se, batia nos filhos), qualquer um deles pode vender a sua parte aos outros e com isso ganhar uns milhares de milhões e nunca mais ter chatices na vida. Mas crescer sob a égide de um bully tem as suas consequências: os filhos tornam-se simultaneamente revoltados contra o pai, mas eternamente dependentes dele; podem desprezar o seu poder e a forma como ele o usa, mas aprenderam a linguagem do poder sem humanidade, que usa as pessoas para alcançar um fim; inevitavelmente emulam os comportamentos paternais.

A relação acima descrita é de uma neurose extrema, simbolizada, acima de tudo, em Kendall, o filho que é o mais woke, que usa roupas sem logos de marca (mas caríssimas, ainda assim), que denuncia abuso nas empresas do pai, mas quer derrubar o pai apenas para mostrar que é TÃO HOMEM (isto é: tão macho-alpha) quanto o pai – e usa os métodos dele para o tentar derrubar (estando condenado a falhar, porque foi o pai que inventou os métodos). Presos neste ciclo, os filhos disputam a sucessão sob a única forma que conhecem: mostrar que são tão implacáveis nos negócios quanto o próprio pai, que os vai manipulando, enquanto os filhos se esgadanham, em sucessivas alianças e traições.

Mas retire-se a dimensão do poder e do dinheiro e a premissa é reconhecida por todos: filhos que querem o reconhecimento paternal, que reconhecem em si os defeitos dos pais, mas os internalizaram ao ponto de emular esses comportamentos – a família como cenário bélico em que apenas um ego pode sair como vencedor e ninguém quer ser reduzido a um papel secundário. Ao longo de duas temporadas (haverá mais), a série “White Lotus” também tem trabalhado tudo isto no campo da ironia e da projeção, pegando na família — mais nova ou velha, mais ou menos clássica — e projetando a partir daí um dia-a-dia de capitalismo sem visão periférica, preocupado consigo mesmo e nada mais.

"White Lotus" pega na família mais nova ou velha, mais ou menos clássica, e projeta a partir daí um dia-a-dia de capitalismo sem visão periférica, preocupado consigo mesmo e nada mais

Isto existe desde sempre – e por “isto” refiro-me tanto ao fascínio artístico com o poder como à representação da família enquanto estado de guerra: se nos ficarmos só pelo segundo caso, na literatura recente encontramos Corrections, de Jonathan Franzen (que é isso), ou Patrimony, de Roth (que é isso) ou a maior parte da literatura de António Lobo Antunes (que é isso). Tolstoi praticamente reinventou o género.

Situar o “sempre” que usei acima talvez ajude a perceber que é preciso recalibrar a pergunta: se calhar não nos devíamos perguntar “porque é que os ricos nos fascinam” (até porque também temos fascínio por criminosos, ou drug dealers, ou tudo o que na estatística chamamos de outliers, isto é, o que – em termos simplistas – foge ao padrão); a questão é antes: quando é que não tivemos fascínio pelo poder?

Há pinturas encontradas em cavernas em Lascaux (França), que representam animais a dominar outros animais – pinturas com dezenas de milhar de anos; há, por todo o lado, pinturas com milhares e milhares de anos em que humanos são representados a dominar animais; em alguns casos crê-se que têm como significado subjacente uma hierarquização dos humanos consoante as suas capacidades. No antigo Egipto desenhavam-se faraós e deuses numa escala maior que outros humanos.

Durante muitos anos a literatura tinha como personagem principal um herói que por norma era um guerreiro de extrema força ou sentido de justiça ou posses – alguém reconhecido pelos outros como “superior”. É assim no Gilgamesh, na Ilíada, na Odisseia. O que não significa que a arte só se tenha interessado pelo épico e nunca o oposto – também pintámos e relatámos desgraças. Mas a propensão para o extremo (o herói/a desgraça) atravessa a humanidade ao ponto de podermos assumir que só mais recentemente começámos a olhar para a pessoa comum – a que transporta qualidades e defeitos, não tem características especiais que a distingam.

Vemos séries e filmes sobre ricos por escapismo, porque isso satisfaz um certo lado aspiracional, porque estamos viciados em drama e narrativa, e porque ter o que conversar no dia seguinte no escritório ou no fim de semana, na esplanada com os amigos, é uma forma de sociabilização e integração social; e vemos por Schadenfreude: quem não aprecia ver alguém poderoso ser reconduzido à condição de mero humano?

E só recentemente criámos a ideia do anti-herói, ou de personagem que transporta tanta ambiguidade quanto cada um de nós, que comporta dois polos (o negativo e o positivo) que por vezes fazem curto-circuito: alguém que não sendo uma personagem agradável tem um ato correto, ou alguém desagradável, que faz coisas horríveis, mas que exerce fascínio sobre nós porque de certa maneira compreendemos que também é humano, que o contexto em que a personagem cresceu pode ter contribuído para que as suas atitudes sejam, não raro, dignas de, bom, uma besta.

Temos andado a ver representações nossas, ou do que quer que seja que exerça poder sobre nós e as nossas vidas desde sempre – somos junkies de narrativas, símbolos e projeção. Veneramos a imagem de um deus porque temos medo que ele destrua a colheita (esta é a parte dos símbolos), vemos “Ladrões de Bicicletas” e temos medo de, como o protagonista do filme, não sermos capazes de sustentar a família (esta é a parte da projeção), vemos séries porque, num qualquer processo simultaneamente narcísico e saudável, precisamos de re-conhecer o que é humano e é-nos mais fácil compreender a complexidade da humanidade se essa complexidade for servida sob o formato da narrativa.

E vemos séries e filmes sobre ricos por escapismo, porque isso satisfaz um certo lado aspiracional, porque estamos viciados em drama e narrativa, e porque ter o que conversar no dia seguinte no escritório ou no fim de semana, na esplanada com os amigos, é uma forma de sociabilização e integração social; e vemos por Schadenfreude: quem não aprecia ver alguém poderoso ser reconduzido à condição de mero humano?

O que espanta não é que vejamos séries e filmes sobre ricos e poderosos, é que não nos apercebamos que na nossa própria vida somos personagens secundárias do “Tubarão” – e trabalhamos quase todos para ele.

 
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