“Se olharmos para o calendário de execução do PRR, que tem de estar concluído até dezembro 2026, nós diremos que estamos num bom momento” e “ficará concluído a tempo e horas”. As declarações do primeiro-ministro António Costa são recentes e colocam um tom otimista na execução do Plano de Recuperação e Resiliência. Só que, no terreno, alguns dos promotores deparam-se com atrasos. Atrasos que podem mesmo pôr em causa os projetos para descarbonizar a indústria.
É o que revela ao Observador a Associação Técnica da Indústria de Cimento (ATIC), que tem como associadas as duas cimenteiras nacionais — Cimpor e Secil. Otmar Hübscher, vice-presidente da ATIC, sem indicar o projeto concreto aponta o dedo a esses atrasos, salientando a importância do PRR para a promoção da descarbonização, um dos principais desafios da indústria cimenteira. No programa do PRR para estes projetos estão disponíveis 715 milhões de euros. Segundo dados do Recuperar Portugal, foram aprovados 89% e pagos 4%.
No caso da ATIC, um dos associados, não especificado, só agora viu ser aprovado o projeto submetido. A notificação chegou no final de julho e o candidato tem de responder até final de setembro se aceita a proposta.
Mas há contas que têm de ser revistas. O atraso comprometeu o projeto submetido, diz o mesmo responsável, garantindo que o projeto tem de ser reavaliado. “As empresas têm de fazer as suas contas e verificar se ainda é possível concluir em tempo”, além de terem de confirmar os fundamentais económico-financeiros do projeto e, também, voltar aos potenciais fornecedores para novas avaliações de custos. Há que fazer, depois dessa resposta de setembro, o projeto civil, a montagem e o desenvolvimento.
Com um problema acrescido, que subsiste, ao nível da cadeia de abastecimentos. “Está um terror”, com “tempos de espera [para recebimento de produtos] muito longos”, diz Otmar Hübscher que é vice-presidente da ATIC, mas presidente da Secil e, por isso, dá um exemplo simbólico — uma betoneira hoje demora entre 6 a 8 meses para a entrega e se for elétrica pode chegar a um ano com um custo quatro vezes superior. Isto são prazos para uma betoneira. Otmar Hübscher pede para se refletir em relação à encomenda de equipamentos para fábricas. Chegam a demorar de 12 a 18 meses, diz.
“Projetos desta complexidade muito poucos acabam exatamente no tempo previsto”, acrescenta o alemão que lidera a Secil e, como tal, recorda o seu projeto lançado na pandemia, o CCL – Clean Cement Line que “sofreu isso [problemas nos fornecimentos] por todos os lados”. Ainda que na pandemia da Covid fosse pior, o gestor garante que continuam a existir problemas. “É um prazo muito limitado” para cumprir, realça, para reafirmar o perigo dos projetos não chegarem a sair do papel também pelo facto de o retorno já não ser possível de alcançar.
A demora na aprovação leva mesmo o responsável a admitir que um dos projetos “corre perigo”, pelos atrasos que o processo teve, pela reavaliação que deverá resultar num aumento do custo associado, e depois pelos prazos de implementação. Garante que o Governo tem conhecimento da situação, tendo recebido a indicação de que era objetivo do Ministério da Economia reforçar o IAPMEI – Agência para a Competitividade e Inovação. António Costa Silva, ministro da Economia, tem vindo a mudar as peças do organismo.
As faturas dos projetos que venham a ser apoiados pelo PRR têm de estar entregues até 2026. Estamos a meio de 2023. Para projetos de maior complexidade, “há o sério perigo de não sair mais do papel”.
Há sempre a janela que será aberta pelo PT 2030, mas também aí Otmar Hübscher diz que as cimenteiras se deparam com um outro problema, extensível aos fundos europeus tal como desenhados nos anos recentes. É que, explica, estão muito focados nas PME (Pequenas e Médias Empresas), e se Cimpor e Secil são em Portugal consideradas grandes empresas, mas na sua indústria não são. “Se olharmos para Europa, na Alemanha por exemplo, os auxílios de Estado têm valores de apoio gigantesco para a descarbonização da indústria”, abrangendo concorrentes. “Já pedimos ao Governo para ampliar o PT 2030 também para empresas que tenham a nossa escala”.
Atrasos também se notam no consumo
O atraso que a ATIC nota nos seus projetos ao nível do PRR sente-o também ao nível de clientes. No primeiro semestre deste ano houve uma quebra de 2% no consumo de cimento em Portugal. Otmar Hübscher atribui à dificuldade dos projetos do PRR estarem no terreno. “O PRR não arrancou”, atira sem demonstrar dúvidas. “Todos esperamos projetos do PRR e estão muito atrasados”.
A indústria depara-se, juntamente com a quebra no consumo interno, com o travão ao nível das exportações de cimentos. Isto porque cada vez é mais difícil vender para fora da União Europeia. O cimento produzido no continente fica mais caro e não compensa as exportações. “Em pouco tempo vão acabar”. Ainda assim, a Comissão Europeia determinou a cobrança do mecanismo de compensação ao cimento que entra nas suas fronteiras e que acaba por equilibrar as relações de força no bloco europeu. Mas para fora será difícil de vender, considera o responsável da ATIC, recordando que as exportações chegaram a pesar metade das vendas de cimentos de Portugal.
Desafios vão muito para lá de 2026. Governo tem de fazer a sua parte
A indústria cimenteira tem um desafio grande pela frente para a descarbonização. Em 2034 deixa de haver licenças de CO2 gratuitas. Ou seja, quem emitir carbono vai ter de pagar (ainda mais) caro por isso.
O que determina que o desafio está já aí para a indústria do cimento e vai muito além do horizonte de 2026, do PRR. “O PT 2030 tem um horizonte que atende muito melhor a esta transformação”, mas ainda assim pode não ser suficiente.
As cimenteiras não podem, por isso, ficar de fora destes projetos de apoio, dizem. “O PRR tem um prazo temporal tão limitado, o nosso desafio vai continuar”. Mas é um desafio que a indústria assume que não conseguirá enfrentar sozinha. É que por muito que esteja a tentar reduzir o CO2 na produção de cimento haverá sempre carbono que terá de ser capturado e armazenado. O armazenamento poderá ser temporário ou definitivo, mas este carbono até poderá vir a ser reutilizado. Só que não há estruturas nem de transporte nem de armazenamento, identifica Otmar Hübscher.
Já há projetos nos países nórdicos, mas por cá é assunto que não tem tido desenvolvimentos. E é por isso que o gestor admite que essas infraestruturas não deverão existir em 2030, o horizonte do quadro comunitário de apoio.
“A partir de 2034 não há licenças gratuitas e um país sem condições de dar soluções ao CO2 é um problema grande. Ou encontramos soluções para as principais indústrias ou corremos o risco de não sermos mais competitivos”, assume Otmar Hübscher, admitindo que “nós como privados em Portugal não resolvemos sozinhos a questão. É preciso, por exemplo, um quadro regulatório que não existe”. E as próprias infraestruturas que custam muito dinheiro.
Investimentos avultados e um roteiro de descarbonização anterior ao PRR
A indústria do cimento em Portugal apresentou o seu roteiro para a descarbonização em março de 2021, antes de o PRR ter sido aprovado. E é um programa que prevê uma redução de 36% das emissões das cimenteiras e que atinge os 48% em toda a cadeia de valor (face aos valores de 1990, que são o valor base deste roteiro). Isto até 2030, já que para 2050 a ambição é ter mesmo neutralidade carbónica. Em 1990, eram produzidos 783 quilos de CO2 por cada tonelada de cimento, tendo de ser reduzido até 2030 para cerca de 400 quilos, sem o recurso a tecnologias de natureza mais disruptiva como é o caso das tecnologias CCUS (Carbon Capture, Utilisation and Storage), ou seja, captura, utilização e armazenamento de CO2, e do hidrogénio.
“Globalmente, até 2050, é esperada uma redução das emissões de CO2 , face a 1990, de cerca de 65% (274 kgCO2 /t cimento) sem o recurso a tecnologias de natureza mais disruptiva como é o caso das tecnologias CCUS e do Hidrogénio, cuja disponibilidade se espera passar a existir a uma escala comercial a partir de 2030. Essas tecnologias destinar-se-ão a eliminar os restantes 35% das emissões de CO2 que separam o setor da neutralidade carbónica ao longo da cadeia de valor completa”, lê-se no roteiro da indústria.
O que implica investimentos, estima a indústria, de 500 milhões até 2030 e de pelo menos mais mil milhões de euros para atingir a neutralidade. Isto só por conta da indústria.
Os desafios estão em toda a cadeia de valor, em particular na redução de clínquer no cimento, substituindo (a percentagem possível, porque tecnicamente não é possível abdicar totalmente deste componente) por outras matérias-primas. Nessas matérias-primas secundárias que passarão a ter maior incorporação há o desafio de optar pelas descarbonatadas. E aí os resíduos de outras indústrias (até da construção) podem ser utilizados, mas com limites por questões técnicas. No entanto, o potencial de utilização de resíduos já passa a ser significativo noutras fases do processo, nomeadamente para substituir combustíveis fósseis. Mas há um problema. “Os resíduos (produzidos localmente) vão na maioria para aterro, porque é relativamente mais barato e não estão a ser tratados e reutilizados”. O que leva a que 50% dos resíduos que a indústria do cimento utiliza é importado. “Não há em Portugal”, conclui o gestor.