Cumpriram-se há dias — a 16 de março — 100 anos sobre o nascimento de Augusto Cabrita, sem que a RTP, que não poucos documentários biográficos tem encomendado (e bem, e alguns deles bons), a Cinemateca Portuguesa, em geral atenta a efemérides, revisitações e homenagens, ou genericamente o Ministério da Cultura e as suas instituições (como o Centro Português de Fotografia, no Porto — coitado!!) lhe tivessem prestado atenção, no caso bem devida, aliás. A Imprensa Nacional e a sua dinâmica coleção de livros de fotografia portuguesa também deixou passar a boa ocasião. Até a Câmara Municipal do Barreiro, onde nasceu e foi elevado a ícone local, com o seu nome dado a uma sala de espectáculos e mostras, mais não fez do que anunciar sumariamente “uma grande exposição” a inaugurar em novembro, como quem reconhece que chegou bastante atrasado e ainda precisa de tempo para fazer o que já deveria ter feito. Sucede, porém, que “estas coisas” não se fazem — bem… — do pé para a mão, em poucos meses. Precisam de, pelo menos, dois ou três anos bem medidos.
Isto diz muito de muitas coisas, a menor das quais não é certamente a indiferença perante a vantagem de revisitações deste tipo permitirem um novo olhar sobre figuras e a sua época, esclarecendo a sua indefetível originalidade e o ambiente cultural em que participaram. Negligenciamos a pró-memória e a recolha de arquivos físicos e de depoimentos vívidos, e obedecemos a uma ordem cultural feita de imposições e de ocultações, em que uns aparecem repetidamente e outros são lançados a um limbo, como se nunca tivessem existido. Trinta anos após a sua morte, em 1993, a obra fotográfica de Augusto Cabrita não teve ainda uma exposição retrospetiva nem um álbum representativo, como sucedeu — e quase sempre muito bem, de resto — com outras figuras do seu ofício ou de outros do seu tempo, a arquitetura e o design incluídos.
Sequer o renascimento de Artur Pastor e das suas fotografias inspirou quem quer que fosse para o resgate da obra dele.
Ora, Augusto Cabrita está precisamente — como poucos — nessa trilha histórica que vai da fotografia à implantação da televisão no nosso país e ao dito “cinema novo”. De facto, foi ele o conhecido diretor de fotografia do tão celebrado “Belarmino” (1964) de Fernando Lopes, um “milagre”, filmado “à maneira de Henri Cartier-Bresson”, como alguém disse.
Antes disso, filmara para o noticiário da RTP, em abril de 1959, uma reportagem de 10 minutos sobre a caça à raposa na zona da Lagoa de Albufeira, entre Seixal e Caparica, que é quase uma peça de antologia, e depois, em 1962, “Marçano Precisa-se”, documentário televisivo de Fernando Lopes que é um breve roteiro pelas Avenidas Novas de Lisboa, realizado um ano antes dos “Verdes Anos” de Paulo Rocha e Nuno Bragança. (Mais tarde, faria em Paris, com Lopes, Bragança e Gérard Castello-Lopes, filmagens sobre emigrantes portugueses em França, que, infelizmente, ficariam pelo caminho. Em 1979 co-realizaria, também com Fernando Lopes, um filme sobre Lisboa, para uma série francesa de televisão dedicada a grandes cidades do mundo). “O Forcado”, de Baptista Rosa, com texto de Baptista-Bastos (1969), tem imagens de Augusto Cabrita. Em 1969-70 chamou Carlos Paredes a compor e tocar para pequenos filmes seus na RTP. Em 1971 recebeu um prémio pela fotografia do documentário “Gerês” de Helder Mendes, o realizador que o filmara, em 1968, a fotografar o litoral e os pescadores de Sines, e pode ser visto no Arquivo RTP.
Jorge Leitão Ramos, no seu Dicionário do Cinema Português, escreveu: “Fotógrafo de imagens fixas ou a 24 fotogramas por segundo, Augusto Cabrita é, sem dúvida, um dos homens que mais película impressionou nas últimas décadas em Portugal. Seja para a imprensa, seja para a RTP (onde está desde a fundação), seja para o cinema, seja fazendo da fotografia uma forma de arte autónoma, ele recolheu imagens um pouco por todo o mundo e deu-as a ver de todas as formas possíveis. Premiado em Portugal e no estrangeiro, Augusto Cabrita é um dos nomes de proa da fotografia do nosso país” (1989, p. 68; os itálicos são meus).
As suas belas fotografias de Goa (1960) poucas vezes foram exibidas e raramente impressas (apesar dum livro anunciado, que nunca existiu — e a exposição no Funchal, o ano passado, parece não ter tido catálogo, segundo a informação disponível e o depósito legal cumprido), e muito pouco conhecida é também a edição de “Uma Abelha na Chuva” de Carlos de Oliveira com seis fotografias de Augusto Cabrita, feita em março de 1969 pela Dom Quixote de Snu Abecassis. E na sua História da Imagem Fotográfica em Portugal, António Sena informa que o fotógrafo lhe disse que se perderam “grande parte” das imagens feitas em Angola 1961, sendo todavia dele, diz, “a única obra fotográfica de relevo que conheço sobre a guerra colonial” (1998, p. 300). Pode ser parcialmente revista em extratextos do livro de Horácio Caio Angola, os Dias do Desespero (1961). Em 2009 algumas dessas imagens foram vendidas num leilão especializado ocorrido em Lisboa. A reproduzida no livro de António Sena é excelente: casa destruída com homem no telhado, vista através do quadro de uma bicicleta carbonizada.
Alexandre O’Neill entrevistou-o para a revista Ele: Magazine para Senhores em 1972. Em janeiro de 1976, Cabrita produziu um documentário de promoção turística escrito e narrado por António Mega Ferreira: “Açores, Ilhas do Atlântico”. Em 1991, Rui Vilar convidou-o a fotografar em Bruxelas o certame de exposições e eventos literários Europália, para depois ser feito um álbum de aparato excessivo, naqueles anos de despesismo à solta e muito dinheiro público à disposição (Cabrita já não veria o livro impresso). Baptista Bastos, muito à sua maneira tão peculiar, apresentou-o no catálogo duma exposição organizada pelo Centro de Estudos Fotográficos da Associação Académica de Coimbra em 1986, e por isso essa foi uma ocasião perdida, como considerou Alexandre Pomar, em Janeiro de 2012, para lhe fazer justiça.
Muito melhor haveria de dizer Gérard Castello-Lopes, mesmo assim, no belo testemunho pessoal “O menino que fazia milagres”, incluído na antologia Reflexões sobre Fotografia. Eu, a fotografia, os outros. Dinis Machado chamou-lhe “mestre de fotógrafos e narrador de amigos”, num depoimento que o definiu como “homem situado de antenas visuais e de coração caleidoscópio”, “um ser humano onde se combinam, com uma felicidade extremamente rara, a truculência, a generosidade e a arte do trabalho. Absorve a vida como se lhe fosse pouca — e depois distribui-a, caminheiro, pelas mãos dos outros”. António Homem Cardoso, que tanto trabalhou com ele e o admira profundamente, rendeu-lhe particular homenagem em 500 Retratos da Minha Vida, editado em 2022.
Sempre ligado ao estuário do Tejo — um território com uma luz especialíssima, que explorou —, e à margem Sul, Cabrita fotografou muito o Barreiro industrial, dominado pela Companhia União Fabril de Alfredo da Silva. Mas estendeu-se aos salineiros de Alcochete, ao Cais do Gingal em Cacilhas, aos Estaleiros da Setenave no estuário do rio Sado e aos avieiros de Alhandra, indo até ao litoral atlântico, com imagens do cabo Espichel, da Arrábida ou de Sines, todo um portefólio aliás muito sumariamente representado no livrinho Viagem ao Sul do Tejo (Setúbal, 1991), que dedicou a Romeu Correia (1917-96), “amigo do Tejo e meu amigo”.
Foi, aliás, também um bom retratista, como fica evidente no retrato do pintor Artur Bual, em 1991, ou noutros, encomendados para capas de discos da Valentim de Carvalho: Carlos Paredes, Simone de Oliveira (1966), alguns outros mas muito especialmente de Amália Rodrigues, que lhe deve, entre outras, a fotografia para a capa da conhecida biografia da cantora por Vítor Pavão dos Santos. Em 1983 expôs na recém-restaurada Casa-Estúdio Carlos Relvas, na Golegã, “Impressões do Oriente”, em homenagem a um grande Mestre da Fotografia, António Paixão (1915-86), dos Laboratórios Filmarte, que as imprimiu.
A fotografia de Cozinha Tradicional Portuguesa de Maria de Lourdes Modesto — o livro de culinária mais vendido em Portugal — abriu-lhe uma ampla colaboração com a Editorial Verbo de Fernando Guedes. Na primeira badana d’Os Mais Belos Rios de Portugal, de 1994 — póstumo, portanto —, os Editores escreveram isto: “Foi em 1980 que se iniciou a colaboração de Augusto Cabrita connosco. Preparava-se a edição da Cozinha Tradicional Portuguesa, e ele, em colaboração, por si sugerida, com António Homem Cardoso, iria realizar as espectaculares fotografias que individualizam a obra.
Nessa ocasião se selou entre nós uma amizade que iria sendo sempre reforçada com a produção dos álbuns que se seguiram — As Mais Belas Vilas e Aldeias de Portugal (1984) e Os Mais Belos Castelos de Portugal (1986), ambos com texto de Júlio Gil. […] e finalmente as centenas que se publicam nesta obra e que constituem, verdadeiramente, o seu adeus à arte que tão prodigiosamente serviu durante mais de quarenta anos. — Que este álbum signifique não só uma homenagem ao grande fotógrafo desaparecido mas constitua também a expressão material da nossa profunda saudade”.
Augusto Cabrita também gostava de tocar piano, e há uma fotografia dele muito animado a fazê-lo em casa, embora também tenha tocado para gravações da Valentim de Carvalho. Todavia, a fotografia foi a sua paixão e o seu ofício, além do cinema e da televisão. Numa das suas imagens fotográficas mais conhecidas, um grupo de rapazes jogam futebol ao entardecer e as suas figuras em movimento, recortadas em contraluz, parecem dançar suspensas no ar. Homem do Tejo e da Outra Banda, dizia que “a luz natural é inconfundível” e que “o Sol não tem substituto”. Não merece ser esquecido.