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O decreto-lei que instituiu o Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC) entrou em vigor esta terça-feira mas esta autoridade independente, que é essencial na Estratégia Nacional de Combate à Corrupção para fiscalizar o cumprimento das regras de prevenção aos setores público e privado, ainda não tem qualquer existência efetiva.
Seis meses depois de o decreto-lei ter sido publicado em Diário da República — após duras negociações entre o Governo e o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, que queria manter a influência do Tribunal de Contas na área da prevenção da corrupção —, o MENAC continua a não ter órgãos, quadro de funcionários nem sede.
Isto acontece quando estamos à beira da entrada em vigor, a 18 de junho de 2022, da obrigação de criar canais de denúncia de corrupção no setor privado. É como se o Regime Geral de Proteção de Dados tivesse entrado em vigor mas a autoridade que fiscaliza a sua aplicação continuasse a não existir.
Pelo meio, a ex-ministra Francisca Van Dunem convidou Maria José Morgado para liderar o MENAC mas a procuradora-geral adjunta recusou. Mesmo uma intervenção do primeiro-ministro António Costa não foi suficiente para convencer a ex-diretora do DIAP de Lisboa.
Maria José Morgado: “MENAC é uma estrutura demasiado pesada e mastodôntica”
A ex-procuradora-geral regional de Lisboa foi a primeira opção do Governo para liderar o MENAC. Convidada durante o verão de 2021 quando o projeto de decreto-lei da nova autoridade administrativa ainda não estava totalmente fechado, Maria José Morgado ponderou e tentou negociar alterações com a então ministra da Justiça. Contudo, a discussão não foi bem sucedida.
“Não aceitei o convite porque achei a estrutura demasiado pesada e mastodôntica do ponto de vista organizativo. Fiquei igualmente com dúvidas sobre a eficácia no campo da prevenção da corrupção, atendendo à estrutura prevista para o MENAC”, afirmou ao Observador.
Maria José Morgado teve igualmente “dúvidas sobre a eficácia” do novo organismo e do regime de contra-ordenações por ser “demasiado pesado e confuso”.
“O MENAC deveria ser mais pequeno e mais ágil. A sua ação deveria basear-se numa equipa multidisciplinar que tivesse representantes do Ministério Público, da Polícia Judiciária, do Banco de Portugal e da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários, etc. — o que não está previsto na lei”, explica.
Os serviços de apoio técnico poderão vir do Conselho de Prevenção de Corrupção do Tribunal de Contas ou serão recrutados nos quadros da administração pública, nomeadamente nos excedentários. Chegou a ser ponderado um prémio de 10% face ao salário de origem para aumentar a capacidade recrutamento, mas a ideia não entrou na versão final da lei.
Por outro lado, o Conselho Consultivo do MENAC tem alguns poderes sobre a atividade do organismo e é dominado pelas inspeções-gerais de seis ministérios.
“O MENAC também tem poderes de fiscalização sobre o sector público — poderes esses que serão transferidos do Conselho de Prevenção do Tribunal de Contas. Os inspetores-gerais entrarão em conflito de interesse quanto se pronunciarem sobre a ação do MENAC que fiscaliza os mesmos departamentos públicos sobre os quais têm poderes de inspeção”, diz Maria José Morgado.
As dúvidas de Morgado, que se encontra jubilada desde dezembro de 2018, levaram-na a recusar o convite. O “não” manteve-se mesmo após o primeiro-ministro António Costa ter insistido com a ex-diretora do DIAP de Lisboa por sugestão de Francisca Van Dunem.
A intervenção de Marcelo e a força de José Tavares
A prova de como o MENAC nasceu torto foi o facto de a então ministra da Justiça não ter conseguido encontrar mais nomes interessados em assumir a presidência do novo organismo. Ao que o Observador apurou, Vitor Caldeira, ex-presidente do Tribunal de Contas, chegou a ser sondado mas também rejeitou a abordagem.
Pelo meio, surgiu outro tipo de problema. A criação do MENAC sempre teve como pressuposto a extinção do Conselho de Prevenção da Corrupção, que funciona há 14 anos na órbita do Tribunal de Contas (TC). Contudo, o conselheiro José Tavares, líder do TC, nunca viu com bons olhos o desaparecimento daquele organismo que (ainda) fiscaliza as regras de prevenção de corrupção no setor público. O que motivou uma intervenção do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.
Apesar de o projeto de decreto-lei que iria instituir o MENAC já estar pronto desde o outono de 2021, Marcelo Rebelo de Sousa bloqueou a sua aprovação para manter a influência do TC na área da prevenção da corrupção. E conseguiu. Quando anunciou a promulgação do diploma num comunicado publicado a 6 de dezembro no site da Presidência da República, Marcelo referiu expressamente que o novo organismo não deve diminuir “o âmbito de intervenção do Tribunal de Contas”
Ao que o Observador apurou junto de diversas fontes próximas deste processo, o Governo já tinha cedido a Marcelo para que a influência do Tribunal de Contas se mantivesse. Como? Estipulando que o presidente do MENAC será nomeado pelo Conselho de Ministros “sob proposta conjunta” do Presidente do Tribunal de Contas e da procuradora-geral da República. E deixando claro num artigo da lei que o MENAC “está sujeito à jurisdição e controlo financeiro” daquele tribunal — quando tal deriva da lei geral.
José Tavares afirmou esta segunda-feira num encontro informal com jornalistas que está a consensualizar com a procuradora-geral Lucília Gago qual o nome a propor ao Governo. “Essa é uma preocupação principal e muito brevemente haverá notícias sobre esta matéria”, afirmou o presidente do TC.
Canais de denúncia prestes a entrar em vigor e privados sem interlocutor institucional
Uma das consequências do atraso do Governo de António Costa na instituição do MENAC faz com que o setor privado já tenha a obrigação de aplicar o Regime Geral de Prevenção de Corrupção (RGPC) mas não tenha um interlocutor institucional que ajude as empresas a aplicar regras que até ao momento só se aplicavam ao setor público.
“A principal missão do Mecanismo Nacional Anticorrupção é sensibilizar as instituições públicas e privadas para o novo RGPC e ajudá-las a apetrecharem-se para cumprir a lei que entra agora em vigor. Para isso, o MENAC deveria ter sido criado imediatamente a seguir a Dezembro de 2022, precisamente para começar a fazer o trabalho preparatório necessário até à entrada em vigor. Estes seis meses foram tempo perdido, e um sinal claro de que o regime não é para levar a sério”, afirma João Paulo Batalha, consultor em políticas anti-corrupção.
E quais são as consequências legais do facto de o MENAC apenas existir no papel? “O que está aqui em causa é a questão da coercibilidade do novo regime. Se uma lei impõe determinados deveres, ela só é efetiva se o Estado tiver uma forma de fiscalizar o cumprimento da lei e sancionar os infractores. No caso em apreço, se as empresas não respeitarem esses deveres, incorrem numa infração. A questão é saber se se essa infração será efectivamente sancionada”, explica o advogado Paulo Sá e Cunha, do escritório Cuatrecasas.
O advogado garante que, ao que tudo indica, a lei que impõe a criação de canais de denúncia de irregularidades nas empresa e no Estado “entrará em vigor a 18 de junho de 2022” por via da entrada em vigor da Lei 93/2021 de 20 de dezembro que transpôs a chamada diretiva dos whistleblowers e define o regime legal de proteção dos denunciantes.
Isto é, o MENAC, a autoridade que vai fiscalizar a constituição de tais canais de comunicação de denúncias, não existe, logo será impossível verificar se as empresas estão ou não a aplicar esse novo instrumento.
Já no caso do Regime Geral de Prevenção da Corrupção, as sanções só “entrarão em vigor no dia 7 de junho de 2023 — um ano depois da entrada em vigor do decreto-lei que instituiu o MENAC”, explica Sá e Cunha.
“A lei que institui os canais de denúncia é uma transposição de legislação europeia que já vinha atrasada, face aos prazos que Portugal tinha de cumprir perante Bruxelas. O decreto-lei que cria o Mecanismo Nacional Anticorrupção vem da legislação em pacote aprovada ao abrigo da Estratégia Nacional Anticorrupção. Os prazos não batem certo porque ninguém se preocupou com a clareza do sistema e a implementação prática da legislação. O resultado é que vamos ter obrigações de combate à corrupção sem um quadro sancionatório funcional”, censura João Paulo Batalha.
O especialista diz mesmo que receia que os “potenciais denunciantes nas organizações se exponham a reportar situações irregulares, confiantes na proteção da lei, e depois descubram à sua custa que essa proteção não está lá.” Daí que afirme que “aprovar regimes legais atrasando a entrada em vigor dos quadros sancionatórios, e deixando na gaveta as instituições que devem aplicar essas sanções, serve para criar escudos de papel, ilusões de proteção que não mudam nada na cultura das organizações nem dão qualquer confiança (ou pior, dão falsa confiança) aos potenciais denunciantes”, conclui.
O que faz o MENAC e o que são as regras de prevenção de corrupção?
A nova autoridade administrativa tem vários pontos essenciais na sua ação:
- O MENAC é criado para fiscalizar as regras de prevenção de corrupção quer no setor privado, quer no setor público. Neste último caso, herda as competências do Conselho de Prevenção de Corrupção — que só será extinto, como veremos, quando a instalação do MENAC estiver concluída;
- Tais regras são estipuladas pelo Regime Geral da Prevenção da Corrupção (RGPC) que estipula, nomeadamente, a elaboração de um Plano de Prevenção de Riscos de Corrupção e Infrações conexas (PPR) e a criação de Códigos de Conduta, Programa de Formação e Canal de Denúncias.
- O RGPC aplica-se ao setor privado, nomeadamente a empresas com sede social em Portugal que empreguem 50 ou mais trabalhadores ou a sucursais em território nacional de pessoas coletivas com sede no estrangeiro também com um mínimo de 50 trabalhadores.
- Idênticas regras já se aplicavam ao setor público (administração direta e indireta do Estado e setor empresarial do Estado) e mantém-se.
Que soluções para o problema?
O Observador dirigiu várias perguntas à nova ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, nomeadamente sobre as soluções para o atraso na constituição do MENAC e a entrada em vigor do regime sancionatório dos canais de denúncia, mas não recebeu qualquer resposta até ao momento.
Na visão de Paulo Sá e Cunha, “se o Governo não suspender a entrada em vigor da lei ou não prorrogar o prazo para a sua entrada em vigor do decreto-lei que institui o MENAC, então a lei vigorará, mas sem qualquer eficácia coerciva.”
Para o advogado, a melhor solução seria a “prorrogação do início da vigência da lei ou de parte das suas disposições que, ao presente, se afigura inexequível fiscalizar”. Isto porque “ou há um controlo efetivo do cumprimento ou a lei pura e simplesmente não será cumprida”. “Como ainda não está constituído o competente organismo de supervisão, não haverá ninguém no terreno para fiscalizar. Logo, a lei pode não se tornar imediatamente efetiva”, conclui.
Uma das grandes preocupações da entrada em vigor do decreto-lei do MENAC era a execução da lei que instituiu o Conselho de Prevenção da Corrupção. Como sempre esteve previsto que o MENAC iria receber as competências de prevenção de corrupção no setor público daquele organismo, este dever-se-ia extinguir com a criação do Mecanismo. O problema, claro está, é que o MENAC só existe no papel.
O legislador, contudo, foi previdente e calculou a hipótese de o MENAC não estar efetivamente instalado na data em que o decreto-lei que instituiu o Mecanismo entrasse em vigor (7 de junho de 2022) e estipulou no n.º 3 do art. 28 que a revogação da lei que criou o Conselho de Prevenção da Corrupção só produziria efeitos “a partir da data de instalação do MENAC”, que terá de ser definida por portaria do Governo.