Concursos feitos à medida, falta de transparência na avaliação e critérios escondidos. Estas são algumas das acusações feitas ao organismo que tem como missão assegurar isenção e transparência nas escolhas para altos cargos na função pública. Trata-se da Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CRESAP) criada em 2012 pelo atual Governo.
Teresa Gamito candidatou-se à vice-presidência da Agência Portuguesa do Ambiente, mas não foi escolhida para o lugar. Apresentou uma impugnação ao júri do concurso (que, de acordo com o regulamento da CRESAP, não tem efeito suspensivo), onde pedia o acesso à classificação que lhe foi atribuída por cada critério. Mas sem sucesso. O máximo que lhe foi enviado, além das atas relativas ao processo (rasuradas nos campos relativos à identidade dos restantes candidatos), foi a avaliação global que cada membro do júri atribuiu ao seu currículo – onde os dois membros especializados, externos à CRESAP, deram notas na ordem dos 14 e 15 valores, e os outros dois elementos, da CRESAP, deram notas inferiores, na casa dos 11 valores.
O motivo de exclusão da sua candidatura, depois da fase de entrevista, foi o facto de o júri ter considerado “o seu perfil menos adequado ao perfil definido para este cargo, nomeadamente em termos de experiência de gestão pública”, segundo ata a que o Observador teve acesso. Nas características previstas para o cargo, no entanto, não era pedida experiência em gestão pública. Pedia-se, como “áreas preferenciais” ao cargo, formação em “direito, engenharia, geografia, geologia, biologia ou química”, e uma “especialização preferencial” em “ambiente, recursos naturais, eco-inovação e desenvolvimento sustentável”. Pedia-se ainda “experiência em gestão dos recursos hídricos das zonas costeiras” e “gestão de bacias hidrográficas partilhadas”. Mas não experiência em gestão pública.
O argumento, segundo consta na ata da deliberação, foi usado para excluir dois dos cinco candidatos entrevistados. A lista final dos três nomes escolhidos pela CRESAP para entregar ao Governo saiu a 9 de junho, mas a tutela ainda não escolheu ninguém.
“Assim, os concursos acabam por beneficiar as pessoas que estão ou estiveram no cargo. Dizer que estes concursos estão abertos a pessoas fora da função pública é mentira”, afirmou ao Observador Teresa Gamito, acrescentando que “a Cresap devia ter a missão de verificar se o perfil está viciado ou não porque o presidente [João Bilhim], aliás, já veio várias vezes dizer na comunicação social que já mandou muitos casos para trás por estarem feitos à medida”.
O Observador teve acesso a outras duas impugnações sobre decisões do júri, e respetivas atas, relativas a processos concursais no Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas. O conteúdo das reclamações é semelhante: opacidade do processo e falta de adequação entre o perfil descrito como o pretendido e os fatores que servem de argumento à exclusão.
Henrique Pereira dos Santos, arquiteto paisagista e antigo dirigente do já extinto Instituto de Conservação da Natureza e Biodiversidade, candidatou-se em outubro a uma vaga para a presidência do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas. Foi um dos seis que passaram na primeira fase de avaliação curricular do júri da CRESAP e que chegou à fase de entrevista, mas não chegou a fazer parte dos três nomes escolhidos pelo organismo – os três ‘finalistas’ enviados pela CRESAP para o Governo, que é obrigado a escolher um destes nomes.
Conteúdos sem relação com o cargo
A 12 de março enviou uma reclamação ao presidente da CRESAP, contestando a falta de transparência do processo. Na queixa, argumenta que, ao contrário do que é dito no site da CRESAP (“os critérios, subcritérios e respetiva ponderação constarão do aviso de abertura [do concurso] e serão de conhecimento público”), os subcritérios e o peso que cada parâmetro tem para a avaliação curricular do júri não aparecem discriminados no perfil pedido. Só se consegue ter acesso a esses dados depois de os candidatos solicitarem as atas do processo, ou seja, só depois de a candidatura ter sido enviada e de o candidato já saber o resultado do concurso.
No perfil definido pelo Governo e divulgado pela CRESAP na abertura do concurso, são de facto referidas as “áreas de formação preferenciais”, as “áreas de especialização” e as “áreas de experiência profissional preferenciais”, mas só num dos anexos às atas enviadas posteriormente aos candidatos, por solicitação, são conhecidos os subcritérios e a valorização que é dada a cada um. Ou seja, os reais critérios de avaliação e a sua respetiva ponderação (em que a apreciação do júri vale, na maior parte dos casos, 50%) não são divulgados na altura da apresentação do concurso.
“O meu concurso tinha conteúdos sem qualquer relação com o cargo, configurando um concurso feito à medida de uma candidata concreta”, defendeu, em carta enviada a João Bilhim. O resultado deste concurso ainda não saiu, mas Pereira dos Santos estará a referir-se a Paula Sarmento, atual presidente do ICNF nomeada em regime de substituição em fevereiro de 2012 pela ministra da Agricultura, Assunção Cristas.
Além do processo de impugnação apresentado à CRESAP (que por lei não tem efeito suspensivo), Henrique Pereira dos Santos estendeu a reclamação a várias outras entidades, num processo que se estende até hoje e que ainda não dá por terminado. As queixas foram feitas à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, aos deputados dos vários grupos parlamentares da Comissão de Orçamento, Finanças e Administração Pública, dos quais obteve resposta apenas do PCP e do Bloco de Esquerda, e ao Provedor de Justiça. A última reclamação foi feita a 12 de maio à Assembleia da República, por ser, diz, a “única entidade que tem competências de fiscalização” sobre aquele organismo.
Provedoria abriu processos
Ao Observador, a Provedoria de Justiça confirmou ter neste momento cinco processos abertos que visam os procedimentos concursais da CRESAP.
O Observador teve acesso a uma outra queixa relativa ao ICNF em que o candidato também aponta as mesmas queixas: falta de transparência na apresentação dos subcritério e falta de transparência na fundamentação do júri, que não lhe disponibilizou a sua avaliação discriminada por critério mesmo depois de solicitado.
O candidato, que pediu para não ser citado, logo que soube que tinha sido excluído pediu o acesso à sua avaliação, por e-mail, já que não tinha recebido nenhuma justificação. Pediu ainda uma reunião com o presidente da instituição, João Bilhim, também presidente do júri. Dois dias depois da queixa, chegava a resposta da CRESAP que dizia ser “impossível facultar a avaliação da candidatura dado que apenas cada um dos quatro elementos do júri conhece a avaliação curricular dada a cada um dos candidatos”. Uma informação que pode esbarrar no artigo 15º do regulamento do organismo, que diz que “as deliberações do júri devem ser fundamentadas e registadas por escrito, podendo os candidatos ter acesso, nos termos da lei, às atas”, e que “em caso de impugnação, as deliberações escritas são facultadas à entidade que sobre ela tenha que decidir”.
Na mesma resposta, a CRESAP negava também o encontro com o presidente “dado não estar previsto em regulamento”.
As atas das reuniões foram de facto facultadas e, depois de novo pedido, foi-lhe ainda enviada a nota que tinha obtido na avaliação curricular global (e não específica, por critério), assim como as notas dos restantes candidatos – no ficheiro enviado aparece visível a nota de cada um mas não o nome do candidato correspondente. Continuou, no entanto, a ser recusado o acesso à sua avaliação discriminada por critério. Ou seja, a queixa continuava a ser pelo facto de não lhe ter sido dada a possibilidade de fazer um juízo da avaliação do júri, quer pela via da comparação com os restantes candidatos, quer pela via da análise pormenorizada feita ao seu currículo.
“Não me foi facultada a classificação que me terá sido atribuída em cada um dos critérios, impedindo que se possa fazer uma avaliação sobre a boa ou incorreta aplicação dos critérios de classificação”, alegou o candidato na carta de reclamação formal que viria a escrever cinco dias depois – conforme previsto nos regulamentos da comissão – e à qual, até hoje, não obteve resposta, a não ser uma nota de aviso de receção.
CRESAP desdramatiza
Contactada pelo Observador, a CRESAP nega opacidades, afirmando que “as ponderações, como a lei estabelece, são estabelecidas pelo júri e constam do aviso de abertura de todos os concursos”. No aviso de abertura do concurso, onde se dá conta do perfil pretendido, são de facto apresentados os 12 critérios previstos – e respetiva ponderação – mas trata-se apenas dos 12 critérios genéricos (experiência profissional, colaboração, motivação, sensibilidade social, etc), comuns a todos os concursos, e não dos subcritérios em que cada um se divide e que, esses sim, podem ter pesos diferentes de concurso para concurso. Só nas atas fornecidas posteriormente os candidatos poder ter acesso a estes dados.
Além da possibilidade de impugnação prevista nos regulamentos da CRESAP – que tem de ser feita num prazo de cinco dias depois da decisão do júri e que não tem efeito suspensivo -, não parece haver outra forma de contestar as decisões do júri, além da via dos tribunais – o que nunca aconteceu. Aliás, o regulamento prevê que a reclamação seja endereçada ao próprio presidente do organismo, que é também presidente desse mesmo júri – “o que o põe a decidir em causa própria”, contesta Henrique Pereira dos Santos.
De acordo com o regulamento da Comissão, o júri dos concursos é constituído por quatro membros, sendo que o primeiro é o presidente da CRESAP – “que tem voto de qualidade” -, ou outro designado por ele em caso de não poder comparecer. Segue-se um vogal permanente da CRESAP e um vogal não permanente, que é alguém ligado ao ministério que pediu a abertura do concurso. Por fim, um perito, que é sempre alguém relacionado com a área de incidência do concurso, escolhido por deliberação dos três restantes membros do júri.
Numa das atas a que o Observador teve acesso, que define a nomeação do perito para o concurso para o cargo de vice-presidente da Agência Portuguesa do Ambiente, percebe-se que o nome escolhido de entre os vários constantes na bolsa de peritos já estava designado no dia anterior à realização da própria reunião, que serviu para escolher a pessoa. Essa reunião, que se realizou no dia 16 de janeiro, demorou apenas cinco minutos (das 11h45 às 11h50, segundo se escreve na ata) e o documento data de 15 de janeiro.
Criada em 2012 pelo Governo de Pedro Passos Coelho com o objetivo de dar maior transparência às nomeações para cargos públicos, a CRESAP tem a função de avaliar e selecionar os candidatos a uma determinada vaga para cargos de dirigentes superiores da administração pública de acordo com um perfil previamente definido por parte das tutelas. Da seleção resulta uma lista de três nomes que é apresenta ao Governo para daí resultar a escolha final.
Ao longo destes dois anos, o organismo presidido por João Bilhim tem estado no centro de algumas polémicas. Em janeiro, o Diário de Notícias dava conta de que tinham sido detectados concursos em que é dada preferência à experiência no Governo ou à prestação de serviços aos ministérios. Na altura, o presidente do organismo admitiu ao mesmo jornal que já tinham sido alterados “cerca de 50%” dos perfis pedidos pelas tutelas, por “existirem erros grosseiros como querer tornar obrigatório o grau de doutor ou mestre numa área de formação que a lei orgânica do organismo não obriga” ou por o perfil pedido “cheirar a fotografia”. E justificou as falhas com o facto de terem sido abertos cerca de 200 processos urgentes, num curto espaço de tempo.
Antes, em dezembro, João Bilhim já tinha admitido, em entrevista ao Público, que “houve provavelmente uma dúzia de casos” em que o perfil definido pelo Governo para os lugares a concurso era feito à medida para um determinado candidato. “Mas a CRESAP corrigiu o perfil porque o júri concordou que havia essa tentativa”, disse na altura o presidente do organismo.