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A documentação que comprova a co-titularidade de uma conta bancária que o primeiro-ministro declarou em 2016 ao Tribunal Constitucional perdeu-se durante o processo de compra do Barclays Portugal pelo Bankinter. Quem denunciou a situação ao Tribunal Constitucional foi o próprio António Costa, como noticiou o Correio da Manhã.
Vários juristas, como o penalista Paulo Saragoça da Matta no programa “Justiça Cega”, garantiram ao Observador que a perda dessa documentação é uma clara violação da lei de combate ao branqueamento de capitais. Obriga o Banco de Portugal a abrir um processo de averiguação ou até mesmo um processo de contraordenação que pode levar a uma eventual multa que varia entre os 50 mil e os cinco milhões de euros ao Bankinter.
Contudo, e apesar da possibilidade de mais clientes do Bankinter terem eventualmente sido prejudicados, o Banco de Portugal refugia-se no “dever de segredo de supervisão” para não esclarecer a sua atuação e tranquilizar o mercado. No entanto, sublinhe-se que, tal como acontece com outras entidade públicas sujeitas a segredo (como a Procuradoria-Geral da República ou o Ministério Público), a lei permite esclarecimentos públicos sobre a abertura de investigações. Isso mesmo foi garantido por Paulo Saragoça da Matta e outros juristas ao Observador.
O Bankinter também recusou prestar qualquer esclarecimento, nomeadamente sobre a perda de documentação relacionada com outros clientes. O argumento foi que “não faz comentários sobre a sua relação comercial com clientes ou potenciais-clientes.”
Documentação extraviada “durante o processo de aquisição do Barclays pelo Bankinter”
Esta história começa a 1 de abril de 2016, quando o banco espanhol Bankinter anunciou ao mercado a compra do Barclays Portugal por cerca de 86 milhões de euros. Adquirida a totalidade da rede retalho do Barclays, o Bankinter iniciou depois a reorganização dos sistemas informáticos e a mudança da marca.
Cerca de um mês depois do anúncio do Bankinter, António Costa comunicou pela primeira vez ao Tribunal Constitucional que era o terceiro titular de uma conta bancária, aberta ainda no Barclays Portugal, com um saldo de cerca de 100 mil euros. Os dois primeiros titulares da referida conta são a sua mãe, Maria Antónia Palla, e o marido Manuel Pedroso Marques.
Fonte oficial do gabinete do primeiro-ministro explicou ao Observador que “não foi cliente do Barclays” e que a “pedido da sua mãe”, António Costa “aceitou ser co-titular de uma conta dela e do marido”. Daí que tenha assumido junto do Tribunal Constitucional, no âmbito da suas obrigações como titular de cargo político, “ter passado a ser co-titular da conta” — uma alteração patrimonial face às últimas declarações que tinha apresentado como presidente da Câmara Municipal de Lisboa e como secretário-geral do PS, que se manteve até 2022.
Mais de seis anos depois, António Costa informou o Tribunal Constitucional (TC) que deixou de figurar como co-titular da conta declarada em 2016, visto que “não há registo de ter figurado como co-titular” da referida conta bancária aberta no Barclays e que transitou para o Bankinter. É o que se lê na declaração depositada no TC.
Ao Observador, fonte oficial do gabinete do primeiro-ministro disse também que, “tanto quanto” António Costa “pôde apurar, a documentação extraviou-se no processo de aquisição do banco Barclays pelo Bankinter”.
Ou seja, o Bankinter perdeu a documentação inicial que qualquer cidadão assina quando passa a ser titular de uma conta bancária.
“Constatada esta situação, irei agora proceder à tramitação necessária à co-titularidade da nova conta, pelo que comunicarei logo que a mesma se verifique”, lê-se ainda na resposta de António Costa ao TC, que teve lugar em novembro de 2022.
PM foi à agência do Bankinter tentar esclarecer a questão. Ao fim de um ano, desistiu porque o banco não apresentou soluções
Nas suas respostas, António Costa fez questão de explicar que o próprio, “por deslocação à agência” do Bankinter, tentou esclarecer a situação, mas foi surpreendido com a informação que recebeu. “Nunca fui, nem sou, titular dessa conta, nem da que lhe sucedeu” no Bankinter, contou.
A informação é surpreendente porque o próprio primeiro-ministro diz o contrário: “Preenchi e subscrevi a documentação necessária para o efeito”. Isso mesmo foi “confirmado” numa data que o Tribunal Constitucional rasurou em nome da lei de proteção de dados pessoais.
A ida à agência não foi a única vez que António Costa interagiu com o Bankinter para tentar resolver o problema da perda da documentação. Além de contactos com a sua antiga gestora de conta, houve mais contactos desde novembro de 2022.
Ao fim quase um ano, o “primeiro-ministro decidiu não voltar a perder tempo a tratar de toda a documentação necessária para ser co-titular de uma conta que não é sua, mas da sua mãe”, lê-se na resposta enviada ao Observador pelo gabinete de António Costa.
Isto é, Costa desistiu de “proceder à tramitação necessária à co-titularidade da nova conta”, como tinha afirmado ao Constitucional em 2022, porque o Bankinter não apresentou soluções para um problema da sua responsabilidade e ao qual o primeiro-ministro é alheio.
Paulo Saragoça da Matta explicou que, se o primeiro-ministro “era apenas titular ‘de favor’ — ou seja, a pedido da sua mãe —, “nada tem de fazer para constar como ‘titula’ de uma conta que não é sua.”
O Observador questionou António Costa sobre se tinha feito alguma comunicação ou queixa ao Banco de Portugal, tendo fonte oficial esclarecido que o “primeiro-ministro não apresentou qualquer queixa porque não foi lesado. Mais esclarecimentos, só o Bankinter poderá dar”, concluiu.
“O Banco de Portugal não tem o direito, tem o dever de abrir uma investigação” ao Bankinter
Apesar de António Costa ser alheio à situação, qualquer instituição de crédito ou financeira está obrigada a deveres especiais de diligência em relação a Pessoas Politicamente Expostas (PEP, na sigla inglesa.) no âmbito lei de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo. Tais deveres estendem-se aos familiares diretos de qualquer PEP.
O que é uma Pessoa Politicamente Exposta?
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Na prática, uma Pessoa Politicamente Expostas (PEP, na sigla inglesa) é alguém que foi titular de um cargo político ou público nos últimos 12 meses. A lei define 13 categorias que vão dos titulares políticos de órgãos de soberania, a juízes de vários tribunais superiores, passando por membros dos executivos camarários, oficiais das Forças Armadas e até administradores de empresas públicas nacionais ou municipais, entre outros.
Ao abrigo da lei de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo, que deriva de diversas diretivas comunitárias que se iniciaram no início da década de 2000, as instituições de crédito e outras entidades financeiras e não financeiras (o universo foi muito alargado nos últimos anos) estão sujeitas a deveres de diligência especial no âmbito da política denominada “Know Your Costumer” (Conheça o Seu Cliente).
Ou seja, têm de identificar os PEP entre os seus clientes e têm deveres especiais de diligência. Por exemplo, têm de identificar a origem dos fundos depositados e monitorizar a respetiva evolução patrimonial e clientes PEP dos respetivos familiares.
“As medidas reforçadas que as instituições de crédito devem adotar relativamente aos seus clientes que revistam a qualidade de PEP são complementares aos procedimentos normais de identificação e diligência, sendo aplicáveis, igualmente, às relações de negócio ou transações ocasionais com clientes que sejam membros próximos da família de PEP e pessoas reconhecidas como estreitamente associadas a PEP, bem como titulares de outros cargos políticos ou públicos”, explica o advogado Pedro Marinho Falcão.
Entre outras obrigações, estão a guarda da informação documental e a partilha de informação com entidades de supervisão e também com entidades judiciais sobre os PEP e os seus membros familiares próximos. Qualquer irregularidade ou indício deve ser automativamente comunicado, sob pena da aplicação de pesadas multas.
A lei de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo é clara: os bancos são obrigados a monitorizar a evolução do património financeiro, além da origem dos respetivos fundos, que pertencem a Pessoas Politicamente Expostas. Para tal, e entre outras obrigações, têm de guardar toda a documentação bancária relativa aos PEP.
O advogado Paulo Saragoça da Matta explicou no programa “Justiça Cega” que o regime do branqueamento de capitais prevê um período de sete anos de guarda obrigatória da documentação. “De modo a permitir o acesso imediato aos mesmos e a sua reconstituição por parte das autoridades”, acrescenta o seu colega Pedro Marinho Falcão.
“Essa obrigação tem que ser muito levada a sério” por parte dos bancos, enfatizou Saragoça da Matta, sendo certo que a lei geral prevê um prazo de 10 anos para a documentação de todos os clientes.
No caso dos PEP, os deveres especiais de diligência que os bancos estão obrigados a seguir, faz com que tudo seja diferente. “Não é como a conta de um cidadão comum. A conta de um PEP tem que ser monitorizada em constância e, havendo alguma coisa, há uma obrigação automática de comunicação ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal e à Unidade de Informação Financeira da Polícia Judiciária”, garantiu o jurista.
As consequências por erros na guarda de documentação são graves. “A falha destes deveres de diligência são a abertura de um processo de investigação por parte do Banco de Portugal. E atenção: o Banco de Portugal não tem o direito de o fazer, tem o dever de o fazer”, enfatizou Saragoça da Matta que, não tem dúvidas, deveria já ter acontecido no caso em apreço.
O conhecido penalista fez questão de dizer que, além da falha na guarda da documentação de António Costa, “há outros deveres que poderão eventualmente estar a ser incumpridos”, o que reforça a obrigação do Banco de Portugal de investigar o caso.
Vários colegas de Saragoça da Matta fazem a mesma leitura dos factos e da lei, mas solicitaram o anonimato.
Por exemplo, o Bankinter tinha a obrigação de informar o Banco de Portugal quando foi detetada a falha na guarda da documentação de António Costa — ou por denúncia do cliente ou por deteção interna do próprio banco. “Qualquer pessoa monitorizada, qualquer entidade obrigada, deve reportar imediatamente à entidade de controlo [o Banco de Portugal, no caso], o não cumprimento das obrigações da lei de combate ao branqueamento de capitais. É obrigatório dizer: ‘“Atenção, temos aqui um problema’”, explicou o advogado.
E se o Bankinter não o fez, também essa omissão poderá acarretar eventuais responsabilidades contraordenacionais para o banco.
Pedro Marinho Falcão, por seu lado, admitiu em abstrato, sem se pronunciar sobre este caso concreto que “o incumprimento do dever de conservação imposto” pela lei de combate ao branqueamento de capitais” constitui uma “contraordenação especialmente grave”.
Daí que o Banco de Portugal possa realizar “inspeções presenciais e também ações à distância, para verificar o cumprimento dos procedimentos preventivos. Se forem detetadas infrações, pode ser proposta a instauração de procedimentos sancionatórios”, esclareceu em declarações ao Observador.
A violação das obrigações inscritas na lei de branqueamento de capitais poderá levar “à aplicação de coimas entre os 50 mil euros e os 5 milhões de euros para as pessoas coletivas. Mas diria que o limite máximo para a instituição de crédito nem sequer é este, porque o limite máximo de uma coima, dependendo da gravidade da situação, pode ir até 10% do valor total de negócio da instituição de crédito”, disse por sua vez Paulo Saragoça da Matta.
O segredo do Banco de Portugal não impede a prestação de informação
O Observador dirigiu um conjunto alargado de perguntas ao Banco de Portugal, questionando nomeadamente sobre a reação do supervisor a uma alegada violação por parte do Bankinter face às obrigações das instituições de crédito descritas na lei de combate ao branqueamento de capitais e uma eventual abertura de um processo de averiguações ou contra-ordenacional.
Fonte oficial da instituição liderada por Mário Centeno respondeu que o “Banco de Portugal está legalmente obrigado ao dever de segredo de supervisão, nos termos do artigo 80.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (“RGICSF”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, pelo que não comenta a sua atuação supervisiva em casos individuais e concretos”.
Questionado sobre se o Banco de Portugal pode simplesmente comunicar a abertura de um processo contra-ordenacional, como a Procuradoria-Geral da República faz ao abrigo do princípio da paz social inscrito no Código de Processo Penal, Paulo Saragoça da Matta não tem dúvida em afirmar que a instituição liderada por Mário Centeno “pode comunicar” essa abertura de investigação.
“Não pode dizer o que está a fazer”, nomeadamente que tipo de diligências está a realizar. “Mas pode dizer que existe” um determinado processo de averiguações ou contra-ordenacional.
Aliás, disse o penalista, “tem o dever” de o fazer”, para não “permitir este tipo de desconfiança geral da sociedade no que diz respeito ao funcionamento de instituição de crédito concreta. O Banco de Portugal tem o dever de fazer uma comunicação a dizer: ‘Atenção, está tudo tratado, nós estávamos a ver o que se passa’. E nós, cidadãos ficamos mais descansados”.
“Para não permitir este tipo de desconfiança geral da sociedade no funcionamento da instituição de crédito, é óbvio que o Banco de Portugal tem o dever de fazer uma comunicação e dizer: ‘Atenção, nós estamos a ver o que se passa’. E ficamos todos mais descansados. O que não se pode é dizer o que é que está a fazer, mas pode dizer que existe”, explicou Saragoça da Matta.
Em termos abstratos, o conhecido penalista não tem dúvidas em afirmar que acredita que mal a situação foi detetada, “foi comunicada ao Banco de Portugal e o Banco de Portugal iniciou seguramente uma investigação.”
Aliás, Paulo Saragoça da Matta nem admite qualquer hipótese legal que legitime o Banco de Portugal a não fazer nada.´
Pedro Marinho Falcão acrescentou uma nota importante. “O Banco de Portugal organiza e gere a denominada Base de Dados de Contas. A responsabilidade pela informação relativa às contas abertas e aos cofres locados é das entidades participantes que a reportam, através do sistema de comunicação eletrónica BPnet. Tendo havido extravio de informação da base de dados do banco, importará saber se a informação consta da base de dados do próprio Banco de Portugal”, explicou o jurista.
“Esta perda é estranha porque é um incumprimento gravoso e uma infração particularmente grave”
“Não é normal”, continuou Saragoça da Matta, que se percam os documentos de abertura de conta, até por causa da política “Know Your Customer” e do dever de identificação e do conhecimento do cliente impostos pela lei de combate ao branqueamento de capitais.
“Não é possível, nem comigo, nem com ninguém. Um banco é obrigado a guardá-los e mais: é obrigado a guardá-los em suportes fiáveis, de preferência eletrónicos, e que sejam consultáveis pela direcção de topo da instituição de crédito e pelas autoridades” judiciais. “Portanto, naturalmente que esta perda é estranha, porque é um incumprimento gravoso e por isso isto é uma infração particularmente grave”, concluiu o advogado.
Houve perda de documentação relevante, relativa a um PEP, o que não pode deixar de ter consequências, pelo menos ao nível da investigação do sucedido pelas autoridades competentes”, enfatizou Saragoça da Matta. A mesma conclusão foi referida ao Observador pelos outros juristas que solicitaram o anonimato.
O Observador solicitou igualmente a Nuno Sampayo Ribeiro uma análise jurídica deste caso, mas o advogado fiscalista recusou fazer mais comentários além dos que já tinha feito na sua coluna habitual no jornal Público. Neste espaço, Sampayo Ribeiro escreveu que os factos acima descritos “materializam um dano reputacional severo na perceção do sistema bancário como intermediário de confiança”.
Porquê? “Porque não se pode excluir que um “tal extravio de documentos bancários origine estupefação e alarme social nas pessoas, sobre a segurança dos seus haveres nos bancos, ou sobre o cumprimento pelos bancos dos deveres de prevenção do branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo”.
“Não será do interesse público e de todas as partes envolvidas prestar um esclarecimento mais detalhado?”, perguntava Sampayo Ribeiro.
Apenas António Costa o fez. O Banco de Portugal e o Bankinter refugiam-se no segredo.