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Encomendou comida, chamou os amigos, Mário Cesariny sentou-se ao piano e Alice Pinto Coelho dançou pela minúscula sala como se os metros quadrados fossem ilimitados. 50 anos depois dessa noite de 5 de maio de 1972, haverá algum dos foliões inaugurais presente na festa dos 50 anos? “Há, a minha mãe!”, ri-se Maria João Pinto Coelho, uma das filhas hoje ao leme do Procópio, o clássico que se quer eterno como todos os clássicos. O piano calou-se, os resistentes foram perdendo voz com ele, mas há vida para lá da famosa Mesa Dois eternizada por um não menos célebre “Império de Sentados”, como lhes chamou o habitué Francisco Seixas da Costa.
Ouça aqui a reportagem áudio no Procópio.
Procópio. “Não estavam habituados a um bar que não fosse de alterne”
O destino do bar que cruzou Abril não foi sempre florido. Viriam ainda as revoluções da 24 de Julho e da Covid-19, espinhosas na memória, entre a concorrência da movida e o assédio de um vírus que quase se revelou letal. Chegado a 2022, com a terceira geração de mangas arregaçadas atrás do balcão, segue com renovada casa cheia, ao ritmo dos populares cocktails. “Não se pode pôr esta música mais alta?”, pergunta a anfitriã do alto dos seus 84 anos, que por momentos abandona o escritório que improvisou no canto da sala para se juntar à conversa, entre cigarros e um copo de imperial. Aumentem por favor o volume dos Isley Brothers.
“Um dia o empregado cansou-se de sair daqui às cinco da manhã e disse ao Nuno Brederode: ‘Ai é, o senhor doutor não sai? Então vou-me embora’. Ficou fechado cá dentro”
Apanhámo-la ao telefone a tratar dos convites para a festa.
Alice Pinto Coelho (APC) — Estava a falar para a Edite Estrela. Falei para um amigo que me deu uns números de telefone. Isto vai passando e vão aparecendo. Gostam muito. Logo se vê quem está no dia 5. Já são muitos menos, têm morrido….
Muitos deles vão sentar-se onde estamos, na mítica Mesa Dois, que não dará para mais de oito. Como é que a anfitriã tem feito essa gestão diplomática dos lugares ao longo dos anos?
A anfitriã às vezes via-se aflita com isso. Porque isto é muito pequeno, e eles queriam a mesa para as onze e tal, entretanto isto estava cheio. Pedíamos para esperar um pouco, ou iam para outra mesa… mas eles só queriam esta mesa. Tinham que esperar e não queriam.
Como é que surgiu esta tradição?
Isto surgiu com o Nuno Brederode Santos, ele era o pilar da Mesa Dois. Aí está, dos três irmãos Brederode só resta a Emilinha. Falei hoje com ela também. Vem com certeza, que adora. Começou com ele, que praticamente estava aqui desde as seis da tarde até ao fecho.
Abria e fechava a casa.
Era, abria e fechava a casa. Ele ficava aqui à conversa, eu ia-me embora e dizia, “ó Nuno o empregado tem que se deitar”. Saíam daqui às cinco, seis da manhã.
![Entrevista a Alice Pinto Coelho e às suas duas filhas, donas do Bar Procópio que faz 50 anos. Juntas relembram todas os momentos e personagens que por ali passaram. 22 de Abril de 2022 Bar Procópio, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR](https://bordalo.observador.pt/v2/q:84/rs:fill:3000:2000/c:3000:2000:nowe:0:0/plain/https://s3.observador.pt/wp-content/uploads/2022/04/22213657/img-3589.jpeg)
▲ Prefere estar ao balcão do que sentada às mesas. É no seu recanto, agora junto à televisão e ao cinzeiro, que encontramos Alice Pinto Coelho.
TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
Nunca fechavam a horas oficiais.
Não, ficava aberto para o Nuno. Um dia disse-lhe “vou-lhe dar as chaves”.
Chegou a dar-lhe?
Não, mas houve uma festa em que resolvi arranjar umas chaves velhas nas Chaves do Areeiro, juntei uma data delas e dei a cada convidado. Acharam muita graça terem a chave do Procópio. O mais engraçado é que a chave do Jorge Strecht Ribeiro entrava na fechadura! Era o único. Foi ao calhas. Mas estava a falar do Nuno Brederode… Um dia o empregado cansou-se de sair daqui às cinco da manhã e disse “ai é, o senhor doutor não sai? Então vou-me embora e fecho”.
Deixou-o cá dentro?
Deixou-o cá dentro com a Céu Guerra. Bem, depois houve quem me dissesse que os viram a saltar a janela da casa de banho das senhoras para a rua [risos].
Terá sido em que ano?
A Céu deve-se lembrar melhor que eu… anos 90.
A mesa compõe-se portanto nesses anos 80/90.
É, 80, 90. Até aos anos 80 não havia. Atrás do Nuno começaram a vir muitas coisas. Escrevia muito bem. Quando o Cavaco deixou de ser presidente e não sei quê ele não sabia sobre o que escrever “já não tenho o Cavaco para atacar” [risos].
Ficaram famosas as tertúlias da 2. E também há muito namoro?
Sofia Pinto Coelho (SPC) — Ui, meu Deus. É um bar de apaixonados.
APC — Esta Mesa UM era conhecida.
Maria João Pinto Coelho (MJPC) — Quando me ligam a marcar mesa, “quero aquela lá do fundo, muito escurinha”…. Tivemos que pôr uma lâmpada mais forte aqui neste canto, senão ainda éramos madrinhas.
APC — Era um bar para conversar. Uma vez tentei pôr fados estava tudo muito chateado. Outra vez pus um brasileiro a tocar, também não conseguiam conversar. Gosto de música de jazz em fundo.
Têm wifi já há uns anos. Passaram a conversar menos?
MJPC — Aí há uns oito anos. Mas aqui conversam. A maior parte vem para aqui e nem olha para o telemóvel.
A Alice ainda vem todas as noites como era hábito?
APC — Agora ando a falhar mais. Desde que elas estão a colaborar falho mais. Até porque a malta da minha idade não vem. Chego cá: “Quem é aquela senhora de idade de cabelo branco que está no bar?”. Sou eu.
O problema é não terem a sua vitalidade.
Sei lá, isto é dos genes. Não faço nada de especial. Ó Zé, posso-lhe pedir uma imperial?
Um fazedor de bares e três revoluções: o 25 de abril, a 24 de julho e ainda a Covid-19
Foi de Paris, no começo dos anos 50, que Alice e Luís Pinto Coelho trouxeram a ideia do Procópio, inspirados pelo não menos histórico Procope, que se mantém aberto, ainda que noutra encarnação. Casaram-se em 1969. Tiveram três filhos. Separaram-se em 1974, ano em que Alice continuaria ao leme do Procópio e Luís abriria A Paródia, em Campo de Ourique. A lista de bares icónicos inaugurados pelo decorador cresceu com o Fox Trot, que lançou no Príncipe Real em 1978, e por fim com o Pavilhão Chinês, aberto em 1982. Luís morreria em 2012. Nessa altura, já a filha mais velha, Maria João, se juntara ao fundador bar junto ao Jardim das Amoreiras, para ajudar a renovar o negócio.
E depois da festa, quais os planos para os próximos 50 anos?
MJPC — [risos] As nossas prioridades estão feitas, contratámos este barman profissional, o José Barros, campeão do mundo, e é continuar a consolidar a posição do bar enquanto bar de cocktails, que é o que o mercado tem pedido. Adaptar é o que nos faz sobreviver estas décadas todas.
![Entrevista a Alice Pinto Coelho e às suas duas filhas, donas do Bar Procópio que faz 50 anos. Juntas relembram todas os momentos e personagens que por ali passaram. 22 de Abril de 2022 Bar Procópio, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR](https://bordalo.observador.pt/v2/q:84/rs:fill:3000:2000/c:3000:2000:nowe:0:0/plain/https://s3.observador.pt/wp-content/uploads/2022/04/22213717/img-3687.jpeg)
▲ Entre a comunicação e o marketing, mais nos bastidores ou recebendo quem chega, as irmãs Maria João e Sofia Pinto Coelho dão continuidade à herança de família.
TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
Quais foram os maiores desafios?
MJPC — Os grandes desafios foram na altura da Revolução quando a minha mãe tinha 30 e tal anos, e depois mais tarde, quando abriram o Bairro Alto e a 24 de Julho. Foi o pânico, isto ficou às moscas. Usámos como ferramenta de guerrilha os meios de comunicação. Fizemos postais, lançámos uma nova imagem.
SPC — Já tínhamos lançado os prémios do Procópio [em 1986, que distinguiam várias figuras da sociedade].
MJPC — Fizemos o livro dos 35 anos. O bar renasceu como bar de tertúlia e atraímos gente nova que redescobriu um bar vintage. Renovámos a clientela quando a minha mãe já tinha 70 anos. A crise voltou com a pandemia, quando nos obrigaram a fechar as portas com isto a abarrotar. Recebíamos pedidos de informação de todo o lado, recebíamos imensos estrangeiros.
Como reagiram nesta fase?
MJPC — Abrimos como restaurante, reorganizámos, formámos. Tínhamos a esplanadinha lá fora que conseguimos abrir há uns anos. Conseguimos sobreviver com muita força de vontade. O futuro é passar à geração seguinte, se houver interesse.
SPC -— É preciso gostar muito. Isto era o projeto de vida dos meus pais.
MJPC — Sabes que também é um pouco o meu projeto. Sou muito ligada às heranças familiares como passagem de testemunho. Gostava de tomar conta do Pavilhão Chinês, por exemplo. Era outra coisa quando tinha o pai lá dentro.
SPC — Adoro o bar mas não me vejo a vir todas as noites para aqui. Como filha, vi a minha mãe fazê-lo todas as noites e eu não a tive. Não me queixo, mas há um sacrifício que não me apetece fazer.
MJPC — Somos como o Obelix, caímos no caldeirão em pequenas. Acompanhámos o meu pai a fazer bares e discotecas a adolescência toda. É como se tivéssemos um curso intensivo de como fazer. Ele leváva-nos para o atelier, para as compras nos antiquários.
SPC — Andávamos entre os marceneiros, pintores… Conhecemos todos.
Foi pelo menos divertido.
MJPC — Era muito divertido o nosso pai. Deu-nos uma infância muito engraçada. Não te lembras de fazermos os vidrinhos para estes candeeiros?
SPC — E lembro-me de ele abrir um Pavilhão Chinês em Madrid, que durou um ano ou dois, num antigo cinema. Nunca me desliguei totalmente mesmo quando vivi dez anos em Barcelona.
MJPC — Fez os bares dele e vivia de fazer bares e discotecas, hotéis e restaurantes. Imensa coisa. Lembro-me de ir a Paris comprar equipamento de som para uma discoteca. Era a Discom.
SPC — E acabámos por nos encontrar com a mãe, já eles estavam separados, mas davam-se bem. Temos uma foto todos juntos. Eu tinha 18 anos, e andava sempre com a máquina. Tinham em comum o gosto pela noite e por criar. A minha mãe pinta lindamente.
É verdade. Ainda mantém o hábito?
MJPC — Graças a Deus retomou esse gosto que tinha desde jovem. Não pôde seguir Belas Artes porque uma menina de famílias não podia seguir porque havia nus.
E vende alguns dos quadros?
SPC — As pessoas querem comprar mas ela prefere oferecer. Aquele quadro ali é dela [aponta para uma das paredes].
![Entrevista a Alice Pinto Coelho e às suas duas filhas, donas do Bar Procópio que faz 50 anos. Juntas relembram todas os momentos e personagens que por ali passaram. 22 de Abril de 2022 Bar Procópio, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR](https://bordalo.observador.pt/v2/q:84/rs:fill:3000:2000/c:3000:2000:nowe:0:0/plain/https://s3.observador.pt/wp-content/uploads/2022/04/22213707/img-3641.jpeg)
▲ A aprender, atrás o balcão, ou do lado de cá, a terceira geração da família vai-se entrosando com a vida do Procópio. Antes de Martim (na foto) já o irmão Tomás passou aqui 12 anos no papel de barman.
TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
Como é que chegaram a este espaço onde nasceu o Procópio? Era uma carvoaria, chapeleira?
APC — Era chapeleira. E era só daquela viga para lá. Tinha um balcão e um senhor que vendia chapéus. Daqui deste lado era uma senhora que vivia nestas casinhas. Como havia uma vaga lá para trás fizemos obras na outra casa e ela mudou-se para a outra e deixou vago este espaço. Não é grande mas é o espaço exato.
Encontraram-no como?
APC — Por acaso. O pai delas chegou a casa e disse que tinha visto uma coisa que parecia que estava para alugar. Viemos cá e começámos a falar com as vizinhas.
Estão rodeados de casinhas neste recanto com algumas habitações. Nunca tiveram chatices com vizinhos?
APC — Há um vizinho, um único, que veio para aqui em 2019, e desde que veio são queixas diárias. Ele quer fechar o Procópio. Deu-lhe para ali.
MJPC — Tenta fazer movimentos populares com abaixo assinados com duas pessoas.
SPC — E pessoas que não vivem aqui. Conseguiu cinco assinaturas.
Se calhar se o convidar para um copo, Alice…
APC — Nem o quero cá.
“Quando isto abriu não estavam habituados a um bar que não fosse de alterne. Tive que pôr umas pessoas lá fora”
Alice sempre seguiu o seu horário. Aparecia antes do jantar, depois ia a casa, e quando os filhos já estavam deitados saía de novo. Das onze e meia até a porta se fechar, não arredava pé. Mantém o seu pequeno “escritório” improvisado a um canto do bar, onde mais gosta de estar. As filhas bem se lembram da rotina da mãe ao longo de anos. Nuno, o irmão do meio, que também passou pelo bar, morreu há uma década.
Sofia foi fotógrafa, depois montou uma empresa. Quando foi necessário, tornou-se presente no bar. Hoje desempenha muito do papel que até há poucos anos era assegurado por Luís, um dos veteranos atrás do balcão e anfitrião de serviço. Maria João trabalha para o Procópio há 15 anos, quando ainda acumulava o trabalho em agências de comunicação com o bar. Do site às redes sociais, vai estando entre o back office e a comunicação. Perto da montra de garrafas, avista-se já a terceira geração envolvida no negócio, Martim.
Que Lisboa era essa em 1972, quando o Procópio abriu portas?
APC — Era uma aldeiazinha. Era aquele género do “parece mal”. Mas antes disto tivemos uma coisa toda modernaça, que era a Outra Face da Lua. Depois copiaram o nome e abriram aí umas lojecas. Isto era uma coisa muito gira que havia ali na Rosa Araújo. Era uma boutique até às sete e depois era bar. Tinha orquestras a tocar, era prá frentex.
Havia público para um projeto deste?
Era uma estreia. Depois daquilo fizemos um bar clássico.
Foi uma grande mudança. Porquê clássico?
Porque é bonito. Não passa de tempo. Está sempre. O outro se voltasse hoje era top. Era decorado pelo António Alfredo, com uma fachada dinâmica.
Aqui manteve-se sempre a decoração?
Sempre mantive, tentar que ficasse igual a como abriu. Decorámos isto a meias. Ele [o ex-marido] seguiu a vida de decorador e eu fiquei com o bar e com três filhos.
![](https://bordalo.observador.pt/v2/q:84/rs:fill:560/plain/https://s3.observador.pt/wp-content/uploads/2022/04/26123830/luis-alice-pintocoelho.jpg)
Luís e Alice Pinto Coelho © Bar Procópio
O que lhe dava mais trabalho?
APC — [risos] Os três filhos.
SPC — Não dávamos nada. Ela de noite estava no bar, de manhã dormia. Nós tínhamos muita liberdade.
As filhas saíam à noite?
APC — A João adorava. Mas para aqui não vinham.
MJPC — Eu vinha, com 14 anos. Tinha imensa curiosidade em ouvir as conversas, adorava política.
Parte do segredo do negócio calculo que seja ouvir e calar.
APC — É fundamental ouvir e calar. Fartaram-se de me pedir para escrever um livro de memórias… não escrevo. É muita coisa. Tenho o chip já muito carregado. Fazia um bocadinho trabalho de psiquiatra. Pronto, já passou. Aguentar um bar 50 anos… é impossível que não me tenha ensinado nada.
O que é essencial? O que havia de tão especial para isto resultar?
Era alta, loura, de olhos azuis. Vinham cá para ver uma louraça. Só podia [risos].
Quem esperou que viesse ao bar e não veio?
Não me lembro de quem não entrou. Há uns que entraram e que eu não dei por eles. Por exemplo, o Otelo, disseram-me que esteve cá, nem dei por ele.
Recebia toda a gente?
Recebia toda a gente. Às vezes punha umas pessoas fora, se se portavam mal.
Viu-se obrigada a convidar pessoas a sair?
Várias. Então quando isto abriu não estavam habituados a um bar que não fosse de alterne… Alguns conhecidos vinham ver se engatavam. Lisboa não estava preparada para um bar em que as senhoras viessem.
Era um escândalo ainda?
Era… E vinham em casal. Umas começaram a vir à tarde porque eu dizia que tinha chá e torradas. Depois à noite as senhoras começaram a vir sozinhas. Perguntavam por mim e lá estava. A pouco e pouco começaram a ter essa coragem.
Sentia esse preconceito?
Sentia. Era uma mãe de família com um bar. Aqui não sentia, mas fora do bar… E como me separei em 74. Eu sou dos separados do 25 de Abril. Lá lhes passou.
“Quando os empregados fizeram greve abrimos com os amigos. O Ruela Ramos aparecia de avental e rebentou com a máquina de café”
Pedimos desculpa por esta interrupção mas parece alguém avariou a máquina do café. Pediu o quê? Esqueça. Acabaram-se os limões.
Recorda-se da inauguração? Como foi essa noite?
APC — Então não me recordo. O piano ainda tocava. Era o Cesariny ao piano e o [José] Escada, e eu a dançar por aquele corredor até à porta e da porta até ao piano. Foi um cocktail e ninguém se queria ir embora. Mandei vir comida da tasca Porco Sujo que mais tarde passou a Papagaio. Ficámos aqui até à meia noite, uma da manhã. Ninguém queria ir embora.
Era um bar de amigos na altura.
Sim, isto encheu-se. Depois em 1974 deu-se o 25 de Abril e as pessoas que vinham cá fugiram para o Brasil e para Espanha, e Suíça. Uns fugiram não sei porquê, se calhar porque era giro fugir. Quem não fugisse era comuna. Naquela altura era tudo muito parvo. Depois isto ficou vazio. “E agora, o que é que vai acontecer aqui?” Estava cá sempre um militar que era conselheiro político do Eanes, e amigo, o Aventino Teixeira.
Outra figura-chave aqui. Aliás, diz-se que inventou no Procópio o acrónimo PREC. É verdade?
Há quem diga. O Aventino esteve cá várias vezes com o Eanes. Nessa altura começou a haver uma corrida de jornalistas, que vinham atrás dos estrangeiros. Os estrangeiros iam ao Grémio Literário almoçar e depois ao fim do dia vinham para aqui, e os jornalistas portugueses vinham atrás.
E vinham escutar e fazer fila para o telefone, para ligar para as redações.
Era. Foi muito engraçado.
Como viveram aqui o 25 de Abril?
O bar ficou fechado. Eu e o meu ex marido viemos para aqui com os empregados. Abrimos uma garrafa de champanhe. E depois pronto. Ficou vazio, mais tarde ficou cheio de novo.
Quando é que recuperam?
Aí anos 76, 77. Era um bar político, basicamente. Nem todos eram políticos, embora falassem de política. Falavam-se todos. Os de direita fugiam porque achavam que isto era um bar de esquerda. Ainda tenho fama de ter um bar de esquerda, não me importo nada.
![Entrevista a Alice Pinto Coelho e às suas duas filhas, donas do Bar Procópio que faz 50 anos. Juntas relembram todas os momentos e personagens que por ali passaram. 22 de Abril de 2022 Bar Procópio, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR](https://bordalo.observador.pt/v2/q:84/rs:fill:3000:2000/c:3000:2000:nowe:0:0/plain/https://s3.observador.pt/wp-content/uploads/2022/04/22213720/img-3694.jpeg)
▲ À direita, com o habitual "reservado", a famosa Mesa Dois. Às seis e meia de uma sexta-feira de chuva, meia hora depois de abrir, a casa já se vai compondo.
TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
Por outro lado, outros atacavam que se vinha ao bar da burguesa.
Era. Em 75 os comunistas estavam muito arrogantes. Eu dava-lhes na cabeça, não resistia. “Ah, tu és PPD como o teu ex-marido”. Eu disse, “o quê? Esses comunas cor de laranja? [risos] Eu estou à direita do CDS ou à esquerda do ELP [Exército de Libertação de Portugal]. Ainda não percebi bem”. Eles ficavam…[risos] Depois ligavam: “É do COPCON é para dizer que a vamos buscar”. “Está bem, mas não venham antes das três da manhã que eu só saio às três” [risos]. Eu nunca os levei a sério.
E nunca teve chatices à séria?
Não. Eu descia as escadas a olhar, a ver se estava lá alguém…
MJPC — Teve uma chatice séria, quando os empregados lhe queriam ficar com o bar.
Conte lá isso.
APC — Não foi assim tão importante. Tinha um barman mais velho que se chamava Albino Vladimiro Vilharada – o irmão era Lenine; eram de Peniche e o pai era do PCP tinha estado preso. Houve aquelas greves de hotelaria em que o pessoal não vinha, não podiam furar a greve. Bem, abri algumas vezes sem eles. Um que era banqueiro ia para a caixa.
Os clientes fizeram de empregados?
Eram os amigos, sim. Os amigos a fazer de empregados. As amigas iam para as mesas. Quando havia greve abríamos assim. O [arquiteto] Ruela Ramos aparecia com um barrete de cozinheiro branco e um avental enorme e dizia “senhora patroa, eu vou para a copa, vou fazer tostas”. Abria o postigo e dizia “estão duas tostas por sair!”. Rebentou com a máquina de café, não sabia funcionar com aquilo.
Quem vinha às mesas?
Umas amigas. A Teresa Barahona, que já morreu. Era uma ótima empregada. Trabalhava nos aviões, estava habituada. Lá se passaram as greves da hotelaria com estas cenas. Havia uns que o sonho eram serem barman e iam para trás do bar, partiam copos. Uma vez um senhor pediu um wiskey sour e o médico que estava lá não sabia fazer. “Dizes que não há limões”. E aquilo ali cheio de limões. “Estes são de plástico”, respondia ele aos clientes. [risos]
Um chafariz, um whiskey e a carta de cocktails, sem esquecer “as pipocas e o IVA”
No Procópio, a carta de bebidas acompanhou as tendências de cada década. Inicialmente, as conversas regavam-se quase em exclusivo com whiskey. A vodka juntou-se às noites disputando a atenção. Depois ainda o gin haveria de entrar em cena e, quando a moda secou, os cocktails fizeram a sua entrada triunfal. Pelo balcão, onde hoje encontramos José Barros, e ainda o catalão Marti, veem-se os chapeuzinhos e outros enfeites que ressuscitam coloridas imagens dos anos 80 e casam bem com qualquer feed de Instagram. À porta, o peculiar atributo que José Cardoso Pires haveria de eternizar no Livro de Bordo: “Um chafariz à porta de um bar é cá uma saudação que enternece o maior malvado”. Quase tão antigos, uma nota para os barmen que ajudaram a escrever a história da casa e que hoje se regem pelas horas de sol. Depois de mais de 20 anos, Luís foi abrir o seu café e contraria os velhos serões com horários das seis às seis. O são tomense Carlos zarpou para o estrangeiro há dois anos (ambos receberam convite para a festa). Antes deles, Juvenal orientou os copos ao longo de 16 anos. Falta Albino, claro, o tal que também pediu a Alice para atualizar ordenados.
A Alice chegou a estar atrás do balcão ou em casa de ferreiro…?
APC — Houve uma altura em que estive atrás do bar e fazia bebidas, uns três ou quatro cocktails.
Que cocktails saem hoje mais?
MJPC – Pornostar Martini, o Mary Jane [que foi criado por José Barros em homenagem a Maria João], ambos com maracujá. O Expresso martini é excelente, até o Martim já o faz bem. O Negroni. E o Irish Coffee, ex-libris da casa, e o cocktail de assinatura do Procópio também sai imenso, o 1972. E as margaritas e caipirinhas, claro. Só servimos clássicos criados por ele.
![Entrevista a Alice Pinto Coelho e às suas duas filhas, donas do Bar Procópio que faz 50 anos. Juntas relembram todas os momentos e personagens que por ali passaram. 22 de Abril de 2022 Bar Procópio, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR](https://bordalo.observador.pt/v2/q:84/rs:fill:3000:2000/c:3000:2000:nowe:0:0/plain/https://s3.observador.pt/wp-content/uploads/2022/04/22213725/img-3703.jpeg)
▲ Campeão português mundial de bar de 1991, pela IBA, José Barros é o atual chefe de bar. Reformulou o menu do Procópio e redesenhou a carta de long drinks e cocktails, agora com uma seleção de 43.
TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
Martim, já passaste pelo bar.
Sim, tanto como trabalhador como como consumidor. Às vezes isto tem umas fases complicadas em que é preciso manter a calma.
A mãe dizia que nem sempre era cool ter pais donos de bares, já mudou?
Como assim?
MJPC — Ele já nem percebe a questão[risos]. Sabes, Martim, é que as minhas amigas achavam um bocado esquisito a minha mãe ter um bar.
Martim — Ok, é que eu não tenho qualquer problema com isso. Até me orgulho. É um trabalho igual a outro. Agora estão a cortar um bocado as noites e até gosto de ter um sítio onde posso vir. Daqui já saio muitas vezes bem animado. [risos]
E as “pipocas e o IVA incluído” mantêm-se no menu?
MJPC — É, um bocadinho de sentido de humor nunca fez mal. E o Martim faz muito bem as pipocas.
Temos aqui um encontro de várias gerações.
APC — Isto era frequentado por muitos artistas, políticos, o Mário Soares esteve cá, o Sá Carneiro…
SPC — Lembro-me de ele me ter oferecido um pin de prata do PPD!
APC — Passou aqui muita gente. O Solnado, o Fonseca e Costa, o [cartoonista] António Antunes, o André Jordan, o Seixas da Costa…
MJPC — E os mais novos, também. A Carminho, a Inês Castelo Branco. Agora quem vem muito é o António Zambujo. Mas o tratamento é sempre igual.
Foi ter consigo, Alice?
Alice — O Zambujo não veio ter comigo eu é que fui ter com ele [risos]. Fui lhe dizer que gostava muito de o ter aqui.
SPC — Foi num dia em que queríamos fechar e eu pedi para não o porem na rua, “óh, mãe, vá lá é o Zambujo”.
Alice — Sim, deixei estar, mas pedi para saírem mal pudessem.