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Encomendou comida, chamou os amigos, Mário Cesariny sentou-se ao piano e Alice Pinto Coelho dançou pela minúscula sala como se os metros quadrados fossem ilimitados. 50 anos depois dessa noite de 5 de maio de 1972, haverá algum dos foliões inaugurais presente na festa dos 50 anos? “Há, a minha mãe!”, ri-se Maria João Pinto Coelho, uma das filhas hoje ao leme do Procópio, o clássico que se quer eterno como todos os clássicos. O piano calou-se, os resistentes foram perdendo voz com ele, mas há vida para lá da famosa Mesa Dois eternizada por um não menos célebre “Império de Sentados”, como lhes chamou o habitué Francisco Seixas da Costa.
Ouça aqui a reportagem áudio no Procópio.
Procópio. “Não estavam habituados a um bar que não fosse de alterne”
O destino do bar que cruzou Abril não foi sempre florido. Viriam ainda as revoluções da 24 de Julho e da Covid-19, espinhosas na memória, entre a concorrência da movida e o assédio de um vírus que quase se revelou letal. Chegado a 2022, com a terceira geração de mangas arregaçadas atrás do balcão, segue com renovada casa cheia, ao ritmo dos populares cocktails. “Não se pode pôr esta música mais alta?”, pergunta a anfitriã do alto dos seus 84 anos, que por momentos abandona o escritório que improvisou no canto da sala para se juntar à conversa, entre cigarros e um copo de imperial. Aumentem por favor o volume dos Isley Brothers.
“Um dia o empregado cansou-se de sair daqui às cinco da manhã e disse ao Nuno Brederode: ‘Ai é, o senhor doutor não sai? Então vou-me embora’. Ficou fechado cá dentro”
Apanhámo-la ao telefone a tratar dos convites para a festa.
Alice Pinto Coelho (APC) — Estava a falar para a Edite Estrela. Falei para um amigo que me deu uns números de telefone. Isto vai passando e vão aparecendo. Gostam muito. Logo se vê quem está no dia 5. Já são muitos menos, têm morrido….
Muitos deles vão sentar-se onde estamos, na mítica Mesa Dois, que não dará para mais de oito. Como é que a anfitriã tem feito essa gestão diplomática dos lugares ao longo dos anos?
A anfitriã às vezes via-se aflita com isso. Porque isto é muito pequeno, e eles queriam a mesa para as onze e tal, entretanto isto estava cheio. Pedíamos para esperar um pouco, ou iam para outra mesa… mas eles só queriam esta mesa. Tinham que esperar e não queriam.
Como é que surgiu esta tradição?
Isto surgiu com o Nuno Brederode Santos, ele era o pilar da Mesa Dois. Aí está, dos três irmãos Brederode só resta a Emilinha. Falei hoje com ela também. Vem com certeza, que adora. Começou com ele, que praticamente estava aqui desde as seis da tarde até ao fecho.
Abria e fechava a casa.
Era, abria e fechava a casa. Ele ficava aqui à conversa, eu ia-me embora e dizia, “ó Nuno o empregado tem que se deitar”. Saíam daqui às cinco, seis da manhã.
Nunca fechavam a horas oficiais.
Não, ficava aberto para o Nuno. Um dia disse-lhe “vou-lhe dar as chaves”.
Chegou a dar-lhe?
Não, mas houve uma festa em que resolvi arranjar umas chaves velhas nas Chaves do Areeiro, juntei uma data delas e dei a cada convidado. Acharam muita graça terem a chave do Procópio. O mais engraçado é que a chave do Jorge Strecht Ribeiro entrava na fechadura! Era o único. Foi ao calhas. Mas estava a falar do Nuno Brederode… Um dia o empregado cansou-se de sair daqui às cinco da manhã e disse “ai é, o senhor doutor não sai? Então vou-me embora e fecho”.
Deixou-o cá dentro?
Deixou-o cá dentro com a Céu Guerra. Bem, depois houve quem me dissesse que os viram a saltar a janela da casa de banho das senhoras para a rua [risos].
Terá sido em que ano?
A Céu deve-se lembrar melhor que eu… anos 90.
A mesa compõe-se portanto nesses anos 80/90.
É, 80, 90. Até aos anos 80 não havia. Atrás do Nuno começaram a vir muitas coisas. Escrevia muito bem. Quando o Cavaco deixou de ser presidente e não sei quê ele não sabia sobre o que escrever “já não tenho o Cavaco para atacar” [risos].
Ficaram famosas as tertúlias da 2. E também há muito namoro?
Sofia Pinto Coelho (SPC) — Ui, meu Deus. É um bar de apaixonados.
APC — Esta Mesa UM era conhecida.
Maria João Pinto Coelho (MJPC) — Quando me ligam a marcar mesa, “quero aquela lá do fundo, muito escurinha”…. Tivemos que pôr uma lâmpada mais forte aqui neste canto, senão ainda éramos madrinhas.
APC — Era um bar para conversar. Uma vez tentei pôr fados estava tudo muito chateado. Outra vez pus um brasileiro a tocar, também não conseguiam conversar. Gosto de música de jazz em fundo.
Têm wifi já há uns anos. Passaram a conversar menos?
MJPC — Aí há uns oito anos. Mas aqui conversam. A maior parte vem para aqui e nem olha para o telemóvel.
A Alice ainda vem todas as noites como era hábito?
APC — Agora ando a falhar mais. Desde que elas estão a colaborar falho mais. Até porque a malta da minha idade não vem. Chego cá: “Quem é aquela senhora de idade de cabelo branco que está no bar?”. Sou eu.
O problema é não terem a sua vitalidade.
Sei lá, isto é dos genes. Não faço nada de especial. Ó Zé, posso-lhe pedir uma imperial?
Um fazedor de bares e três revoluções: o 25 de abril, a 24 de julho e ainda a Covid-19
Foi de Paris, no começo dos anos 50, que Alice e Luís Pinto Coelho trouxeram a ideia do Procópio, inspirados pelo não menos histórico Procope, que se mantém aberto, ainda que noutra encarnação. Casaram-se em 1969. Tiveram três filhos. Separaram-se em 1974, ano em que Alice continuaria ao leme do Procópio e Luís abriria A Paródia, em Campo de Ourique. A lista de bares icónicos inaugurados pelo decorador cresceu com o Fox Trot, que lançou no Príncipe Real em 1978, e por fim com o Pavilhão Chinês, aberto em 1982. Luís morreria em 2012. Nessa altura, já a filha mais velha, Maria João, se juntara ao fundador bar junto ao Jardim das Amoreiras, para ajudar a renovar o negócio.
E depois da festa, quais os planos para os próximos 50 anos?
MJPC — [risos] As nossas prioridades estão feitas, contratámos este barman profissional, o José Barros, campeão do mundo, e é continuar a consolidar a posição do bar enquanto bar de cocktails, que é o que o mercado tem pedido. Adaptar é o que nos faz sobreviver estas décadas todas.
Quais foram os maiores desafios?
MJPC — Os grandes desafios foram na altura da Revolução quando a minha mãe tinha 30 e tal anos, e depois mais tarde, quando abriram o Bairro Alto e a 24 de Julho. Foi o pânico, isto ficou às moscas. Usámos como ferramenta de guerrilha os meios de comunicação. Fizemos postais, lançámos uma nova imagem.
SPC — Já tínhamos lançado os prémios do Procópio [em 1986, que distinguiam várias figuras da sociedade].
MJPC — Fizemos o livro dos 35 anos. O bar renasceu como bar de tertúlia e atraímos gente nova que redescobriu um bar vintage. Renovámos a clientela quando a minha mãe já tinha 70 anos. A crise voltou com a pandemia, quando nos obrigaram a fechar as portas com isto a abarrotar. Recebíamos pedidos de informação de todo o lado, recebíamos imensos estrangeiros.
Como reagiram nesta fase?
MJPC — Abrimos como restaurante, reorganizámos, formámos. Tínhamos a esplanadinha lá fora que conseguimos abrir há uns anos. Conseguimos sobreviver com muita força de vontade. O futuro é passar à geração seguinte, se houver interesse.
SPC -— É preciso gostar muito. Isto era o projeto de vida dos meus pais.
MJPC — Sabes que também é um pouco o meu projeto. Sou muito ligada às heranças familiares como passagem de testemunho. Gostava de tomar conta do Pavilhão Chinês, por exemplo. Era outra coisa quando tinha o pai lá dentro.
SPC — Adoro o bar mas não me vejo a vir todas as noites para aqui. Como filha, vi a minha mãe fazê-lo todas as noites e eu não a tive. Não me queixo, mas há um sacrifício que não me apetece fazer.
MJPC — Somos como o Obelix, caímos no caldeirão em pequenas. Acompanhámos o meu pai a fazer bares e discotecas a adolescência toda. É como se tivéssemos um curso intensivo de como fazer. Ele leváva-nos para o atelier, para as compras nos antiquários.
SPC — Andávamos entre os marceneiros, pintores… Conhecemos todos.
Foi pelo menos divertido.
MJPC — Era muito divertido o nosso pai. Deu-nos uma infância muito engraçada. Não te lembras de fazermos os vidrinhos para estes candeeiros?
SPC — E lembro-me de ele abrir um Pavilhão Chinês em Madrid, que durou um ano ou dois, num antigo cinema. Nunca me desliguei totalmente mesmo quando vivi dez anos em Barcelona.
MJPC — Fez os bares dele e vivia de fazer bares e discotecas, hotéis e restaurantes. Imensa coisa. Lembro-me de ir a Paris comprar equipamento de som para uma discoteca. Era a Discom.
SPC — E acabámos por nos encontrar com a mãe, já eles estavam separados, mas davam-se bem. Temos uma foto todos juntos. Eu tinha 18 anos, e andava sempre com a máquina. Tinham em comum o gosto pela noite e por criar. A minha mãe pinta lindamente.
É verdade. Ainda mantém o hábito?
MJPC — Graças a Deus retomou esse gosto que tinha desde jovem. Não pôde seguir Belas Artes porque uma menina de famílias não podia seguir porque havia nus.
E vende alguns dos quadros?
SPC — As pessoas querem comprar mas ela prefere oferecer. Aquele quadro ali é dela [aponta para uma das paredes].
Como é que chegaram a este espaço onde nasceu o Procópio? Era uma carvoaria, chapeleira?
APC — Era chapeleira. E era só daquela viga para lá. Tinha um balcão e um senhor que vendia chapéus. Daqui deste lado era uma senhora que vivia nestas casinhas. Como havia uma vaga lá para trás fizemos obras na outra casa e ela mudou-se para a outra e deixou vago este espaço. Não é grande mas é o espaço exato.
Encontraram-no como?
APC — Por acaso. O pai delas chegou a casa e disse que tinha visto uma coisa que parecia que estava para alugar. Viemos cá e começámos a falar com as vizinhas.
Estão rodeados de casinhas neste recanto com algumas habitações. Nunca tiveram chatices com vizinhos?
APC — Há um vizinho, um único, que veio para aqui em 2019, e desde que veio são queixas diárias. Ele quer fechar o Procópio. Deu-lhe para ali.
MJPC — Tenta fazer movimentos populares com abaixo assinados com duas pessoas.
SPC — E pessoas que não vivem aqui. Conseguiu cinco assinaturas.
Se calhar se o convidar para um copo, Alice…
APC — Nem o quero cá.
“Quando isto abriu não estavam habituados a um bar que não fosse de alterne. Tive que pôr umas pessoas lá fora”
Alice sempre seguiu o seu horário. Aparecia antes do jantar, depois ia a casa, e quando os filhos já estavam deitados saía de novo. Das onze e meia até a porta se fechar, não arredava pé. Mantém o seu pequeno “escritório” improvisado a um canto do bar, onde mais gosta de estar. As filhas bem se lembram da rotina da mãe ao longo de anos. Nuno, o irmão do meio, que também passou pelo bar, morreu há uma década.
Sofia foi fotógrafa, depois montou uma empresa. Quando foi necessário, tornou-se presente no bar. Hoje desempenha muito do papel que até há poucos anos era assegurado por Luís, um dos veteranos atrás do balcão e anfitrião de serviço. Maria João trabalha para o Procópio há 15 anos, quando ainda acumulava o trabalho em agências de comunicação com o bar. Do site às redes sociais, vai estando entre o back office e a comunicação. Perto da montra de garrafas, avista-se já a terceira geração envolvida no negócio, Martim.
Que Lisboa era essa em 1972, quando o Procópio abriu portas?
APC — Era uma aldeiazinha. Era aquele género do “parece mal”. Mas antes disto tivemos uma coisa toda modernaça, que era a Outra Face da Lua. Depois copiaram o nome e abriram aí umas lojecas. Isto era uma coisa muito gira que havia ali na Rosa Araújo. Era uma boutique até às sete e depois era bar. Tinha orquestras a tocar, era prá frentex.
Havia público para um projeto deste?
Era uma estreia. Depois daquilo fizemos um bar clássico.
Foi uma grande mudança. Porquê clássico?
Porque é bonito. Não passa de tempo. Está sempre. O outro se voltasse hoje era top. Era decorado pelo António Alfredo, com uma fachada dinâmica.
Aqui manteve-se sempre a decoração?
Sempre mantive, tentar que ficasse igual a como abriu. Decorámos isto a meias. Ele [o ex-marido] seguiu a vida de decorador e eu fiquei com o bar e com três filhos.
O que lhe dava mais trabalho?
APC — [risos] Os três filhos.
SPC — Não dávamos nada. Ela de noite estava no bar, de manhã dormia. Nós tínhamos muita liberdade.
As filhas saíam à noite?
APC — A João adorava. Mas para aqui não vinham.
MJPC — Eu vinha, com 14 anos. Tinha imensa curiosidade em ouvir as conversas, adorava política.
Parte do segredo do negócio calculo que seja ouvir e calar.
APC — É fundamental ouvir e calar. Fartaram-se de me pedir para escrever um livro de memórias… não escrevo. É muita coisa. Tenho o chip já muito carregado. Fazia um bocadinho trabalho de psiquiatra. Pronto, já passou. Aguentar um bar 50 anos… é impossível que não me tenha ensinado nada.
O que é essencial? O que havia de tão especial para isto resultar?
Era alta, loura, de olhos azuis. Vinham cá para ver uma louraça. Só podia [risos].
Quem esperou que viesse ao bar e não veio?
Não me lembro de quem não entrou. Há uns que entraram e que eu não dei por eles. Por exemplo, o Otelo, disseram-me que esteve cá, nem dei por ele.
Recebia toda a gente?
Recebia toda a gente. Às vezes punha umas pessoas fora, se se portavam mal.
Viu-se obrigada a convidar pessoas a sair?
Várias. Então quando isto abriu não estavam habituados a um bar que não fosse de alterne… Alguns conhecidos vinham ver se engatavam. Lisboa não estava preparada para um bar em que as senhoras viessem.
Era um escândalo ainda?
Era… E vinham em casal. Umas começaram a vir à tarde porque eu dizia que tinha chá e torradas. Depois à noite as senhoras começaram a vir sozinhas. Perguntavam por mim e lá estava. A pouco e pouco começaram a ter essa coragem.
Sentia esse preconceito?
Sentia. Era uma mãe de família com um bar. Aqui não sentia, mas fora do bar… E como me separei em 74. Eu sou dos separados do 25 de Abril. Lá lhes passou.
“Quando os empregados fizeram greve abrimos com os amigos. O Ruela Ramos aparecia de avental e rebentou com a máquina de café”
Pedimos desculpa por esta interrupção mas parece alguém avariou a máquina do café. Pediu o quê? Esqueça. Acabaram-se os limões.
Recorda-se da inauguração? Como foi essa noite?
APC — Então não me recordo. O piano ainda tocava. Era o Cesariny ao piano e o [José] Escada, e eu a dançar por aquele corredor até à porta e da porta até ao piano. Foi um cocktail e ninguém se queria ir embora. Mandei vir comida da tasca Porco Sujo que mais tarde passou a Papagaio. Ficámos aqui até à meia noite, uma da manhã. Ninguém queria ir embora.
Era um bar de amigos na altura.
Sim, isto encheu-se. Depois em 1974 deu-se o 25 de Abril e as pessoas que vinham cá fugiram para o Brasil e para Espanha, e Suíça. Uns fugiram não sei porquê, se calhar porque era giro fugir. Quem não fugisse era comuna. Naquela altura era tudo muito parvo. Depois isto ficou vazio. “E agora, o que é que vai acontecer aqui?” Estava cá sempre um militar que era conselheiro político do Eanes, e amigo, o Aventino Teixeira.
Outra figura-chave aqui. Aliás, diz-se que inventou no Procópio o acrónimo PREC. É verdade?
Há quem diga. O Aventino esteve cá várias vezes com o Eanes. Nessa altura começou a haver uma corrida de jornalistas, que vinham atrás dos estrangeiros. Os estrangeiros iam ao Grémio Literário almoçar e depois ao fim do dia vinham para aqui, e os jornalistas portugueses vinham atrás.
E vinham escutar e fazer fila para o telefone, para ligar para as redações.
Era. Foi muito engraçado.
Como viveram aqui o 25 de Abril?
O bar ficou fechado. Eu e o meu ex marido viemos para aqui com os empregados. Abrimos uma garrafa de champanhe. E depois pronto. Ficou vazio, mais tarde ficou cheio de novo.
Quando é que recuperam?
Aí anos 76, 77. Era um bar político, basicamente. Nem todos eram políticos, embora falassem de política. Falavam-se todos. Os de direita fugiam porque achavam que isto era um bar de esquerda. Ainda tenho fama de ter um bar de esquerda, não me importo nada.
Por outro lado, outros atacavam que se vinha ao bar da burguesa.
Era. Em 75 os comunistas estavam muito arrogantes. Eu dava-lhes na cabeça, não resistia. “Ah, tu és PPD como o teu ex-marido”. Eu disse, “o quê? Esses comunas cor de laranja? [risos] Eu estou à direita do CDS ou à esquerda do ELP [Exército de Libertação de Portugal]. Ainda não percebi bem”. Eles ficavam…[risos] Depois ligavam: “É do COPCON é para dizer que a vamos buscar”. “Está bem, mas não venham antes das três da manhã que eu só saio às três” [risos]. Eu nunca os levei a sério.
E nunca teve chatices à séria?
Não. Eu descia as escadas a olhar, a ver se estava lá alguém…
MJPC — Teve uma chatice séria, quando os empregados lhe queriam ficar com o bar.
Conte lá isso.
APC — Não foi assim tão importante. Tinha um barman mais velho que se chamava Albino Vladimiro Vilharada – o irmão era Lenine; eram de Peniche e o pai era do PCP tinha estado preso. Houve aquelas greves de hotelaria em que o pessoal não vinha, não podiam furar a greve. Bem, abri algumas vezes sem eles. Um que era banqueiro ia para a caixa.
Os clientes fizeram de empregados?
Eram os amigos, sim. Os amigos a fazer de empregados. As amigas iam para as mesas. Quando havia greve abríamos assim. O [arquiteto] Ruela Ramos aparecia com um barrete de cozinheiro branco e um avental enorme e dizia “senhora patroa, eu vou para a copa, vou fazer tostas”. Abria o postigo e dizia “estão duas tostas por sair!”. Rebentou com a máquina de café, não sabia funcionar com aquilo.
Quem vinha às mesas?
Umas amigas. A Teresa Barahona, que já morreu. Era uma ótima empregada. Trabalhava nos aviões, estava habituada. Lá se passaram as greves da hotelaria com estas cenas. Havia uns que o sonho eram serem barman e iam para trás do bar, partiam copos. Uma vez um senhor pediu um wiskey sour e o médico que estava lá não sabia fazer. “Dizes que não há limões”. E aquilo ali cheio de limões. “Estes são de plástico”, respondia ele aos clientes. [risos]
Um chafariz, um whiskey e a carta de cocktails, sem esquecer “as pipocas e o IVA”
No Procópio, a carta de bebidas acompanhou as tendências de cada década. Inicialmente, as conversas regavam-se quase em exclusivo com whiskey. A vodka juntou-se às noites disputando a atenção. Depois ainda o gin haveria de entrar em cena e, quando a moda secou, os cocktails fizeram a sua entrada triunfal. Pelo balcão, onde hoje encontramos José Barros, e ainda o catalão Marti, veem-se os chapeuzinhos e outros enfeites que ressuscitam coloridas imagens dos anos 80 e casam bem com qualquer feed de Instagram. À porta, o peculiar atributo que José Cardoso Pires haveria de eternizar no Livro de Bordo: “Um chafariz à porta de um bar é cá uma saudação que enternece o maior malvado”. Quase tão antigos, uma nota para os barmen que ajudaram a escrever a história da casa e que hoje se regem pelas horas de sol. Depois de mais de 20 anos, Luís foi abrir o seu café e contraria os velhos serões com horários das seis às seis. O são tomense Carlos zarpou para o estrangeiro há dois anos (ambos receberam convite para a festa). Antes deles, Juvenal orientou os copos ao longo de 16 anos. Falta Albino, claro, o tal que também pediu a Alice para atualizar ordenados.
A Alice chegou a estar atrás do balcão ou em casa de ferreiro…?
APC — Houve uma altura em que estive atrás do bar e fazia bebidas, uns três ou quatro cocktails.
Que cocktails saem hoje mais?
MJPC – Pornostar Martini, o Mary Jane [que foi criado por José Barros em homenagem a Maria João], ambos com maracujá. O Expresso martini é excelente, até o Martim já o faz bem. O Negroni. E o Irish Coffee, ex-libris da casa, e o cocktail de assinatura do Procópio também sai imenso, o 1972. E as margaritas e caipirinhas, claro. Só servimos clássicos criados por ele.
Martim, já passaste pelo bar.
Sim, tanto como trabalhador como como consumidor. Às vezes isto tem umas fases complicadas em que é preciso manter a calma.
A mãe dizia que nem sempre era cool ter pais donos de bares, já mudou?
Como assim?
MJPC — Ele já nem percebe a questão[risos]. Sabes, Martim, é que as minhas amigas achavam um bocado esquisito a minha mãe ter um bar.
Martim — Ok, é que eu não tenho qualquer problema com isso. Até me orgulho. É um trabalho igual a outro. Agora estão a cortar um bocado as noites e até gosto de ter um sítio onde posso vir. Daqui já saio muitas vezes bem animado. [risos]
E as “pipocas e o IVA incluído” mantêm-se no menu?
MJPC — É, um bocadinho de sentido de humor nunca fez mal. E o Martim faz muito bem as pipocas.
Temos aqui um encontro de várias gerações.
APC — Isto era frequentado por muitos artistas, políticos, o Mário Soares esteve cá, o Sá Carneiro…
SPC — Lembro-me de ele me ter oferecido um pin de prata do PPD!
APC — Passou aqui muita gente. O Solnado, o Fonseca e Costa, o [cartoonista] António Antunes, o André Jordan, o Seixas da Costa…
MJPC — E os mais novos, também. A Carminho, a Inês Castelo Branco. Agora quem vem muito é o António Zambujo. Mas o tratamento é sempre igual.
Foi ter consigo, Alice?
Alice — O Zambujo não veio ter comigo eu é que fui ter com ele [risos]. Fui lhe dizer que gostava muito de o ter aqui.
SPC — Foi num dia em que queríamos fechar e eu pedi para não o porem na rua, “óh, mãe, vá lá é o Zambujo”.
Alice — Sim, deixei estar, mas pedi para saírem mal pudessem.