Divide os dias entre o escritório e a horta, onde colhe os vegetais que cultiva. Lá fora tem galinhas e cordeiros, os mesmos que ajuda a nascer. Lá dentro, nas estantes, está a estatueta que venceu em maio na categoria de ficção — o Prémio Pulitzer, uma das mais importantes distinções do meio literário, jornalístico e musical.
Para Barbara Kingsolver, Demon Copperhead (publicado agora em Portugal pela Suma de Letras) é uma vitória sobretudo para as pessoas da sua região, rural, que são constantemente representadas como inúteis e “uma piada”. Afinal, apesar de ela própria não ter acreditado durante muito tempo, há quem queira conhecer a história de um miúdo nascido do lado errado da sociedade e perdedor logo à partida. Drogas, famílias de acolhimento, resiliência e sobrevivência num mundo que deita constantemente abaixo os seus protagonistas são alguns dos temas entrelaçados na narrativa que se foca numa epidemia de opióides (desencadeada pelo medicamento OxyContin) que começou na região dos Apalaches e se propagou pelo resto dos EUA nos anos 90.
“Pessoas do campo a escreverem sobre coisas do campo não são respeitadas. É tão simples quanto isso. Tal como somos olhados de lado enquanto pessoas, somos olhados de lado enquanto escritores. Habituei-me a isso há muito tempo”, diz a autora.
Para a obra mais recente, pegou em David Copperfield e adaptou a narrativa à história que queria contar. As primeiras páginas foram escritas exatamente na secretária onde Charles Dickens criou o clássico de 1850. Foi um risco reimaginar algo que toda a gente conhece, mas Demon Copperhead deu a Barbara Kingsolver o Women’s Prize for Fiction, além de outros prémios. Somam-se a isso todos os outros livros (A Lacuna, The Bean Trees, entre outros) que, desde 1993, estão na lista de bestsellers do jornal The New York Times.
Ainda assim, durante muito tempo achou que escrever não era uma carreira e, por isso, formou-se em biologia. Viveu em diversos pontos do mundo, antes de se instalar numa quinta na Virgínia. Fala francês e espanhol. “Estive no Brasil no início do ano e foi muito frustrante inicialmente porque não percebia nada, mas depois comecei a entender as regras e os sons, como o ‘ão’ por exemplo. Pensei: quando voltar para casa, vou aprender português.”
Ainda não aconteceu, mas é ela que começa por fazer as primeiras perguntas desta entrevista. Quer saber quando foi publicada a versão portuguesa, se a tradução está boa, além de pedir opiniões sobre a capa. “É a mesma capa dos EUA, que é a minha preferida. Também lhe posso dizer que fui eu que a desenhei.” E seguimos por aí.
Foi a Barbara que desenhou a capa do livro?
Sim, fui, trabalhei com um diretor de arte. Eles [na editora] tinham o conceito e eu dei indicações. Na verdade, rejeitei algumas propostas e depois desenhei esta. Gosto muito dela, sinto que reflete a paixão do Demon pelos desenhos, pela ilustração.
Enquanto estamos a ler e vamos descobrindo alguns detalhes sobre as personagens, temos a tentação de ir à capa e descobri-los lá.
Sim, os esqueletos, o papagaio, está tudo lá.
Esta história andava a consumi-la há um par de anos mas não sabia como contá-la, até que no final de uma tournée literária em Inglaterra teve uma espécie de revelação, foi isso?
Nunca me tinha acontecido nada assim e, provavelmente, não voltará a acontecer. Estava a terminar a tournée para o meu livro anterior no Reino Unido e tinha um fim de semana para relaxar antes de voltar para casa. Por sorte, descobri online que a antiga casa de Charles Dickens, Bleak House, estava a funcionar como um b&b [bed and breakfast] e tinha vagas. Pensei: porque não? Não esperava grande coisa mas, quando cheguei, percebi que a presença de Charles Dickens se sentia em todo o lado. Tinham os móveis originais e no escritório no andar de cima, com vista para o oceano, estavam a secretária e as coisas dele. Era como um museu, mas parecia que ele tinha acabado de se levantar dali e saído. Estava uma noite de tempestade, eu estava cansada, entrei naquela divisão e sentei-me ali a pensar no facto de ele ter escrito David Copperfield naquela sala. Senti a presença dele e a raiva porque ele escreveu exatamente sobre o que eu queria escrever: os órfãos, a pobreza, os miúdos que são atirados para o lixo pela sociedade. E senti uma coisa impossível, que foi ouvi-lo dizer: “Tens de fazer isto, deixa o miúdo contar a própria história”. Corri para o meu quarto, peguei no caderno e voltei. Fiquei acordada a noite toda e comecei a escrever este livro na secretária dele [de Dickens].
Antes disso ele já era uma grande influência para si?
Não diria que era a maior mas sempre adorei Charles Dickens. Descobri-o quando tinha 11 anos e fiquei impressionada. Li Um Conto de Natal e pensei: “Uau, isto é incrível”. Sempre gostei dos temas que aborda, da forma como escreve, é entretenimento. Diria que ele escrevia a série de televisão da era dele. Era como televisão, capítulos publicados todos os meses e as pessoas ansiavam por eles. Ele sabia cativar as massas e era muito popular, apesar de escrever sobre coisas nada populares. Nesse sentido, considero-o uma alma gémea do John Steinbeck, sempre achei que eram semelhantes. Mas se alguma vez pensei que ia escrever uma adaptação de um livro de Dickens? Não, nunca. Nunca foi um objetivo ou uma ambição. Nem sequer nunca pensei na adaptação de um clássico.
Quando percebeu que estava a ir por esse caminho, não teve receio que dissessem que estava demasiado colada ao original ou que não estava a fazer nada de novo?
Nunca foi uma preocupação. A minha única preocupação quando comecei era se isto iria ou não funcionar. Tinha lido o David Copperfield há mais de dez anos, lembrava-me da história mas não dos detalhes, portanto reli-o no voo de regresso a casa. Nesse momento percebi que iria funcionar. Adorei coisas de que já não me lembrava: os capítulos curtos, os cliffhangers, o suspense, as personagens divertidas, tudo me pareceu certo, eu podia fazer disto uma história dos Apalaches. Assim que cheguei a casa fiz uma tabela, uma folha de cálculo no computador, sabe? Como aquelas que usamos para as despesas. Para cada um dos 66 capítulos de David Copperfield escrevi uma descrição com uma linha. E depois comecei a preencher as linhas e as colunas por baixo, para ir vendo o que acontecia em cada capítulo. “Será que consigo levar isto até ao fim?” Vi que ia funcionar e pus-me a trabalhar. Não vou dizer que foi fácil, foi trabalho duro, mas também divertido. E adorei que o enredo já estivesse ali à minha frente.
Não costuma ser assim?
Começo sempre um livro trabalhando o enredo. Não sou daqueles escritores que dizem: “Acabei de inventar esta personagem, vou segui-la para ver aonde me leva”. Isso não funcionaria para mim. Seguiria a personagem pelo bosque adentro e acabaríamos perdidos, sem nunca voltar. Preciso de estrutura, sou uma pessoa muito organizada. Fui treinada como cientista e acho que penso e escrevo como cientista. Construo a arquitetura da narrativa primeiro e depois descubro quem são as personagens, como se estivessem a fazer um casting. Começo a escrever quando já sei muita coisa. É muito normal ter enredo e personagens. O anormal foi ter havido outra pessoa a escrevê-lo antes de mim. Às vezes parecia que estava a fazer batota, outras vezes foi extra difícil fazer com que tudo se encaixasse de forma a parecer orgânico no meu cenário e no meu tempo.
Mencionou que foi treinada como cientista, mais precisamente bióloga [foi esse o curso que tirou]. Como é que uma bióloga vira escritora?
Amando tanto escrever que não consegue evitar.
Escreve desde criança?
Sempre adorei escrever e, mais importante, sempre adorei ler. Sempre foi a minha coisa favorita. Só não sabia, quando era criança, que alguém como eu podia ser escritora. Nunca esperei isso, nunca tive essa ambição.
Porque não era uma opção?
De onde eu vinha, não, não era uma carreira. Não conhecia ninguém que fosse artista ou escritor, as pessoas faziam coisas práticas, era uma classe operária. E não era só isso. Se disséssemos que queríamos ser artistas, acho que as pessoas pensavam que estávamos a pôr-nos em bicos dos pés, como se quiséssemos ser superiores. É difícil explicar, simplesmente não fazia parte da cultura em que vivia. Quer dizer, as pessoas eram muito artísticas, a maioria das mulheres que conhecia conseguiam fazer colchas, faziam coisas lindas, mas quando acabavam era para colocar em cima da cama, só isso. Muitas pessoas faziam música mas era no alpendre. Não eram profissões. Portanto, fui para a universidade estudar ciência porque parecia prático, conseguiria viver disso. Mas estava sempre a ler e a escrever poemas e histórias e isso acabou por se sobrepor ao resto.
Na altura mostrava os textos a alguém?
Durante muito tempo não mostrei, era uma coisa muito privada, só o fiz aos 20 e tal anos. Comecei por partilhar poemas e as pessoas gostaram muito. Partilhei contos e incentivaram-me a enviar para uma revista. Foi o que fiz e foram imediatamente aceites. Pensei: “Talvez seja algo que possa fazer”. Mas teve de vir ter comigo, de certa forma, não foi algo que persegui.
Quando é que percebeu que, afinal, ser escritora podia ser uma carreira?
Trabalhei antes e depois de deixar a faculdade como escritora científica e jornalista, portanto inicialmente escrevi sobre ciência. O que era muito empolgante para mim, porque escrevia e isso dava-me um cheque. Todas as semanas recebia um cheque e isso ajudou-me a perceber que podia ser uma carreira. Quando finalmente terminei um romance, enviei-o e foi logo publicado. Depois disso, não havia retorno. Escrita criativa era mesmo o que eu adorava.
Pensava que ninguém se interessaria pela história de Demon Copperhead e depois ganhou o Pulitzer. Não podiam ser lados mais opostos da balança. É uma vitória não só para a autora, mas também para a comunidade que está aqui representada?
Sinto que este livro tem sido uma grande vitória para o meu povo e para o meu território. Deixa-me muito feliz poder ajudar este sítio que é tão invisível para o resto do mundo. Até no meu país somos pessoas invisíveis. Só nos veem na televisão ou no cinema como uma piada estúpida. Para mim, o que é empolgante no Pulitzer, nos outros prémios, nas 54 semanas na lista de bestsellers do The New York Times é que as minhas pessoas estão a ser vistas. Sinto-me orgulhosa e feliz pela minha região. Toda a gente aqui leu o livro. Eu ganhei o Pulitzer e todos ganhámos o Pulitzer. Foi como se houvesse fogo de artifício em todo o lado.
Já conquistou muitos prémios ao longo da carreira, mas um Pulitzer é um Pulitzer. Sente pressão em relação ao que vem a seguir?
Não muda muito para mim enquanto escritora. Sempre fui uma outsider [forasteira], sempre me vi assim na vida e na escrita, à qual não cheguei da forma normal. Não estudei escrita na escola, não fiz o MFA [Master of Fine Arts, um curso de artes visuais, escrita criativa, design gráfico, fotografia, etc] onde se fazem uma data de contactos, se conhecem as editoras e tudo isso. Eu era um patinho feio, escrevia simplesmente porque adoro escrever e escrever sobre coisas que são importantes para mim. Foi muito gratificante perceber que as pessoas queriam ler sobre essas coisas, portanto sempre escrevi para os leitores, nunca foi para os prémios ou para os críticos. Sou uma pessoa rural, vivo no campo. O circuito literário está todo nas cidades. Pessoas do campo a escreverem sobre coisas do campo não são respeitadas. É tão simples quanto isso. Tal como somos olhados de lado enquanto pessoas, somos olhados de lado enquanto escritores. Habituei-me a isso há muito tempo. Nos meus 30 anos de carreira, as pessoas disseram-me várias vezes: “Devias ter ganho um Pulitzer”. Eu dizia sempre que não, pessoas como eu não ganham Pulitzers. Honestamente, isto foi uma surpresa muito grande. Fez-me repensar o meu lema, embora continue a achar que pessoas como eu não ganham.
Mas ganham.
Espero que isto possa abrir caminho, que estabeleça que pessoas rurais, de localidades pequenas, merecem atenção. Quanto a mim, não me muda, nem muda o meu próximo livro. Será a velha Barbara Kingsolver de sempre.
Um dos temas mais importantes do livro é a epidemia de opióides, que aqui na Europa não sentimos da mesma forma que nos EUA, onde a adição a medicamentos prescritos é muito forte. Agora há várias séries sobre a propagação da OxyContin [Dopesick na Apple TV+, Painkiller na Netflix),será que a história está finalmente a ser conhecida mundialmente?
Espero que sim. Toda a gente na minha comunidade conhece alguém viciado, quase todas as famílias que conheço perderam alguém por overdose. Claro que fiz pesquisa, mas é tão comum nesta região que não tive de estudar o tamanho do problema. O que precisei foi de saber mais sobre as especificidades do sistema de acolhimento [a personagem principal passa por uma fase em que é atirado de família de acolhimento em família de acolhimento]. Como é que funcionam, porquê e quando é que as crianças são retiradas às famílias. Além disso, tive a sorte de ninguém dos meus familiares próximos ter sido afetado pela adição, por isso procurei pessoas que me contassem essas histórias. Como aconteceu? Quando percebeu? Como é estar dopado? Como se recupera. Ouvir essas histórias foi muito comovente porque sentem vergonha em relação a esta doença de que não têm culpa. Na minha cultura há uma propaganda muito grande que diz que as pessoas viciadas são más, que fizeram más escolhas, que deviam estar presas, mas a adição delas começou com um frasco de comprimidos receitado pelo médico após um ferimento no trabalho ou uma lesão desportiva.
Se não confiarmos no nosso médico, em quem vamos confiar?
Exatamente. E o médico está a usar a informação que as farmacêuticas lhe deram. O médico diz: “Não falhe um comprimido, programe o despertador se for preciso, antecipe-se à dor”. Quando terminavam o frasco estas pessoas já estavam doentes, sabiam que se parassem de tomar os comprimidos sentiam-se horrivelmente, como se estivessem a morrer. Portanto, pensavam: “Ainda estou doente, preciso de mais comprimidos”. É muito triste porque quem não entende a doença da adição põe as culpas nas vítimas. Uma das coisas que espero que este livro faça é que, as pessoas que não têm experiência com esta realidade, tenham mais compaixão pela doença. Tem de ser tratada com compaixão e medicina, como qualquer outra.
Algumas destas personagens percebemos que eram perdedoras à partida, nunca iam ter sorte na vida.
E quando começa é cada vez mais difícil de sair. Perde-se a família, a comunidade, as pessoas afastam-se.
Ao mesmo tempo, o Demon parece ter sempre a cabeça no lugar, é uma pessoa que vale a pena resgatar. O Maggot [melhor amigo de Demon na infância], por exemplo, já não é visto dessa forma pela própria família.
Há algo diferente no Demon. Ele tem o instinto de sobrevivência, a resiliência. Não importa o que acontecer, continua ele próprio. Era importante para mim ter uma personagem que fosse resiliente por diversos motivos. Primeiro, ele tem de ser o herói da história. Temos de ter esperança por ele. Não importa quão negras estejam as coisas, temos de acreditar que ele vai ficar bem. Segundo, quis abordar a resiliência que algumas pessoas têm e outras não. O Demon teve de aprender a sobreviver muito cedo porque já quando era miúdo tinha de tomar conta da mãe. Tinha de ser ele a acordá-la para ir trabalhar, a encontrar as chaves debaixo da sanita, etc. Tinha de ser ele o adulto. Ele tinha isso, enquanto o Maggot e outros miúdos à volta não, porque sempre que falhavam, tinham um adulto que os amparava. Outra coisa que acho da minha cultura, das pessoas dos Apalaches, é que somos engenhosos e insistentes. Acho que isso vem de um historial de sermos deitados abaixo vezes sem conta. Muitas vezes chegaram indústrias que tentaram tomar conta da região. Sobrevive-se ao ter uma ligação forte na comunidade, desenvolve-se um sentimento quase tribal.
A Barbara viveu em muitos sítios: Congo, França, Canárias. Viveu muitas vidas e entretanto voltou às suas raízes, as montanhas na Virgínia. Está exatamente onde devia estar?
Exatamente. Cresci no Kentucky e, como muitos miúdos de localidades pequenas, pensava: “Tenho de sair daqui, tenho de ver o mundo”. Vi muito mundo e nada parecia casa. Só me sentia em casa quando voltava a estas montanhas para visitar a família e os amigos. Sabia que era aqui que tinha de estar, mas a vida nem sempre nos deixa viver onde queremos. Assim que pude escolher, porque como escritora posso trabalhar em qualquer sítio, escolhi voltar a casa.
E vive numa quinta. Atualmente é mais agricultora ou escritora?
As duas coisas. É um equilíbrio muito bom porque, quando me sento à secretária, vivo dentro do meu cérebro o dia todo. Portanto, é bom ter dias em que vou lá para fora arrancar ervas daninhas ou ajudar um cordeiro que está virado ao contrário a nascer. O trabalho físico impede-me de me transformar num cérebro gigante, acho.
Recebeu um bilhete de Tom Hanks a propósito deste livro?
Recebi, olhe [pega num pedaço de papel e exibe-o frente à câmara]. Nem sempre o tenho na secretária mas hoje está aqui. Já viu um destes [uma envelope com picotado, dobrado e colado como os das Finanças, que desdobrado tem no verso a mensagem]. Há muito tempo que não via isto.
Foi enviado pelo correio?
Sim, pelo correio, mas pensava que já não se fazia disto, é tão pouco comum. Costumava ver disto quando era mais nova. Escreve-se no papel, dobra-se assim e o selo fica do lado de fora. Foi uma carta muito interessante do Tom Hanks, é um fã.
O livro tem mais de 600 páginas, é impossível não desenvolvermos algum tipo de ligação com estas personagens e queremos saber o que lhes acontece a seguir. É possível vir a escrever sobre isso?
Não, eu terminei o Demon, agora é vosso. O que é empolgante para mim é que cada livro é um território com personagens novas, profissões, características. Percebo que as pessoas queiram saber mais, mas ele é vosso, podem escrever a vossa continuação.
Tem uma versão na sua cabeça sobre o que lhe acontece?
Sei o que lhe acontece na semana seguinte, talvez no ano seguinte, tenho uma ideia geral mas o que quero realmente para o Demon é que ele tenha amor e confiança e que possa continuar a viver no condado de Lee [onde decorre a história].