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Nas eleições de 2019, os militares votaram. Em Mariupol, por exemplo, as assembleias de voto estavam a pouco metros das barricadas dos separatistas

AFP via Getty Images

Nas eleições de 2019, os militares votaram. Em Mariupol, por exemplo, as assembleias de voto estavam a pouco metros das barricadas dos separatistas

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Basta mudar a lei marcial para a Ucrânia poder convocar eleições em tempo de guerra. Mas esse não será o caminho mais democrático

Dos 225 círculos eleitorais ucranianos, 26 foram suspensos nas eleições de 2019. Votar em tempo de guerra é possível, com mudanças à lei marcial, mas os resultados dificilmente seriam democráticos.

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Para que todos os ucranianos pudessem votar na Polónia seria preciso abrir 100 vezes mais assembleias de voto do que o habitual e prolongar o dia da votação por uma semana inteira. Isto, claro, se Kiev decidir mudar as leis do país e manter as eleições agendadas para 2024. O que parecia uma miragem ganhou uma dose súbita de realidade. No Ocidente, várias vozes falaram na necessidade de a Ucrânia ir a votos, apesar da guerra com a Rússia, e o Presidente Volodymyr Zelensky parece ter mudado de posição. Eleições em 2024? OK, se o aliados quiserem financiar a ida às urnas e se houver garantias de que todos conseguem votar. A segunda premissa do argumento de Zelensky é bem mais difícil de concretizar do que a primeira e poderá ser um dos principais motivos a impedir os ucranianos de escolherem um novo parlamento e um novo Presidente durante o próximo ano — a não ser que a guerra termine.

O exemplo da Polónia, por onde já passaram mais de 9 milhões de refugiados ucranianos, é dado por Olga Aivazovska, presidente da OPORA, organização não governamental que monitoriza as eleições na Ucrânia. Embora a maioria dos refugiados tenham voltado ao país natal, os números de janeiro passado mostram que, dentro da UE, a Polónia foi o país que maior número de ucranianos acolheu (939.865). E conseguir que quase um milhão de eleitores votassem num consulado em Varsóvia seria um pesadelo.

“Neste momento, 20% dos nossos cidadãos vivem no estrangeiro”, afirmou Olga Aivazovska numa entrevista recente, uma das várias que tem dado desde que as eleições voltaram a estar na ordem do dia. Na verdade, segundo a própria, nunca deixaram de estar e o país tem de preparar-se para votar no final do conflito. Mas quando os políticos do Ocidente, de países que financiam o esforço de guerra de Kiev, começam a falar, Zelensky não pode simplesmente ignorar.

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Em 2019, Volodymyr Zelensky foi eleito Presidente da Ucrânia

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Quem é que lembrou que as eleições são em 2024?

As declarações mais recentes são de 23 de agosto. Durante uma visita de três senadores norte-americanos a Kiev, o republicano Lindsey Graham falou no assunto durante uma conferência de imprensa. Dizendo-se impressionado com o que viu, prometeu que tudo fará para que as armas continuem a chegar à Ucrânia: “Mas têm de fazer duas coisas ao mesmo tempo. No próximo ano, há eleições na Ucrânia. E eu quero que este país tenha eleições livres e justas, mesmo que debaixo de ataque.”

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Acontece que eleições livres e justas não dependem da vontade de Graham, nem sequer da de Zelensky. A Ucrânia invocou a lei marcial — que se renova a cada 90 dias, estando a atual em vigor até 15 de novembro —  e isso impede o país de convocar eleições. O mandato da Verkhovna Rada, o parlamento ucraniano, mantém-se para lá do que seria normal, mesmo sem eleições, enquanto a lei marcial estiver em vigor. E são os parlamentares, se conseguirem chegar a acordo, que podem fazer alterações à lei marcial, de forma a permitir que os ucranianos vão às urnas mesmo em tempo de guerra.

O Conselho da Europa já tinha aberto a caixa de Pandora

Três meses antes, em maio, foi o presidente da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa quem falou no assunto em várias entrevistas, uma delas moderada por Olga Aivazovska. No entanto, o neerlandês Tiny Kox foi mais subtil. Primeiro, lembrou que a Ucrânia não está autorizada a organizar eleições: “A vossa Constituição não permite organizar eleições enquanto a lei marcial for aplicável. Essa é a situação”, disse, embora abrindo a porta a outra solução.

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Alguns dos partidos que se candidataram em 2019 foram entretanto suspensos

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“O que quero dizer ao Governo, ao parlamento e ao povo da Ucrânia é que está nas vossas mãos decidir se e quando as eleições terão lugar. Enquanto a lei marcial existir e a sua Constituição for como está, não haverá eleições. Mas num determinado momento haverá eleições. E o meu conselho é que comecem a preparar-se o mais rápido possível”, frisou. A alternativa, disse Tiny Kox, é deixar essa decisão nas mãos dos russos, já que só seria possível votar quando as forças russas abandonassem o país.

“Está nas mãos do Governo e do Parlamento talvez alterar a Constituição e tornar possível que a lei marcial seja levantada durante um determinado momento, ou, de outra forma, que as eleições sejam permitidas. O que quero dizer é: não deixem nas mãos do agressor russo se ou quando haverá eleições”, concluiu.

Zelensky concorda com eleições em 2024? Sim, mas só se todos puderem votar

O Presidente ucraniano tem mais perguntas do que respostas sobre o assunto, mesmo sabendo que o seu partido, Servo do Povo, está com a popularidade em alta — e, provavelmente sairia vencedor de eleições em 2024 — repetindo a vitória de 2019 quando, pela primeira vez na Ucrânia, um partido alcançou maioria absoluta (254 em 450 assentos parlamentares) nas legislativas.

“Como é que os militares vão votar? Mostrem-me as infraestruturas. Ninguém me mostrou ainda. Como é que as pessoas no estrangeiro vão votar? Ninguém me explicou. Há uma saída, estou pronto para ela”, afirmou Zelensky numa entrevista a 27 de agosto. Resumindo, o Presidente defendeu que convocar eleições será possível (depois de mudanças na lei marcial), mas é preciso que todos votem, incluindo militares e migrantes forçados a deixar o país.

“Precisamos que todos votem. Não poderíamos dizer a nós próprios que estas seriam eleições muito democráticas. Precisamos de uma escolha legítima, uma escolha feita pela sociedade, para que não divida o nosso povo. Precisamos que os militares possam votar. Eles estão a defender a nossa democracia e não lhes dar a oportunidade de votar por causa da guerra é injusto. É apenas por causa disto que eu era contra eleições”, explicou o Presidente ucraniano.

Problema número dois: são precisos mais de 125 milhões de euros para votar

Outro problema é o financiamento de eleições que, em tempo de paz, custam 5 mil milhões de hryvnia (mais de 125 milhões de euros). A resposta a Lindsey Graham, segundo contou Zelensky, foi de que esses fundos teriam de vir dos aliados. “Eu disse-lhe: se os EUA e a Europa nos derem apoio financeiro… Desculpem, mas não vou fazer eleições a crédito, e não vou direcionar dinheiro de armas para eleições.” Assim, se o dinheiro chegar, e se o parlamento estiver disponível para mudar a lei, “mude-se a legislação rapidamente e, mais importante, vamos correr os riscos juntos”.

Zelensky recordou ainda os cerca de 7 milhões de ucranianos que continuam fora do país, frisando que a Ucrânia não tem infraestruturas capazes de criar assembleias de voto para que todos possam exercer o seu direito de escolher o Presidente e o parlamento.

O último alerta foi para as trincheiras onde, defendeu Zelensky, têm de estar observadores internacionais para garantir à Ucrânia e ao mundo que as eleições são legítimas.

E em 2019? Não se votou nem na Crimeia nem em certos cantos do Donbass

Quando o neerlandês Tiny Kox falou de eleições em 2024 — “não haverá queixas se as eleições não forem as ideais” — lembrou que a Ucrânia, como tantos outros países, foi a votos durante a pandemia e que tudo correu dentro da normalidade possível.

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Zelensky defende que só podem ser convocadas eleições se todos os cidadãos puderem votar

SOPA Images/LightRocket via Gett

Outro exemplo, de que Kox não se lembrou na altura, foi o de 2019, quando Zelensky se tornou Presidente. Partes da Ucrânia já estavam anexadas pela Rússia ou, pelo menos, debaixo de fogo inimigo. Nessa altura, os militares votaram. Em Mariupol, por exemplo, as assembleias de voto estavam a pouco metros das barricadas erguidas pelos separatistas pró-russos que dominavam algumas zonas do Donbass.

Dos 225 círculos eleitorais ucranianos, 26 foram suspensos nessa altura. A população da Crimeia, península anexada pela Rússia em 2014, não votou. E nas regiões de Donetsk e Lugansk só chegou às urnas quem conseguiu alterar a zona de voto, atravessando a fronteira imposta pelos separatistas para votar nas zonas dominadas por Kiev.

Votar com a guerra dentro de portas ou suspender eleições: o que fizeram outros países

O Reino Unido serve de exemplo para os dois casos: foi um país que suspendeu eleições em tempo de guerra, mas que também as convocou. Tal como tinha acontecido durante a Primeira Guerra, os britânicos optaram por não ir a votos enquanto decorria a Segunda Guerra Mundial. Entre 1935 e 1945, dez anos no total, não foram convocadas eleições.

No entanto, nas eleições de 5 de julho de 1945, quando Winston Churchill falhou a reeleição como primeiro-ministro, a Segunda Guerra Mundial ainda não tinha terminado. A Alemanha Nazi tinha capitulado a 8 de maio, mas o Japão só se renderia oficialmente a 14 de agosto de 1945, pondo fim ao conflito.

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Garantir que os emigrantes conseguiam votar em 2024 obriga a uma logística que a Ucrânia não consegue assegurar

AFP via Getty Images

Nos Estados Unidos foram várias as eleições que aconteceram quando o país não estava em paz: durante as duas guerras mundiais, durante a Guerra Civil (1861-1865) e a Guerra do Vietname (1955-1975).

Longe do Ocidente, outros países escolheram continuar a fazer eleições em tempo de guerra. Israel, cujo Estado foi estabelecido em 1948, é um desses exemplos. As primeiras eleições foram realizadas a 25 de janeiro de 1949, depois de canceladas duas vezes devido à guerra árabe-israelita, que só terminou depois de vários acordos assinados entre fevereiro e julho de 1949.

No Iraque e no Afeganistão também houve várias eleições em tempo de guerra, com muitas delas a serem consideradas pouco democráticas ou mesmo fraudulentas. África do Sul, Libéria, Serra Leoa, Líbano ou Colômbia são outros Estados em que os eleitores foram chamados a votar, mesmo durante períodos de graves conflitos internos.

A lista de problemas não termina e mudar a lei é só um deles

Olga Aivazovska preparou uma lista dos problemas que é preciso resolver antes de dar o passo em frente e convocar eleições. Em primeiro lugar, questiona como podem ser eleições inclusivas se 20% da população se viu forçada a sair do país? Em relação a esta questão, os problemas são vários e um deles, explica, prende-se com a desatualização dos cadernos eleitorais.

Além dos mortos e desaparecidos, há os migrantes, dentro e fora do país. O êxodo foi enorme e as autoridades eleitorais não têm como atualizar as listas em tempo útil.

Outra dúvida tem a ver com o sistema representativo eleitoral utilizado na Ucrânia. A população de cada uma das regiões mudou drasticamente devido à guerra e isso poderia levar a uma sub ou sobre representação parlamentar, o que poderia pôr em causa a legitimidade dos eleitos. Acrescenta-se ainda que há distritos que simplesmente perderam a maioria dos seus habitantes e para os quais não será possível voltar tão cedo, mesmo que a guerra acabe, por questões de segurança (desminagem, por exemplo) ou falta de infraestruturas.

Tal como em 2019, o assunto dos territórios ocupados tem de ser resolvido. Olga Aivazovska lembra que quem tem dupla nacionalidade não pode votar e era preciso ter soluções para quem quisesse manter o passaporte russo. Na sua opinião, essas pessoas devem ser tratadas “como cidadãos estrangeiros sem direito de voto”.

Outra situação complexa é a de milhões de mulheres que saíram do país, muitas com filhos, (os homens tiveram de ingressar as forças militares) e que perderam alguns direitos como, por exemplo, ser candidatas a eleições. Segundo a lei ucraniana, quem estiver fora do país há oito meses consecutivos não pode candidatar-se a cargos públicos.

A finalizar a lista surge a forma de voto. Na Ucrânia, não se usa o voto por correspondência. Quando há escrutínios, as urnas vão ter com as pessoas (no caso de doentes hospitalizados ou acamados), mas os números agora seriam demasiado elevados para recorrer a essa hipótese. “Apenas 8% dos cidadãos confiam plenamente no voto por correspondência, o voto eletrónico é perigoso, e o voto antecipado precisa de ser corretamente registado”, argumenta a presidente da OPORA.

Constituição e lei marcial. Em qual delas se pode mexer?

A Constituição da Ucrânia, no artigo 83.º, é claro: se a Verkhovna Rada chegar ao fim do mandato ao abrigo da lei marcial, o parlamento continua em funcionamento até que um novo possa ser eleito. E é na lei marcial, no artigo 19.º, que se proíbe a realização de eleições nacionais enquanto a lei marcial estiver em vigor.

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As eleições deveriam acontecer em 2024, mas estão suspensas devido à lei marcial

Anadolu Agency via Getty Images

“Em condições de guerra, é impossível extinguir os poderes do parlamento, e esta proibição está escrita na Constituição”, explica Olga Aivazovska, “mas não existe uma proibição direta da realização de eleições parlamentares durante a lei marcial”. Assim, bastaria alterar a lei marcial — onde, de facto, se proíbem as eleições — para poder convocá-las. Já a Constituição não pode ser alterada em tempo de guerra.

“Ao contrário da Constituição, que não pode ser alterada durante a lei marcial, o parlamento pode votar alterações à lei que regula diretamente a lei marcial. Ou seja, se essas normas forem excluídas da lei, então teoricamente, mesmo nas condições do regime jurídico da lei marcial, é possível organizar eleições para presidente e órgãos de governo autónomo locais. Mas, na minha opinião, essas eleições não podem ser justas e livres, porque temos restrições de direitos e liberdades, que são causadas por questões de segurança e defesa”, argumenta a chefe do principal órgão de fiscalização eleitoral da Ucrânia.

Sem ser possível fazer campanha eleitoral, sem total liberdade de imprensa e com eleitores a terem de votar durante bombardeamentos, as eleições simplesmente não seriam democráticas, defende Olga Aivazovska.

É esta também a opinião do secretário do Conselho de Segurança e Defesa Nacional. Oleksiy Danilov tem dito sucessivas vezes que só será possível realizar eleições depois da guerra, quando estiver garantido o direito de voto a todos os cidadãos, sem exceção.

“Realizar eleições durante uma guerra é uma coisa bastante difícil e enfatizo, uma vez mais, que se trata de justiça”, afirmou Danilov. “De acordo com a Constituição, de acordo com a legislação, determinaremos quando devemos realizar eleições, e não de acordo com os desejos de alguns dos nossos respeitados parceiros que acreditam que podemos violar as nossas leis. Não, não podemos violar a lei.”

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