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O enigmático encontro noturno entre Nuno Melo e Gouveia e Melo num conhecido bar de Lisboa relançou todas as teses conspirativas sobre as reais intenções presidenciais do almirante e como um possível avanço do militar poderia virar a corrida até Belém completamente do avesso. Oficialmente, e apesar da insistência, nem Melo nem Gouveia e Melo quiseram revelar que assuntos trataram à mesa do Cockpit — assim se chama o dito bar —, com o ministro da Defesa a limitar-se a dizer que era perfeitamente normal encontrar-se com Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA) para tratar de assuntos comuns, mesmo que o façam à noite, mesmo que o façam à civil e mesmo que o façam informalmente num bar.
O próprio timing deste encontro — revelado pelo jornal online Página Um — tem relevância. Gouveia e Melo está a um mês de terminar o seu mandato de dois anos como Chefe do Estado-Maior da Armada e o Governo tem em mãos uma decisão importante: renova ou não o mandato do almirante até ao final de 2026. Se não o fizer, Gouveia e Melo passa à vida como civil e tem todas as condições para, se assim o quiser, entrar na corrida à sucessão de Marcelo Rebelo de Sousa — ambição que nunca afastou por completo, que as sucessivas sondagens alimentam e que o ar dos tempos à direita parece reconfortar.
Mesmo os mais próximos conselheiros de Nuno Melo não arriscam uma explicação cabal para um encontro noturno tão inusitado — ainda que a tese mais consensual é de que o ministro da Defesa aproveitou a conversa para tentar convencer o almirante a aceitar a recondução no cargo — além de se mencionar que Melo tem uma “excelente relação” e “fala regularmente” com Gouveia e Melo. Lamenta-se, apesar de tudo, que o líder do CDS não tenha procurado um espaço mais discreto para tal encontro.
Marcelo, por sua vez, não vai escondendo que não gostaria de ver um militar como Presidente da República e vai dando frequentes sinais de que preferia ver Gouveia e Melo reconduzido à frente da Marinha. Ao Observador, fonte de Belém reitera essa leitura por parte do Presidente da República. “A recondução é a solução mais lógica. Está a fazer um lugarão, seria difícil substituí-lo, tem um peso muito grande e aparentemente lida bem com o ministro da Defesa”, sugere-se.
Ora, mas a decisão não cabe inteiramente a Marcelo Rebelo de Sousa. Tal como no cargo de Procurador-Geral da República, por exemplo, a nomeação das chefias dos três ramos das forças armadas é feita por indicação do primeiro-ministro com o aval do Presidente da República. E, a cerca de um mês a decisão, Marcelo está como estava com Amadeu Guerra: em grande medida às escuras e sem saber qual é a real intenção de Luís Montenegro, “um especialista em surpreender e em deixar para o último instante todas as decisões”, comenta-se em Belém.
Almirante “sente o cheiro” do tempo político
Publicamente, a única coisa que Marcelo aceitou dizer foi que não sabia nem tinha como saber o conteúdo da reunião entre Nuno Melo e Gouveia e Melo, aproveitando as declarações aos jornalistas para elogiar o “trabalho do senhor almirante”, no contexto da cooperação internacional entre marinhas, considerando que “é uma obra muito importante para Portugal”. Quanto ao futuro, tudo atirado para a frente. “Vamos deixar correr o processo, que é um processo que é normal e que diz respeito à recondução ou não recondução de uma chefia militar”, limitou-se a dizer.
Mas a marcação cerrada e pouco discreta de Marcelo a Gouveia e Melo dura há largos meses e já motivou momentos de alguma tensão, particularmente em dois casos: da primeira vez, quando o semanário Expresso escreveu que o Presidente da República queria travar a candidatura do almirante a Belém a troco, precisamente, da recondução deste como CEMA — intenção que o próprio, de viva voz, viria a desmentir.
No segundo momento, quando o mesmo Expresso escreveu que Gouveia e Melo aceitaria ficar à frente da Marinha a troco de dois submarinos — condição que o próprio, de viva voz, viria a desmentir violentamente, ainda que o semanário tenha deixado uma nota editorial venenosa sobre o desmentido do almirante: “A direção do jornal reafirma o que aqui publicou, consciente das fontes que foram contactadas para a sua elaboração — que por regra mantemos sigilosas, quando há um compromisso de parte a parte nesse sentido”.
Em rigor, mesmo que Luís Montenegro deseje muito reconduzir Gouveia e Melo, tudo dependerá da vontade do próprio para continuar como CEMA. O almirante alimenta há anos um tabu sobre as suas alegadas ambições presidenciais, ainda que exista quem jure a pés juntos que está tudo resolvido: Gouveia e Melo já terá a decisão tomada e que quer mesmo avançar para a sucessão de Marcelo Rebelo de Sousa.
Estes sinais não passam despercebidos a Belém. “Se estiver mesmo vidrado na candidatura, já ninguém lhe tira isso. É um homem de direita. O trumpismo está a subir, a direita conservadora também, o 25 de Novembro está na moda… Ele sente o cheiro no ar”, comenta-se a partir do Palácio de Belém.
CDS não quer Mendes e continua a sonhar com Portas
Se de facto manifestar vontade de deixar a Marinha ou se, por outro lado, Luís Montenegro decidir não o reconduzir, Gouveia e Melo fica de mãos livres para fazer o que bem entender em relação às eleições presidenciais. Mas ninguém ignora que uma eventual candidatura do militar viraria por completo a corrida à sucessão de Marcelo Rebelo de Sousa, afetando as hipóteses do PS (Mário Centeno está em jogo; António José Seguro estreia-se no comentário político para a semana), mas também toda a dinâmica à direita — ou seja, o que farão, afinal, Luís Montenegro, Nuno Melo e André Ventura perante esta eventualidade.
Curiosamente, o líder do Chega é aquele que tem a questão mais bem resolvida. Se Gouveia e Melo avançar, apoia-o; se o candidato da direita for Luís Marques Mendes, o único que já deu sinais evidentes de que quer entrar na corrida, Ventura organiza (ou protagoniza) uma candidatura alternativa. O dilema maior coloca-se mesmo a Luís Montenegro e a Nuno Melo, parceiros de coligação no Governo, mas com níveis de entusiasmo muito diferentes em relação à possível candidatura de Marques Mendes.
O primeiro-ministro deu três sinais fortes de que gostaria de apoiar o conselheiro de Estado e comentador político: definiu como condição que o candidato apoiado pelo PSD à sucessão de Marcelo seja militante do PSD; disse, em entrevista a Maria João Avillez, na SIC, que Marques Mendes era quem encaixava “melhor” no perfil que traçou para as presidenciais; e fez dele convidado de honra no último congresso do partido.
Em contrapartida, Melo, pelo menos publicamente, não deu qualquer sinal de abençoar as ambições presidenciais de Luís Marques Mendes. Na moção estratégica que aprovou no seu último congresso, não há qualquer referência à corrida para Belém, mas ninguém esconde o sonho (improvável, mas não impossível) de ver Paulo Portas entrar na corrida ou, em alternativa, de apoiar alguém com outro perfil, como Pedro Passos Coelho, por exemplo.
Formalmente, fonte da direção lembra que o CDS “não definiu nem debateu o apoio a nenhum candidato” e recorda que as presidenciais dependem de “atos de vontade dos próprios” — que, normalmente, “antecedem os apoios”. Mas no partido não falta quem assegure que “obviamente” a maior parte dos dirigentes do CDS gostaria muito de ver Paulo Portas a avançar. E é a ideia repetida por todas as fontes ouvidas pelo Observador — falta saber se Portas avança, uma vez que a candidatura depende da vontade do próprio. O que leva a uma conclusão: no final do dia, é irrelevante o perfil que Luís Montenegro traçou na sua moção ao congresso e que apontava para Mendes.
Ou seja, o afunilamento do perfil tendo em vista um quadro do PSD é natural, uma vez que teoricamente partidos como o PS e o PSD podem sempre alimentar a ambição de conquistar Belém, mas no fim do dia vale o que vale. No CDS, para provar este ponto, são recordados casos em que os candidatos avançaram contra a vontade dos líderes dos respetivos partidos, ou pelo menos surpreendendo-os, como Marcelo Rebelo de Sousa (que Pedro Passos Coelho considerava um “catavento”), Jorge Sampaio ou Mário Soares.
A convicção no CDS é que ainda poderia haver espaço para encaixar Portas nesta corrida: mesmo que não tivesse hipóteses de ganhar, o antigo líder democrata-cristão viria mexer com as contas da direita e trazer um “debate sério” à corrida, pelo menos numa primeira volta. A ideia de que as próximas presidenciais podem trazer de volta o raríssimo cenário de uma segunda volta não é, de resto, exclusiva da direita, e daria uma liberdade maior a candidatos com apoios menos expressivos para tentarem a sua sorte na corrida.
Além disso, entre democratas-cristãos há problemas que vão sendo apontados, à boca pequena, a uma eventual candidatura do almirante. À cabeça, saber que condições é que Gouveia e Melo, que tem feito algumas declarações contra os populismos quando é desafiado a falar sobre o seu pensamento político, teria se contasse apenas com o apoio do Chega, ficando colado ao partido de André Ventura.
O momentum de Mendes
Do lado do PSD, como explicava o Observador ainda no início de outubro, o tiro ao almirante, como forma de condicionar um eventual avanço e de proteger o favorito Marques Mendes, já começou e teve em Manuel Castro Almeida o atirador mais ativo. “Termos um militar como Presidente seria uma anormalidade”, disse o ministro Adjunto e da Coesão, que é muito próximo de Luís Marques Mendes, em entrevista ao Diário de Notícias.
Mas — e este não é um ‘mas’ de menor importância — as declarações de Manuel Castro Almeida não foram inteiramente acompanhadas por todos no PSD. Na altura, mesmo alguns dos que gostavam de ver Luís Marques Mendes em Belém sugeriram ao Observador que se tratara de uma tirada “exagerada e pouco rigorosa”. Daí para cá, e mesmo sendo dado como praticamente inevitável como candidato presidencial apoiado pelo PSD, o balão de Marques Mendes, que se só deverá anunciar a sua decisão em 2025, parece ter desinsuflado ligeiramente.
Manifestamente, o 42.º Congresso do PSD, que decorreu em Braga, a 19 e 20 de outubro, não correu bem a Luís Marques Mendes. O antigo líder social-democrata era o convidado de honra, mas não teve nem o efeito-surpresa de Aníbal Cavaco Silva quando entrou de rompante na outra reunião magna do partido, nem o golpe de asa de Marcelo Rebelo de Sousa, quando este roubou todas as atenções do 35.º Congresso do PSD e se impôs como candidato presidencial contra a vontade de Pedro Passos Coelho, que o tinha indirectamente classificado como “catavento de opiniões erráticas”.
Mendes preferiu não discursar no Congresso de Braga e a chegada também não foi particularmente a mais eficaz. Era esperado às 17 horas, mas o tempo foi passando e teve de ficar mais de meia hora no carro à espera que Hugo Soares, secretário-geral do PSD e braço direito de Montenegro, o fosse buscar para entrarem juntos. Acabaria por entrar no exato momento em que Pedro Duarte, ministro dos Assuntos Parlamentares, discursava, o que não ajudou ao momento.
Quando a presença do antigo líder social-democrata foi anunciada por Miguel Albuquerque, que presidia aos trabalhos, os congressistas aplaudiram, mas não saltaram exatamente como molas. Minutos depois, Pedro Santana Lopes, que, não sendo militante, mantém com o PSD (e o PSD com ele) uma ligação emocional, faria a sua própria incursão pelo Congresso, ajudando a desviar ainda mais as atenções de Mendes. Durante a reunião magna e nos dias que se seguiram, as análises convergiram num ponto: a receção a Marques Mendes não tinha sido exatamente apoteótica.
O “pragmatismo” de Montenegro
Por tudo isto, e pelas sondagens consecutivamente modestas, há setores do partido que continuam pouco convencidos com esta candidatura e vão ora suspirando por Pedro Passos Coelho (que continua sem mostrar grande interesse em entrar na corrida), ora pensando noutras hipóteses mais criativas, como Rui Rio, que não tem, neste momento, intenção de ser candidato. Em cima disto, os candidatos a candidatos continuam a brotar como cogumelos, como foi o caso de José Pedro Aguiar-Branco, que, em entrevista ao Observador, não afastou por completo a hipótese de protagonizar uma candidatura.
Sem anunciar qualquer decisão, Luís Marques Mendes vai continuando a exercer o seu papel de comentador com liberdade e independentemente dos interesses do PSD (apesar de serem muito próximos, Luís Montenegro, sabe o Observador, nunca lhe fez chegar qualquer recado ou observação menos positiva). Aliás, ainda este domingo, na SIC, o conselheiro de Estado defendeu que Ana Paula Martins, ministra da Saúde, está a prazo e não terá condições para se manter no cargo quando as investigações sobre o INEM estiverem concluídas — o que se tornou rapidamente um facto político e motivou uma reação da própria ministra.
Abertamente, ninguém assume qualquer desconforto com as posições assumidas por Mendes — a direção do partido e o núcleo mais próximo de Montenegro não quer entrar nesta polémica. Mas também se vai tornando evidente que não existe (pelo menos para já) uma passadeira vermelha (ou laranja) estendida à espera de Luís Marques Mendes. A partir de Belém, há quem desconfie que Luís Montenegro, um “pragmático“, não está exatamente preocupado com as eleições presidenciais, nem com a possibilidade de Gouveia e Melo entrar na corrida e derrotar o candidato apoiado pelo PSD.
“O PS é que é mais visceralmente civilista. Gouveia e Melo é de facto um homem de direita e para o primeiro-ministro pode ser indiferente ter um Presidente militar. Claro que criaria um mal-estar no partido, mas [Luís Montenegro] é um homem pragmático“, comenta fonte do Palácio de Belém. No final do dia, se ficar provado que é impossível travar a candidatura presidencial de Gouveia e Melo, e que as hipóteses do PSD não são as mais brilhantes, pode ser útil não hostilizar abertamente o almirante.
Mendes quase inevitável como candidato do PSD a Belém. Ex-líder não avança antes de 2025