Foi o chefe da polícia secreta de Estaline e ficou na história como uma das figuras mais temidas do regime soviético. “Lavrentis Béria: O Carrasco de Estaline” é o livro de José Milhazes que conta a história do homem que construiu uma vida de violência e terror. O Observador faz a pré-publicação de um excerto que avança no tempo para descrever o fim do poder de Béria, a queda de um nome de enorme poder na URSS, mesmo que agindo quase sempre nas sombras.
“No dia 17 de Junho de 1953, Béria chega à República Democrática Alemã, a fim de apoiar os dirigentes comunistas locais a esmagarem as greves operárias1 . Durante a sua ausência, Gueorgui Malenkov convenceu os camaradas e algumas das altas chefias militares, entre as quais estavam o marechal Gueorgui Jukov, a neutralizar Béria. Convocou-se uma reunião do Presidium do Conselho de Ministros para 26 de Junho. Khruschov recorda que, na noite anterior, foi para a casa de campo com Béria e Malenkov no mesmo automóvel. Despediram-se cordialmente, como se nada de importante estivesse para acontecer. Umas horas antes, Jukov tinha ordenado que se caiasse e preparasse uma cela da Guarnição de Moscovo para Béria.
Existem várias versões sobre a detenção de Béria e sobre se ele foi ou não assassinado imediatamente ou levado para a prisão. Logo após o início da sessão, Malenkov propôs a mudança da ordem de trabalhos e a análise do comportamento de Béria, lançando toda uma série de acusações contra ele: a tomada de decisões arbitrárias, o desprezo dos órgãos do partido e do Estado, a dureza para com os camaradas, as escutas e perseguições contra eles, o facto de Bé- ria nomear homens próximos seus para importantes cargos estatais. Esta última acusação era a mais grave, pois foi considerada como a preparação de um golpe de Estado.
O carrasco negou todas as acusações, mas de nada valeu. Por um decreto do Presidium do Soviete Supremo, foi expulso desse órgão, do cargo de primeiro-vice-presidente do Conselho de Ministros da URSS e de ministro do Interior da URSS, privado de todas as patentes e condecorações, e o processo sobre os seus «actos criminosos» foi entregue ao Supremo Tribunal da URSS.
– Mas que dúvidas podem surgir? A tarefa será cumprida."
Quando à detenção em si, os relatos são contraditórios, havendo quem afirme que Béria foi imediatamente liquidado. O próprio marechal Gueorgui Jukov, um dos heróis da Segunda Guerra Mundial, escreveu versões um pouco diferentes nas várias edições das suas Memórias.
O historiador e escritor Vladimir Karpov publicou uma descrição do episódio, feita por Jukov e encontrada depois da sua morte. O marechal soviético escreveu:
Bulganin telefonou-me e disse:
– Vem ter comigo o mais depressa possível, estou com pressa para ir para o Kremlin. Desci rapidamente do quarto para o segundo andar e entrei no gabinete de Bulganin.
Disse-me:
– Chama Moskalenko, Nadelin, Batitzki e mais alguns homens que achares necessário e vem ter imediatamente com eles ao secretariado de Malenkov.
Trinta minutos depois, eu estava lá com um grupo de generais. Chamaram-me logo para entrar no gabinete de Malenkov. Além dele, estavam Molotov, Khruschov, Bulganin. Depois de nos cumprimentar, disse:
– Chamámos-te para te encarregar de uma tarefa importante. Nos últimos tempos, Béria está a realizar um trabalho suspeito entre os seus homens, dirigido contra um grupo de membros do Presidium do CC. Considerando que Béria se tornou perigoso para o partido e o Estado, resolvemos prendê-lo e neutralizar todo o sistema do Comissariado do Povo para os Assuntos Internos. Decidimos encarregar-te pessoalmente da detenção de Béria.
Khruschov acrescentou:
– Não duvidamos de que saberão cumprir isto, tanto mais que Béria vos fez muitas coisas desagradáveis! Têm dúvidas?
Respondi:
– Mas que dúvidas podem surgir? A tarefa será cumprida.
Khruschov:
– Tenham em vista que Béria é uma pessoa hábil e bastante forte; além disso, poderá estar armado.
– Claro, não sou perito em detenções, nunca fiz nenhuma, mas a minha mão não vai tremer. Digam apenas onde e quando é preciso detê-lo.
Malenkov explicou aos militares a forma como a reunião do Conselho de Ministros ia decorrer e que deveriam encontrar-se numa divisão ao lado e esperar por um sinal.
– Depois de dois toques de campainha, devem entrar no gabinete e deter Béria. Está tudo claro?
– Bem claro – respondi.
Fomos para a divisão onde devíamos esperar os toques. Béria chegou. A sessão começou. Passou uma hora, duas, mas a campainha não tocava. Comecei a ficar preocupado. Será que Béria deteve quem o queria prender?
Nesse instante, soou o sinal combinado. Depois de deixarmos dois oficiais armados à porta de entrada do gabinete de Malenkov, entrámos. Como tinha sido acordado, os generais sacaram de pistolas, eu aproximei-me de Béria e gritei-lhe:
– Béria, levanta-te! Estás detido!
Ao mesmo tempo, depois de lhe pegar pelos braços, levantei-o da cadeira e revistei todos os seus bolsos. Não trazia armas. A sua pasta foi imediatamente atirada para o meio da mesa. Béria ficou terrivelmente pálido e começou a murmurar qualquer coisa.
Dois generais agarraram-no pelos braços e levaram-no para uma divisão que ficava por detrás do gabinete de Malenkov, onde foi sujeito a uma revista cuidadosa e lhe retiram objectos perigosos. Às 11 horas da noite, Béria foi secretamente transferido para uma prisão militar e, alguns dias depois, levado para uma divisão do posto de comando do Círculo Militar de Moscovo, ficando a guarda a cargo do grupo de generais que o deteve.
Posteriormente, não participei nem na guarda, nem na investigação, nem no julgamento. Depois do julgamento, Béria foi fuzilado pelos mesmos que o guardaram. Comportou-se muito mal durante o fuzilamento, como o maior dos cobardes, chorou histericamente, pôs-se de joelhos e, por fim, borrou-se todo. Resumindo, viveu como um animal e morreu de forma ainda mais animalesca.
Sergo Béria, filho do carrasco, apresenta uma versão totalmente alucinante do episódio numa conversa com o historiador Dmitri Gordon:
– Depois do funeral de Estaline, Lavrenti Pavlovitch compreendeu que o desenlace estava próximo?
– Ele compreendeu que o confronto seria inevitável, estava convencido disso.
– Não esperava que acontecesse tão depressa?
– O meu pai supunha que ia acontecer no congresso, onde teria a tribuna aberta. Enganou-se. Por exemplo, Jukov tinha-o prevenido directamente…
– Segundo uma das versões, o marechal participou da forma mais activa na prisão de Béria…
– Treta! Quando ele era membro do Presidium do CC e ministro da Defesa, e eu ainda estava exilado em Sverdlovsk, Jukov veio ter comigo, conversámos. Foi sincero: «Tu compreendes, mas que necessidade tenho eu de conversar contigo? Sou russo, estive em vossa casa, considerava-me amigo de teu pai, que me safou muitas vezes de coisas desagradáveis.» Disse-lhe directamente o que fazer, mas Lavrenti não me deu ouvidos.
– Mas o que propunha Gueorgui Konstantinovitch?
– Disse-me: «É preciso fazer um golpe militar e fuzilar toda a direcção do partido.» Falando sinceramente, o Jukov odiava-os.
– A determinada altura, retirou das Forças Armadas os comissariados políticos…
– Mas o meu pai respondeu-lhe: «As pessoas não nos compreenderão, isso é bonapartismo.»
A versão da liquidação imediata de Béria também é desmentida por Pavel Sudoplatov nas suas memórias:
Dois dias depois, o meu irmão mais novo, funcionário da Direcção de Moscovo do Ministério do Interior, transmitiu-me uma informação importante. A mulher dele era dactilógrafa no secretariado de Malenkov e trabalhava no Kremlin. Soube através de Konstantin que Béria tinha sido detido por Jukov e por vários generais na sessão do Presidium do Comité Central do Partido e se encontrava preso num bunker do posto de comando da Região de Moscovo. Segundo ele, no Kremlin reinava um ambiente de nervosismo. Sukhanov, chefe do secretariado de Malenkov, ordenou que todos os funcionários, durante as três horas que durou a sessão do Presidium, permanecessem nos locais de trabalho e não saíssem para o corredor. Soube pelo Konstantin que estavam no Kremlin (coisa completamente inaudita!) mais de dez generais armados do Ministério da Defesa, que tinham sido chamados ao Presidium do CC do PCUS. Por ordem de Serov e Kruglov, primeiros assessores de Béria, a segurança do governo entregou-lhes as suas funções no Kremlin. Entre eles estava também Brejnev [secretário-geral do PCUS entre 1964-1982], vice-chefe da Principal Secção Política do Exército e da Armada da URSS.
Nikita Khruschov explicou mais tarde o que levou os adversários de Béria a recorrer aos serviços de militares para o deter: «Porque é que recorremos aos militares para esta operação? Foram expressas opiniões de que, se tencionássemos deter Béria e investigar, ele chamaria os seus tchekistas, a nossa segurança, que dependia dele, e ordenaria que nos isolasse. Estávamos completamente indefesos porque no Kremlin se encontrava um número bem significativo de homens armados e preparados. Por isso se decidiu recorrer aos militares.»
Sem perder tempo, Khruschov, a 27 de Junho, convocou um plenário do CC do PCUS, que se realizou entre 2 de 7 de Julho de 1953. Ao mesmo tempo, Béria escreve cartas ao CC do PCUS, dirigidas a Gueorgui Malenkov, na tentativa desesperada, mas sem grandes esperanças, de provar a sua inocência, salvar a sua vida e proteger a dos seus parentes. Começa assim uma carta de 28 de Junho:
Eu estava convencido de que tiraria todas as conclusões necessárias para mim e seria útil ao colectivo. Mas o CC resolveu de outra forma, e penso que actuou correctamente. Considero necessário dizer que sempre fui infinitamente fiel ao partido de Lenine e Estaline, à minha pátria, fui sempre activo no trabalho… Peço aos Camaradas Gueorgui Malenkov, Viatcheslav Molotov, Klementi Vorochilov, Nikita Khruschov, Lazar Kaganovitch, Nikolai Bulganin, Anastas Mikoian e aos outros que me perdoem por alguma coisa durante estes 15 anos de grande e intenso trabalho conjunto. Queridos camaradas, desejo-vos grandes êxitos na luta pela causa de Lenine e Estaline, pela unidade e pelo monolitismo do nosso partido, pela prosperidade da nossa Gloriosa Pátria.
Béria termina a missiva pedindo aos ex-camaradas que, «se considerarem possível, não deixem sem atenção a minha família (mulher e mãe idosa) e o meu filho».
A segunda carta, datada de 1 de Julho, tem um tom ainda mais dramático e desesperado. Talvez compreendendo que estava praticamente perdido, Béria faz um «acto de contrição» e dirige-se pessoalmente a cada um dos seus ex-camaradas para lhes recordar que nunca os traiu, nem os enganou. «Ao camarada Malenkov. Caro Gueorgui! Durante estes quatro difíceis dias para mim, pensei profundamente em tudo o que aconteceu, por minha responsabilidade, nos últimos meses depois do plenário do CC do PCUS, tanto no trabalho, como a mim pessoalmente e a alguns camaradas do Presidium do CC submetendo as minhas acções à mais severa crítica, condenando-me duramente. Foi particularmente difícil e imperdoável o meu comportamento em relação a ti, de que sou culpado a cem por cento. Tal como outros camaradas, também eu me lancei ao trabalho, com força e energia, com o único pensamento de fazer tudo e de não falhar sem o camarada Estaline e de apoiar com actos a nova direcção do CC e do Governo», escreve ele, frisando que o Ministério do Interior por ele dirigido submeteu à aprovação do CC e do Governo toda uma série de questões importantes, questões políticas, «a teu conselho [Malenkov] e, em algumas questões, a conselho do camarada N. S. Khruschov». Reconhecendo que violava a disciplina partidária ao enviar para os locais instruções do MAI no lugar das decisões do CC e que fora «duro» e «descarado» em relação a Khruschov e Bulganin durante a discussão da «questão alemã», Béria acentuava que, ao mesmo tempo, tentava que fossem tomadas decisões correctas.
A seguir, dirige-se concretamente a cada membro do Presidium do Comité Central do PCUS, para lhes recordar o trabalho conjunto realizado e as boas relações que mantinha com todos eles. Referindo-se concretamente a Khruschov, Béria recorda: «Nikita Sergueevitch! Se pusermos de lado o último caso no Presidium do CC, onde me ralhaste de forma dura e furiosa, com o que concordei completamente, fomos sempre grandes amigos, tive sempre orgulho de seres um bolchevique fantástico e um excelente camarada. Disse-to várias vezes e, quando conseguia falar disso, dizia-o ao camarada Estaline. Sempre dei valor à tua posição.»
Béria insiste na sua fidelidade ao comunismo e pede misericórdia:
Claro que, depois de tudo o que se passou, devem chamar-me duramente à ordem, mostrar-me o meu lugar e dar-me um forte abanão, para que o recorde até ao fim da vida, mas compreendam, queridos camaradas, que sou um filho fiel da nossa Pátria, um filho fiel do partido de Lenine e Estaline e vosso fiel amigo e camarada. Enviai-me para que trabalho quiserem, mesmo para o mais pequeno, e controlem: eu ainda posso trabalhar uns bons dez anos e trabalharei com toda a alma e com toda a energia. Digo disto do fundo do coração; não é verdade que ocupei um cargo alto e não serei capaz de fazer outro trabalho pequeno, isso é muito simples de verificar em qualquer região ou distrito, sovkhoz, kolkhoz, construção, e imploro-vos que não me priveis da possibilidade de ser um construtor activo em qualquer pequena parte da nossa gloriosa Pátria; e verão que, dentro de dois ou três anos, me emendarei solidamente e ainda vos serei útil. Até ao último suspiro serei fiel ao nosso querido Partido e ao nosso Governo Soviético.
Na terceira carta, enviada no mesmo dia, o carrasco pede aos camaradas que se faça justiça, coisa que sempre recusou aos outros, num acto de total desespero:
Caros camaradas, querem dar cabo de mim sem julgamento e investigação, depois de cinco dias de reclusão, sem um único interrogatório; suplico-vos a todos que isso é inadmissível, peço intervenção imediata, de outro modo será tarde. É preciso prevenir pelo telefone. Queridos camaradas, suplico-vos insistentemente que nomeiem a mais responsável e severa comissão para que faça uma investigação rigorosa do meu caso, dirigida pelo camarada Molotov ou pelo camarada Vorochilov. Será que um membro do Presidium do CC não merece que o seu caso seja atentamente analisado, lhe seja feita a acusação, lhe sejam exigidas explicações, que testemunhas sejam interrogadas? Isso é bom, sob todos os pontos de vista, tanto para o processo, como para o CC. Caros camaradas, será que a única solução é fuzilá-lo sem julgamento e sem o esclarecimento do caso, tratando-se de um membro do CC e vosso camarada, após cinco dias de prisão numa cave?
Suplico-vos mais uma vez a todos, principalmente aos camaradas que trabalharam com os camaradas Lenine e Estaline, enriquecidos por uma grande experiência e sábios na solução de problemas complexos: Molotov, Vorochilov, Kaganovitch e Mikoian. Em nome da memória de Lenine e Estaline, peço, suplico, que se ingiram, e se ingiram imediatamente, e ficarão convencidos de que estou absolutamente limpo, vosso fiel amigo e camarada, fiel membro do nosso partido.
Não tive outras intenções que não fossem o reforço do nosso País e a unidade do nosso Grande Partido.
Não apoiei menos o seu CC e o seu Governo e fiz tudo o que pude. Afirmo que todas as acusações serão retiradas se quiserem investigar. Tanta pressa cria muita estranheza.
Peço aos camaradas Malenkov e Khruschov que não sejam teimosos, pois nada de mau acontecerá se um camarada for reabilitado. Imploro mais e mais uma vez que se intrometam e não deixem morrer um velho camarada.
Ao escrever estas cartas, Béria talvez não tivesse grande esperança de que os seus ex-camaradas as levassem em conta, tal como ele e outros carrascos que o antecederam à frente da polícia secreta sovié- tica não prestaram a mínima atenção às cartas e aos pedidos que lhes foram enviados por milhares ou milhões de vítimas do sistema por eles dirigido.
Khruschov, com a velha hipocrisia de um experiente quadro estalinista, escreveu: «Quando foi isolado, Béria pediu um lápis e papel. Aconselhámo-nos uns com os outros, alguns tinham dúvidas, mas, depois, resolvemos dar-lhos, talvez lhe ocorressem motivos para contar com sinceridade o que sabia sobre aquilo de que o acusámos. Ele começou a escrever cartas.»
Rapidamente os seus antigos camaradas se cansaram das missivas, pois não é possível imaginar o que Béria poderia escrever para evitar o destino a que já estava condenado. O general Konstantin Moskalenko, que respondia pela guarda de Béria na prisão, fixou nas suas memórias: «Informávamos de todas essas cartas os membros do Presidium: Malenkov, Khruschov e Bulganin. Depois, recebemos ordens para não lhe dar nem mais papel, nem lápis, nem caneta; ou seja, foi proibido de escrever.»
A máquina repressiva, criada por Lenine e aperfeiçoada por Estaline, continuava bem oleada, por isso o Plenário do CC do PCUS devia continuar o processo de aniquilação de Béria em que o acusado não tinha qualquer possibilidade de defesa. No fundo, a direcção soviética era a mesma, não sofrera grandes alterações depois da morte do ditador, e, por conseguinte, não sabia actuar de outra forma que não fosse atirar todas as culpas, mesmo as mais inimagináveis, para cima de Béria.
Era preciso encontrar e liquidar um bode expiatório e foi escolhido aquele que mais parecia garantir a continuação dos métodos sanguinários estalinistas. A sociedade soviética estava cansada de repressões e a elite política também estava interessada em que a sua insegurança física acabasse. Por isso, era preciso executar Béria. Nesse sentido, Khruschov foi, sem dúvida, um dos grandes beneficiados desta nova política da elite. Quando foi derrubado por Leonid Brejnev em 1964, foi acusado de muitos erros, como mandava a tradição, mas não foi assassinado e nem sequer mandado para a prisão, antes viveu calmamente na sua casa de campo tal como qualquer outro reformado soviético. O mesmo aconteceu com Malenkov, Molotov, Mikoian, Kaganovitch, etc.
Mas regressemos ao Plenário do CC do PCUS. Nikita Khruschov dirigiu os trabalhos, mas começou por dar a palavra a Malenkov, que apresentou um relatório com um título muito característico da era estalinista: «Sobre as Acções Criminosas de Béria contra o Partido e o Estado». O estilo desse documento confunde-se com o de centenas ou milhares de discursos feitos quando era necessário esmagar os piores «inimigos do povo», mas, antes de se chegar a essa fase, era obrigatório enumerar os «êxitos» da direcção do PCUS.
Segundo Malenkov, a morte de Estaline foi uma «perda enorme» para o partido e o país, mas os comunistas soviéticos souberam manter-se firmes e unidos na «condução em frente do país, pela via definida por Lenine, génio da humanidade, e por Estaline, seu grande continuador».
Tudo foi feito de forma tão inteligente que «fizemos falhar os cálculos dos inimigos, não permitimos quaisquer hesitações, nenhum pânico, nem qualquer sombra de pânico. O CC conduziu seguramente o país em frente, pela via leninista-estalinista. Os inimigos foram obrigados a reconhecer a nossa força e coesão, a renunciar aos esquemas para enfraquecer a União Soviética após a morte do camarada Estaline».
Mas, como não há bela sem senão, a «perspicácia» e a vigilância da direcção soviética detectaram que o principal inimigo estava alojado no seu interior. Malenkov acrescenta: «Mas, camaradas, o Presidium do CC deve comunicar ao Plenário do CC que, logo após a morte do camarada Estaline, começámos a ficar convencidos de que Béria começou, de forma desonesta (e, como se veio a verificar mais e mais posteriormente, com objectivos criminosos), a aproveitar-se do nosso desejo de unidade, de trabalho fraternal no colectivo de direcção.»
Para Malenkov, Béria começou «por utilizar, de forma esguia e mestre, a sua posição de ministro dos Assuntos Interiores e desenvolveu uma intensa actividade nessa direcção criminosa, para pôr o MAI acima do partido e do Governo».
Mas essa era apenas uma das acusações feitas ao carrasco órfão de Estaline. De seguida, o dirigente comunista acusou Béria de querer normalizar as relações com a Jugoslávia.
As relações entre Estaline e o dirigente jugoslavo Broz Tito começaram a deteriorar-se em Julho de 1948, quando o Bureau de Informação dos Partidos Comunistas e Operários, organização controlada pelo PCUS, aprovou uma resolução «Sobre a Situação no Partido Comunista da Jugoslávia», que constata que a direcção dessa força política «realiza, nas questões fundamentais da política externa e interna, uma linha incorrecta, que constitui um desvio do marxismo-leninismo». O partido de Tito foi também acusado de conduzir uma política hostil à URSS.
Os comunistas jugoslavos refutaram essas acusações e as relações entre os dois países e partidos estiveram rompidas até 1954, tendo sido Khruschov a resolver o problema pela parte soviética.
Béria foi também acusado de querer entregar a Alemanha à burguesia. A 16 de Junho de 1953, operários da construção civil de Berlim Oriental anunciaram uma greve contra as más condições de trabalho e baixos salários, que rapidamente se transformou numa acção de protesto que se alargou a numerosas cidades da parte alemã sob controlo soviético.
Além de reivindicações económicas, os grevistas apresentaram toda uma série de exigências políticas: demissão imediata do governo da República Democrática Alemã, realização de eleições gerais no território de toda a Alemanha, libertação dos presos políticos.
Os protestos foram cruelmente esmagados pela polícia russa, com o apoio das tropas soviéticas, tendo sido assassinadas cerca de 30 pessoas e várias centenas ficado feridas.
Segundo Malenkov, durante a discussão desse problema no seio da direcção soviética, a maioria defendia a política de «não forçar a construção do socialismo» na RDA, enquanto «Béria teria proposto não seguir essa via, mas «renunciar a qualquer política rumo ao socialismo e manter o rumo, ao encontro da Alemanha burguesa». Por isso, concluiu o orador, «esse facto mostra a sua degeneração burguesa».
Os dirigentes soviéticos reconheceram que era necessário realizar uma amnistia após a morte de Estaline, mas acusaram Béria de a realizar para tirar proveito pessoal e assim tomar o poder.
«Considerámos e continuamos a considerar que essa medida da amnistia é absolutamente correcta. Mas, depois de termos descoberto o verdadeiro rosto de Béria, concluímos que ele abordou essa questão a partir das suas posições; ele tinha os seus planos a esse respeito. Os factos mostraram que ele concretizou essa medida com uma pressa perniciosa e abrangeu contingentes que não deviam ser libertados: os ladrões reincidentes. (Vozes: É verdade!) Depois dos acontecimentos com Béria, emendámos e continuaremos a emendar isso, mas o comportamento dele sobre as questões da amnistia é, claramente, suspeito. Também aqui devemos tirar lições», acrescentou Malenkov.
E, finalmente, Béria é acusado de ter ordenado a explosão da primeira bomba de hidrogénio, em Agosto de 1953, «sem comunicar ao Comité Central e ao Governo».
Escusado será dizer que o acusado não teve direito a defender-se, nem nenhum dos seus camaradas teve coragem de o fazer. E, se Malenkov «matou» Béria, Khruschov «esfolou-o»: «Conhecemos Béria há muitos anos. Conheço-o há cerca de 20 anos, dos plenários do CC, contactei com ele directamente no trabalho. Quero expressar a minha opinião, os meus pontos de vista sobre essa personalidade. Ainda antes de termos chegado a uma opinião sobre o comportamento de Béria, antes de termos enveredado pela via das acções decisivas, ainda durante a vida do camarada Estaline, vimos que ele era um grande intriguista. Trata-se de uma pessoa traiçoeira, um carreirista ágil. Mergulhou muito profundamente as suas patas sujas na alma do camarada Estaline. Encontrava formas de criar dúvidas quando da análise de uma ou de outra questão, encontrava maneiras de apresentar um ou outro camarada de forma desagradável. A dada altura, Béria conseguiu lançar o camarada Estaline contra este ou aquele funcionário. As características fundamentais de Béria são a desfaçatez e a falta de vergonha», afirmou o futuro líder soviético, acusando também o seu ex-camarada de querer «instaurar através do Ministério do Interior a sua ditadura, pôr esse ministério acima do partido».
No fundo, Béria tornou-se o culpado de tudo, incluindo a diminuição do número de cabeças de gado e a queda da produção de legumes. Khruschov acrescentou:
Analisemos as questões da produção de batata e legumes. Baixámos os preços da batata e do repolho, mas nas lojas não há. O repolho tornou-se mais caro ou ficou ao mesmo preço das bananas. Será que os nossos kolkozianos desaprenderam o cultivo de batata e repolho? O aventureiro Béria boicotava afincadamente todas as propostas sobre a agricultura. Por exemplo, discutiu-se durante três meses a questão do aumento da produção da batata e, durante esses três meses, não conseguimos tomar decisões. Logo que púnhamos o assunto à discussão, Béria propunha que se aperfeiçoasse. Esse provocador agia assim. Travou a solução de muitas questões. Penso que ele considerava que, se em algum lugar surgissem complicações devido ao descontentamento da população, isso seria melhor para ele. Ah, mas que grande canalha!
E, segundo a já estabelecida tradição soviética, o afastamento e a liquidação de Béria resolveriam todos os problemas.
Camaradas, termino a minha intervenção. Estamos firmemente convencidos de que ninguém conseguirá afastar-nos do caminho correcto pelo qual o nosso partido avança, o caminho apontado por Lenine e Estaline. (Aplausos.)
Agora, depois da limpeza desse nojo e do arrancamento do inimigo Béria, avançaremos ainda com mais convicção e mais rapidamente em frente, rumo a novas vitórias. (Aplausos.)
O coro de acusações dos seus camaradas de partido prolongou-se de 2 a 7 de Julho de 1953, embora, na sua maioria, não passassem da repetição do que Malenkov e Khruschov já tinham pronunciado. Porém, Lazar Kaganovitch, outro dos membros do Bureau Político, acrescentou uma acusação mirabolante:
Béria olhava de forma inamistosa para a declaração de que Estaline é o grande continuador da obra de Lenine, Marx e Engels. Hoje, depois de termos liquidado o traidor Béria, devemos restabelecer completamente os direitos legítimos de Estaline e chamar à grande doutrina comunista doutrina de Marx-Engels-Lenine-Estaline. (Aplausos.)
Béria não queria apenas fazer as emendas de que falamos. Podem-se fazer emendas, poucas, às bases do marxismo-leninismo, mas ele queria liquidar o marxismo-leninismo, precisava disso para abrir caminho à sua degeneração burguesa, a um golpe fascista.
A reunião terminou com a aprovação por unanimidade e aclamação, pois não podia ter sido de outra forma, com o decreto do Plenário do CC do PCUS «Sobre as Acções Criminosas de Béria contra o Partido e o Estado», em que estavam reunidos os crimes que ele cometeu e não cometeu: «a) Apoiar completamente e como únicas correctas as medidas atempadas aprovadas pelo Presidium do Comité Central do PCUS para a liquidação das acções criminosas de Béria contra o Partido e o Estado; b) Expulsar L.P. Béria, inimigo do partido e do povo soviético, por acções de traição, das fileiras do Partido Comunista da União Soviética e julgá-lo.»
Depois de uma decisão destas, era preciso que a «justiça soviética» se realizasse sem qualquer tipo de surpresas. Por conseguinte, Khruschov decidiu substituir o procurador-geral da URSS, Grigori Safonov, «que não nos inspirava confiança; duvidávamos de que ele pudesse objectivamente investigar o caso de Béria». Foi substituído por Roman Rudenko, homem de inteira confiança de Nikita Sergueevitch.
Não havia tempo a perder e, por conseguinte, um decreto do Presidium do CC encarregava o novo procurador de, «em 24 horas, escolher o respectivo aparelho de investigação, informando da sua constituição pessoal o Presidium do CC do PCUS, e começar imediatamente, tendo em conta as instruções dadas no plenário do Presidium do CC, a descobrir e investigar os factos da actividade hostil de Béria, através dos que o rodeavam, contra o Partido e o Estado».
E tudo era feito no maior dos segredos, tendo os juízes de ser aprovados pela direcção comunista e a sentença sido redigida com a ajuda de um dos jovens quadros da escola estalinista: Mikhail Suslov, então já «líder espiritual» de Álvaro Cunhal, secretário-geral do Partido Comunista Português. No fundo, a sentença repetiu as acusações feitas no Plenário do PCUS.”