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Morreu Silvio Berlusconi (1936-2023), o terceiro homem mais rico de Itália, dono da TV privada no país, e das figuras mais importantes da vida e da política italiana nas últimas décadas. Foi por três vezes chefe de governo italiano. E tudo somado exerceu esse cargo por nove anos, o recorde desde a fundação da República Italiana, em 1946. É mesmo uma das figuras mais importantes na curta história da Itália unificada. Só ultrapassado como chefe do governo por Giovanni Giolitti, o grande líder liberal do período da monarquia constitucional, e, claro, pelo ditador fascista Benito Mussolini.
Que Itália é esta, a de Berlusconi?
Para perceber Berlusconi é importante começar pelo facto de que o Reino de Itália data apenas de 1861. Durante muitos séculos, a Itália foi “uma mera designação geográfica” e não um Estado, nas palavras do Príncipe de Metternich. Mas a ocupação de Roma, a sua capital, teve de esperar por 1870. E as fronteiras italianas atuais só ficaram definidas depois da Segunda Guerra Mundial. Esta jovem Itália unificada tem sentido, frequentemente, não ser tratada com o devido respeito pelas grandes potências. Foi assim, por exemplo, no final da Primeira Guerra Mundial. Esta frustração, e a ideia da necessidade de um poder forte para terminar de construir uma nação ainda incompleta, ajudam a explicar a conquista do poder pelo fascismo, em 1922.
A relativamente recente unificação italiana continua a ser importante para perceber a política interna e externa italiana no pós-Segunda Guerra Mundial. A essa luz, é fácil perceber a tendência para a grande fragmentação política. A recorrente necessidade de coligações e de grandes compromissos que, por vezes, foram para além do legal. E que frequentemente resultam em governos fracos e efémeros. Ainda hoje o campanilismo, ou localismo, pesa tanto ou mais do que o nacionalismo, que vem ao de cima com o futebol. Não foi por acaso que Berlusconi escolheu para nome do seu partido — Forza Italia! — o slogan dos fãs da, por vezes magnífica, seleção de futebol italiana.
Sempre gostei de Itália, cuja influência na história da Europa dificilmente pode ser subestimada. Lembro-me da minha primeira visita, como jovem estudante, em 1994, e de ter ficado espantando com o peso da propaganda de um novo partido com o nome bizarro de Força Itália! E de universitários italianos me explicarem que não era para levar a sério. Não era um verdadeiro partido. Berlusconi era um milionário que tinha enriquecido dando ao povo o pior ópio televisivo. Era uma evidente piada política. Estavam errados. A morte política de Berlusconi, muitas vezes anunciada, nunca se concretizou. Agora que o próprio morreu, a Forza Italia! pode bem desaparecer — era, sobretudo, um instrumento do seu fundador e financiador. Mas o seu legado populista permanece bem vivo.
O balanço: precursor de uma era populista
Nunca tive oportunidade de estar com Berlusconi. Mas estive um par de vezes com o Boris Johnson, o ex-primeiro-ministro britânico. Na altura em que vivi na Grã-Bretanha, ele era editor do Spectator e uma presença popular nas port talks, as conversas depois de jantar, nos colégios de Oxbridge.
Numa dessas ocasiões, contou a sua ida à Sardenha para entrevistar Berlusconi. Terminou a história dizendo que a Villa Certosa, onde decorreu o encontro, era muito kitsch. Estava sempre à espera de que, qual vilão do James Bond, Berlusconi mandasse abrir um alçapão para uma piscina com tubarões. No entanto, o mesmo Boris Johnson que assim exibia o seu desprezo por Berlusconi imita agora a sua postura!
Confrontado esta semana com a violação flagrante e repetida das restrições que impôs aos britânicos durante a Covid-19, e com a recomendação da comissão parlamentar de ética para ser afastado, Johnson optou por seguir o exemplo de Berlusconi e acusou uma vasta conspiração das elites anti-Brexit. Sempre que tinha problemas em tribunal – e foram mais de trinta os processos de fraude, evasão fiscal ou corrupção –, Berlusconi falava de uma conspiração de comunistas, invejosos da sua riqueza. (Diga-se que Berlusconi apenas foi condenado, com uma sentença transitada em julgado, por um caso de evasão fiscal e a pena acabou reduzida pela idade avançada.)
Como avaliar o impacto de Berlusconi, a nível interno e externo?
Em Itália, não pode ser considerado um grande sucesso a cumprir as suas promessas de mudar o país. Aliás, desde o início, promessas incríveis, como é típico dos populistas: baixar impostos e reduzir deficit e dívida e criar um milhão de empregos, etc. Mas teve sucesso naqueles que eram provavelmente os seus principais objetivos: evitar ser preso, evitar que o seu império televisivo fosse desfeito, manter a sua influência política. Até por isso, nunca foi uma ameaça tão séria ao sistema democrático em Itália como outros populistas com quem criou laços de amizade, como Putin, Órban ou até Trump.
A longa vida política de Berlusconi é sobretudo o resultado do facto de figuras consideradas mais sérias da esquerda e da direita moderadas — como Romano Prodi ou Mario Monti — nunca terem conseguido apresentar uma alternativa consistente e eleitoralmente bem sucedida. Quem foi roubando votos a um Berlusconi mais envelhecido foram, sobretudo, outros populistas de direita e de esquerda. Foi assim com Matteo Salvini e com o movimento 5 Stelle. Foi assim, mais recentemente, com a atual chefe do governo italiano, Georgia Meloni, que Berlusconi começou por apadrinhar como sua ministra da juventude.
Berlusconi também mostra como é perigoso subestimar populistas, ou a excessiva judicialização da política, a par da sua ineficácia onde deveria funcionar, nos tribunais. Mas também mostra o risco da complacência de partidos moderados com a corrupção. Foi assim que acabou a Primeira República em Itália. Foi esse vazio que deu a Berlusconi a sua oportunidade.
Em termos externos, Berlusconi também foi incapaz de inverter o facto de que a Itália tende a pesar menos do que se poderia esperar. Afinal, a Itália é a terceira maior economia da Europa, o que nos deve levar a qualificar visões demasiado negativas. Mas a frequente instabilidade política italiana ajuda a explicar que nunca tenha tido na Comunidade Económica Europeia ou na União Europeia o peso dos outros dois grandes países fundadores: França e a Alemanha. Berlusconi não era grandemente apreciado pelos seus homólogos europeus. A ponto de haver rumores credíveis — em que o próprio acreditava — de terem manobrado nos bastidores da política italiana para levar ao seu afastamento, em finais de 2011, para ser substituído por um governo tecnocrático, considerado mais fiável em plena crise das dívidas da zona euro.
Talvez por despeito, talvez por genuína empatia, Berlusconi, tal como Trump, apostou em boas relações — até pessoais — com homens-fortes. Desde logo, Putin e Lukashenko, mas também Erdogan e Órban. Não por acaso, vieram deles grandes elogios na hora da sua morte. E uma das últimas grandes controvérsias em que Berlusconi esteve envolvido, no ano passado, foi resultado precisamente de culpar o país agredido, a Ucrânia, de ter sido invadido. Devia, segundo Berlusconi, ter cedido a Putin. Também a este respeito, Berlusconi deixa uma lição: há muito quem esteja insatisfeito com a ordem regional e global dominante, até mesmo no Ocidente alargado.