José Maria Ricciardi entrou esta quarta-feira nas instalações do Tribunal Central de Instrução Criminal, no Campus da Justiça, de “consciência tranquila” e saiu, três horas depois, “muito cansado”, mas convicto de que esclareceu o tribunal. Estas foram as suas palavras aos jornalistas antes e depois de mais uma sessão da fase de instrução daquele que é considerado um dos maiores processos da justiça portuguesa — o processo GES/BES. Dentro da sala de audiências, porém, foi mais expansivo a responder aos advogados, ao Ministério Público e ao próprio juiz Ivo Rosa, que chegou a repreendê-lo por não o deixar acabar de falar. E se para alguns teve um testemunho esclarecedor, para outros nada acrescentou ao que disse há sete anos, — naquele dia 29 de junho de 2015, quando pela primeira vez prestou declarações sobre o caso, disparando não só contra Ricardo Salgado, mas também contra outros gestores que estão agora no banco dos réus.
Chamado a depor pelo diretor de compliance e auditoria do então BES, João Martins Pereira, que está acusado de três crimes de burla qualificada, o testemunho de Ricciardi já tinha estado marcado para 26 de abril, mas acabou adiado. Esta quarta-feira o seu depoimento seguiu-se ao do ex-diretor de contabilidade do BES, Nelson Pita, mas prolongou-se por três horas numa sessão a que só os envolvidos podem assistir. Mais tempo do que o que demorou a depor há quase um ano, também contra Ricardo Salgado, mas no processo que Ivo Rosa decidiu separar do Marquês para que Salgado fosse julgado à parte dos arguidos do processo que envolve o ex-primeiro-ministro José Sócrates. Foi o testemunho mais longo até agora nesta fase processual — em que se vai decidir se o caso segue para julgamento. E a inquirição teve mesmo alguns momentos mais tensos, como descreveram algumas fontes judiciais ao Observador.
As primeiras perguntas foram feitas a Ricciardi pelo próprio juiz Ivo Rosa. O magistrado perguntou ao antigo presidente do BESI se confirmava que tinha já prestado declarações ao Ministério Público em 2015 e, numa segunda vez, em 2017, o que este assentiu ainda antes de saber que grande partes das perguntas que lhe iam fazer baseavam-se precisamente nas declarações já feitas ao processo.
Como foi reportado o buraco nas contas da ESI?
Uma das questões de Ivo Rosa foi precisamente o momento em que foi detetado um erro nas contas da ESI (a Espírito Santo Enterprises). Em 2015, perante os procuradores José Ranito, Rita Madeira e Nádia Couto, Ricciardi colocou este momento em finais de 2013, quando numa reunião do Conselho Superior, para onde foi designado dois anos antes pelo pai, Ricardo Salgado comunicou que tinham feito “melhor” as contas da ESI e que o passivo não era de 3 mil milhões, mas sim 7 mil milhões de euros. Nessa altura, disse à data, percebeu que o grupo “estava insolvente” “e que as contas haviam sido falseadas”. Salgado justificou que era alheio a este lapso. Aos procuradores Ricciardi disse que achou uma “mentira”, esta quarta-feira em tribunal chamou-lhe mesmo uma “aldrabice”.
É que, segundo contou e mantém, Salgado mostrava um grande “empenho pessoal” na ESI, aquela que era a holding nuclear do Grupo Espírito Santo. Por outro lado, reforçou, era comum vê-lo reunir com Francisco Machado da Cruz e José Castella (também arguidos no processo) nas instalações do BES. Reuniões que diz saber que aconteciam, ainda que nunca tenha participado.
Foi precisamente, segundo a sua primeira inquirição, João Martins Pereira, juntamente com Nelson Pita, Carlos Calvário, sob responsabilidade de Joaquim Goes, que descobriram estes problemas nas contas da empresa. Mais tarde, sublinhou Ricciardi aos procuradores, todos eles acabaram como assessores do ESI.
Esta tarde Ricciardi, apurou o Observador, não falou nestes valores, mas lembrou que foi descoberta uma ocultação de um passivo de 1,3 mil milhões, o que corresponde ao que disse nessa primeira inquirição. Ricciardi referira que nunca percebeu como é que em dezembro de 2012 o passivo da ESI era de 3,4 mil milhões de euros, o que na realidade eram 4,6 mil milhões (ocultando-se 1,2 mil milhões) e se transformou em setembro de 2013 em 7 mil milhões.
Ricciardi recebeu valores à parte, mas foi um prémio dado ao pai
Ricciardi foi também confrontado com os valores que os administradores recebiam à parte do seu salário. E voltou a contar o que aliás já tinha respondido no âmbito do processo Marquês. Que tinha recebido dinheiro da ESI, por via do pai — que tinha direito a um prémio de mais de 200 mil euros anuais e quis-lhe dar metade do valor por ter ingressado no Conselho Superior do grupo. No entanto, ressalvou, declarou-o às Finanças. Na primeira inquirição que fez assumiu que seis outros responsáveis também receberam prémios, alguns arguidos no processo. Para alguns advogados na sala, porém, fica a dúvida se o que Ricciardi sabe é da altura em que trabalhou com o primo ou se já está contaminado pelas informações que tem lido na comunicação social.
As perguntas e respostas fluíam até que chegou o momento de Adriano Squillace, advogado de Ricardo Salgado. Já não é a primeira vez que o advogado está na barra do tribunal perante o primo de Salgado e, segundo apurou o Observador, as crispações entre ambos são comuns.
O advogado lembrou a testemunha que em 2013 tinha tentado reunir um grupo de pessoas para votarem contra Salgado e conseguirem tirarem-no do comando do Conselho Superior. No entanto, chegada a hora, como o próprio Ricciardi assume, todos aqueles que com ele tinham elaborado um documento para travar Salgado acabaram por manter a confiança neste. Aliás, chegaram mesmo a acusar o próprio Ricciardi de falta de solidariedade quando questionou o passivo da ESI.
Ricciardi foi respondendo e os nervos de Squillace foram adensando. “Queria o lugar de Ricardo Salgado?”, acabou por perguntar-lhe num tom mais irritado à procura de uma motivação ou explicação. “Não queria nada, isso não é verdade”, garantiu Ricciardi em tribunal, como aliás já o fez noutros processos.
Defesa de Salgado perguntou-lhe se estava a mentir
O advogado terá afirmado mesmo que Ricciardi acabou, depois, por aprovar o voto de confiança, colocando-se ao lado dos restantes. Por outro lado, já em junho de 2014, perante as notícias que saíam sobre o BES, ele próprio tinha assinado uma declaração / acordo (com assinaturas de três ramos da família) em que se comprometiam a colaborar com as autoridades (Governo e Banco de Portugal), convidar Ricardo Salgado a demitir-se e designar José Maria Ricciardi para liderar o setor financeiro e Manuel Espírito Santo para o não financeiro.
“Ou está a mentir agora ou mentiu na altura”, insistiu o advogado. Mas Ricciardi manteve que não queria aquele lugar e que o Banco de Portugal até chegou a sugeri-lo e que recusou por uma questão de manter a “idoneidade”.
Já em resposta ao advogado Saragoça da Matta, que representa o arguido que ali o levou, João Martins Pereira, Ricciardi terá acabado por admitir que nem tudo o que está reproduzido na primeira inquirição foi exatamente assim dito — mesmo que tenha marcado um dia para ouvir a reprodução do que disse e só depois assinar.
Nessa inquirição Ricciardi foi claro a apontar o dedo a João Martins Pereira, acusando-o mesmo de não comunicar ao Banco de Portugal o buraco nas contas da ESI que tinha descoberto. Disse mesmo que lhe transmitiu que devia “deixar de mentir”. João Martins Pereira foi ouvido como testemunha do caso várias vezes, até acabar por ser constituído arguido.
Ricciardi afasta culpa de João Martins Pereira
Esta tarde, porém, Ricciardi disse que não apontou o dedo a ninguém e que a única pessoa que responsabiliza pelo colapso do BES é Ricardo Salgado, que, segundo diz, já levava todas as decisões tomadas para o Conselho, que funcionava de uma forma um tanto ou quanto “autocratata”, uma “governance” contra a qual manteve as críticas.
Ao que o Observador apurou, Saragoça da Matta acabou por lembrar ao juiz a importância de voltar a ouvir testemunhas que tinham sido ouvidas em fase de inquérito. Ivo Rosa, assim que abriu a instrução, aceitou apenas quatro das mais de 20 testemunhas que o arguido queria que fossem ouvidas de novo. A defesa teve de explicar a sua importância para conseguir reverter a decisão do juiz.
Um outro momento de tensão esta tarde acabou com o próprio juiz Ivo Rosa a abrir a porta da sala de audiências pronto para abandonar a sessão. Isto depois de ter chamado a atenção do Ministério Público para várias questões de direito e para algumas que não passariam de opiniões. A certa altura, depois de uma “picardia” que já envolvia advogados, Ministério Público e a própria testemunha, que Ivo Rosa não conseguiu controlar nem silenciar, o magistrado chegou mesmo a levantar-se e a preparar-se para abandonar a sala. Só assim conseguiu o silêncio que queria da audiência.
Já passava das 18h30 quando a sessão terminou. Todos a acreditar que a sua verdade ficou defendida.