A possibilidade de uma nova pandemia, como a que se alastra neste momento com o coronavírus, foi prevista por diferentes cientistas e investigadores, que para estudarem esse cenário tiveram em conta simulações em muito semelhantes ao que se está a passar neste momento.
E, mais importante, deixam uma série de recomendações aos países afectados. Umas podem servir de lição para o futuro; outras podem ser aplicadas já.
Neste artigo, vamos considerar três previsões: primeiro, os relatórios do National Intelligence Council, órgão responsável por delinear a estratégia de informações e segurança dos EUA; em segundo lugar, uma Ted Talk de 2015 do fundador da Microsoft, Bill Gates; e, finalmente, uma simulação feita pelo think-tank norte-americano Center for Strategic and International Studies. Olhamos primeiro para o que cada um previu acertadamente e, depois, para as recomendações que deixaram aos líderes mundiais.
O que eles previram
National Intelligence Council
Periodicamente, o National Intelligence Council publica os seus relatórios “Global Trends”, onde deixa vários alertas sobre como está e para onde vai o mundo, deixando também diferentes recomendações estratégicas. Embora este relatório esteja acessível para todos online, ele é escrito a pensar numa pessoa: o Presidente dos EUA. Dessa forma, estes relatórios são publicados no período entre a eleição ou reeleição de uma administração e a sua tomada de posse.
Para que se entenda que é de estratégia de que se trata nestes documentos, eles procuram acima de tudo prever o futuro e despistar problemas. Por exemplo, o relatório “Global Trends” publicado em dezembro de 2000 (entregue à primeira administração de George W. Bush) procurava olhar para um hipotético 2015, sob o título: “Global Trends 2015: A Dialogue About the Future With Nongovernment Experts”, ou, em português, “Tendências Globais 2015: Um Diálogo Sobre o Futuro com Especialistas Não-Governamentais”. O ano referido no título não deve ser encarado de forma literal, mas antes como uma referência de um futuro que pode parecer distante mas para o qual os estados devem preparar-se
E a verdade é que, se verdadeiramente leram aqueles documentos, os últimos presidentes norte-americanos não podem dizer que não foram avisados para este cenário.
No relatório Global Trends 2015, publicado em 2000, quase não há menções a este tipo de cenários. Apenas se refere que “outra epidemia global na escola do HIV/sida (…) com graves danos e enormes custos para vários países desenvolvidos” pode ser um fator disruptivo.
Na edição seguinte, o Global Trends 2020, publicado em 2004, já há uma maior preocupação quanto a este tema. “Alguns especialistas acreditam que é apenas uma questão de tempo até aparecer uma nova pandemia, como o vírus de 1918-1919 que matou uma estimativa de 20 milhões de pessoas em todo o mundo”, disse. O risco seria não só para os países e megalópolis com “maus sistemas de saúde” mas também para a globalização. “A globalização estaria em perigo se o número de mortes ascendesse aos milhões nos maiores países e o contágio da doença suspendesse as viagens e o comércio a nível global durante um período prolongado, levando os governos a gastar muitos recursos com sistemas de saúde assoberbados”, lê-se nesse relatório.
Mais detalhada ainda é a edição do Global Trends 2025, publicado em novembro de 2008 e por isso feito a pensar na então recém-eleita administração de Barack Obama. Nele, há uma página inteira dedicada a este tema. Ali, prevê-se à cabeça que uma pandemia pode levar a “conflitos e tensões internos e transfronteiriços” — tudo realidades que são “mais prováveis” à medida que “as nações tiverem dificuldades, perante um degradamento das suas capacidades, para controlarem o movimento das populações que procurem fugir às infeções ou manter acesso a recursos”.
Este relatório, publicado em 2008, prevê corretamente a possível origem geográfica de um novo coronavírus: “Será provavelmente numa área marcada por uma alta densidade populacional e com proximidade entre humanos e animais, como são muitas zonas na China e no sudeste asiático”.
E também aponta para as ineficiências que se verificam ainda em várias partes do mundo, como é a dificuldade específica de realizar testes e também a mais generalizada falta de preparação dos sistemas de saúde de vários países para uma pandemia deste nível. “Perante um cenário destes, uma capacidade inadequada de monitorização da doença dentro do país de origem provavelmente iria prevenir uma identificação atempada da doença”, lê-se no relatório. “Podem passar semanas antes de os testes laboratoriais definitivos serem obtidos, de forma a confirmar a existência de uma doença com potencial pandémico”, continua o mesmo documento. Ali, lê-se também que os limites à circulação de pessoas a nível internacional não chegam para travar o vírus, referindo a possibilidade de pessoas infetadas mas que não manifestam o sintoma poderem viajar ainda antes dessa interdição — tal como se veio a verificar na crise do novo coronavírus.
No relatório Global Trends 2030, publicado em dezembro de 2012, volta a haver menções ao cenário de pandemias. Desta vez, essa possibilidade é incluída no grupo de “cisnes negros” (expressão cunhada pelo autor Nassim Nicholas Taleb, no livro “O Cisne Negro: o impacto do altamente improvável”), isto é, situações improváveis e por isso imprevisíveis que podem ter um impacto devastador. Nesta edição do Global Trends, aponta-se para a possibilidade de “um surto resultar numa pandemia global que causa sofrimento e morte em todos os cantos do mundo, provavelmente em menos de seis meses”.
No Global Trends 2035, que por ter sido publicado em janeiro de 2017 já foi entregue à administração de Donald Trump, há apenas breves referências ao cenário de uma pandemia. Num cenário hipotético, refere-se que a “pandemia global de 2023 reduziu de forma dramática as viagens a nível global, na tentativa de conter a propagação da doença, contribuindo para uma desaceleração do comércio mundial e um decréscimo da produtividade”.
Bill Gates
Em março de 2015, Bill Gates pisou o palco de uma conferência dos Ted Talks e falou de uma ameaça do passado e uma ameaça do futuro.
A do passado remete para a Guerra Fria, altura em que EUA e União Soviética permaneciam de lados diferentes do mundo, numa disputa que tinha tanto de ideológica como de geopolítica e que foi marcada pelo desenvolvimento de armas nucleares de ambos os lados. Esta ameaça é representada num ecrã, que está por trás de Bill Gates, com uma explosão nuclear. “Hoje, o maior risco de catástrofe não é este”, diz, referindo-se àquela nuvem em forma de cogumelo.
“Em vez disso, é assim”, diz. Nesse momento, a imagem que surge no ecrã é outra: uma molécula de vírus.
[Veja aqui a Ted Talk de Bill Gates]
Na altura em que Bill Gates falava, o pior do surto de ébola na África Ocidental já tinha passado. Por isso mesmo, a intervenção do fundador da Microsoft refere três razões para o ébola ter sido especialmente forte apenas em três países daquela região. A primeira razão foi o “trabalho heroico” por parte de trabalhadores do setor da saúde, que “encontravam as pessoas e preveniam mais contágios”. A segunda razão foi a “natureza do vírus”, que levava a que um infetado “não conseguisse sair da cama”. A terceira e última razão deu-se “simplesmente por sorte”, que foi o facto de o ébola não ter entrado “em muitas áreas urbanas”, reduzindo assim o contágio.
E depois do ébola? “Da próxima vez, talvez não tenhamos tanta sorte”, sublinhou Bill Gates.
Nesse cenário — que é o atual e que Bill Gates previu com cinco anos de antecipação — o fundador da Microsoft fala em “fatores que poderiam tornar as coisas mil vezes piores”. O orador acabou, porém, por referir apenas dois.
O primeiro tem a ver com a fonte do vírus: “Poderia ser uma epidemia natural como o ébola ou pode ser terrorismo biológico”, disse.
Neste caso, o consenso é o de que o novo coronavírus é uma epidemia natural com origem em Wuhan, na China. Porém, já há governantes chineses a promover, sem oferecer quaisquer provas, a ideia de que o novo coronavírus pode ter sido “plantado” na China pelos EUA. O porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China Lijian Zhao reagiu assim às declarações de uma autoridade norte-americana, que se refereiu ao vírus como “o coronavírus chinês”: “É possível que tenha sido o exército dos EUA a trazer a epidemia para Wuhan. Sejam transparentes! Tornem os vossos dados públicos! Os EUA devem-nos uma explicação”.
O segundo fator tem sido sobejamente referido: os infetados que não apresentam sintomas, ou seja, os assintomáticos: “Pode haver um vírus com o qual as pessoas se sintam bem enquanto estão contagiadas, ao ponto de entrarem num avião ou irem ao mercado”.
Center for Strategic & International Studies
Dificilmente alguém previu uma pandemia como a do novo coronavírus tão perto da realidade como o Center for Strategic & International Studies (CSIS). Este, que é um dos think-tanks mais respeitados do mundo, e que está sediado em Washington, juntou em outubro de 2019 um grupo de cerca de 20 especialistas de várias áreas (saúde global, bio-ciências, segurança nacional, emergências e economia) para estudar o cenário de uma pandemia a partir de vários pontos de vista.
O cenário queria-se fictício, mas realista. E, em muitos aspetos, acabou mesmo por se tornar realidade não muito tempo depois.
“No fundo, descobrimos que o mundo tem mudado de tal forma que se torna muito mais difícil conter doenças — e alguns dos erros que propiciam o seu contágio já aconteceram no atual surto do mundo real”, escreveram Samuel Brannen e Kathleen Hicks, coordenadores do estudo da CSIS, num artigo para o Politico.
A origem do vírus no cenário testado pelo CSIS é bem diferente daquela que se supõe ter sido a do novo coronavírus — em vez de um mercado de carne em Wuhan, o vírus do estudo do CSIS foi gerado num laboratório e espalhado pela primeira vez na Europa. Tanto que o primeiro foco contemplado naquele cenário fictício é o aeroporto de Berlin-Tegel. O relato sobre o qual os especialistas convocados pelo CSIS se debruçaram apontava para uma transmissão global num curto espaço de tempo.
“Nos três meses que se seguiram desde a primeira transmissão do vírus de humano para humano no aeroporto, o nosso vírus propagou-se rapidamente pela Europa, América do Norte, nordeste asiático e Médio Oriente”, contam os autores. Ou seja, o vírus transformou-se numa pandemia.
Importa ver o que fizeram os governos naquele cenário. “O nosso cenário assumiu que os governos iriam primeiro tomar medidas de curto prazo para tentarem atrasar o contágio, tal como restrições às viagens e fecho de fronteiras”, referem os autores. Estas medidas têm sido amplamente tomadas: os EUA fecharam as fronteiras a viagens da Europa e a União Europeia fez o mesmo ao resto do mundo, já depois de vários estados-membros terem tomado essas decisões pontualmente, como foi o caso de Portugal e Espanha entre si.
Naquele modelo, porém, não há muitas boas notícias a tirar dessas medidas. “Estas restrições, ao que percebemos, fazem pouco para atrasar o contágio do vírus. Pela altura em que estas decisões foram tomadas, ele já se tinha espalhado em corredores de tráfego aéreo e em transmissão de humanos para humanos”, escreveram os autores. Também ali havia assintomáticos: “A nossa doença hipotética era transmissível antes de os pacientes demonstrarem sintomas sérios, por isso as autoridades — tal como agora — ficam a correr atrás do prejuízo”.
No cenário do CSIS também havia um “abrandamento substancial da atividade económica”, mas não tão grande quanto a atual. “A disrupção no mundo real por vezes excedeu as nossas expectativas, especialmente no que diz respeito às medidas extraordinárias de quarentena impostas na China”, assumem os autores. Ainda assim, naquele modelo, tal como já veio a acontecer na crise que decorre, as entidades competentes anunciaram programas com o fim de “acalmar e amparar os mercados”. Foi isso que acabou por fazer a Reserva Federal dos EUA ao anunciar o corte das taxas de juro para um intervalo entre 0% e 0,25% e o Fundo Monetário Internacional, que anunciou estar “pronto para mobilizar” um bilião de dólares para ajudar os países-membros.
O que eles recomendaram
National Intelligence Council
Os relatórios “Global Trends” são parcos em recomendações, centrando-se acima de tudo em advertências e cenários tão hipotéticos como realistas. Ainda assim, no relatório “Global Trends 2035”, que foi publicado em janeiro de 2017 e é por isso o mais recente, é feita uma observação no que diz respeito à pesquisa e desenvolvimento de curas e vacinas que vai em linha com o que é feito nos EUA: além dos privados, esta deve ser uma responsabilidade assumida pelo Estado através de financiamento público.
“Há uma necessidade premente de tecnologias simples que possam ser financeiramente acessíveis para a população global”, refere aquele relatório. “Para fazer frente a estas necessidades, as práticas de negócio em torno da criação de novas tecnologias da saúde deverão mudar.”
Os autores do “Global Trends” apontam para a tendência de a investigação já estar à altura em que se escrevia aquele relatório (que foi publicado em janeiro de 2017) virada para o financiamento através de “fundos públicos em vez de investimento privado”. Além disso, é referida a tendência para outras fontes de financiamento privadas, nomeadamente de iniciativas filantrópicas. Uma das mais ativas nesta área a nível global é precisamente a Fundação Bill e Melinda Gates.
Bill Gates
Em 2015, na sua Ted Talk, Bill Gates enumerou cinco medidas para o combate eficaz a uma pandemia.
A primeira passa por criar “sistemas de saúde fortes em países pobres”. A criação ou fortalecimento desses sistemas, sublinhava Bill Gates, permitirá “ver o surto logo no início”.
A segunda medida é o mesmo que nos “prepararmos para uma guerra”. Mas, em vez de ser com soldados, no ativo e na reserva, essa preparação deve ser feita com médicos e outros trabalhadores do setor da saúde. Bill Gates fala de médicos como se de militares se tratassem, referindo as forças de mobilização rápida como um exemplo a replicar na saúde. “Precisamos de um corpo de médicos na reserva prontos, de muitas pessoas que têm o treino e experiência e que estejam prontas para ir para o terreno, com experiência e conhecimento”, diz.
Em terceiro lugar, Bill Gates acrescenta que os médicos acima referidos devem ser acompanhados por militares. Desta forma, estes últimos poderão ajudar com a sua “capacidade de se moverem depressa, tratar da logística e tornar uma área segura”.
A quarta proposta de Bill Gates é testar. Também aqui o fundador da Microsoft vai buscar um exemplo militar. Se no mundo militar são feitos “testes de guerra” para perceber se um inimigo ou aliado está alerta e em posição de ripostar se necessário, Bill Gates defende a realização de “testes de germes”. Este tipo de testes (que são também simulações) foram feitos nos EUA apenas duas vezes nos últimos 20 anos: em 2001 e em 2018.
Finalmente, a quinta proposta de Bill Gates é a aposta na “investigação e desenvolvimento na área das vacinas e dos diagnósticos”. Ele próprio, através da sua fundação, está a financiar um projeto de investigação que procura dar a possibilidade de cada pessoa fazer o seu próprio teste ao coronavírus, enviando-o depois para um laboratório com capacidade para analisar a matéria recolhida entre 24 a 48 horas após a receção. O jornal Seattle Times dava conta dessa iniciativa a 9 de março, referindo à altura que esses testes seriam disponibilizados “nas próximas semanas”. Até à data de publicação deste artigo, ainda não há nenhuma notícia que o confirme.
Center for Strategic & International Studies
A primeira recomendação do CSIS é difícil de criar de um dia para o outro — mas é precisamente assim, com essa rapidez, que ela se pode destruir: confiança. E é a todos os níveis que esta palavra é usada, uma vez que uma pandemia afeta-os a todos.
“As ações antecipadas e preventivas são críticas. Estabelecer confiança e cooperação internamente e internacionalmente entre governos, empresas, trabalhadores e cidadãos é importante antes de a crise chegar”, escrevem os autores daquele estudo.
Por isso, sublinham que “a comunicação é vital”, mas que esta não existe sem confiança. Essa necessidade torna-se ainda mais crítica junto das populações em tempos de ampla disseminação de desinformação e notícias falsas. “Um ingrediente essencial para lidar com uma pandemia é a ordem pública e a obediência a protocolos, racionamento e outras medidas que possam ser necessárias”, sublinham os investigadores do CSIS.
Depois, há a cooperação internacional, que os autores dizem ser igualmente “essencial”. “Um vírus não reconhece fronteiras”, sublinham, alertando que em nada ajudarão as “tensões comerciais, intromissões de um país na política interna de outro e o crescimento de tensões militares em zonas críticas em todo o mundo”.
“Os estados competem uns com os outros em vez de cooperarem, ignorando a natureza inerentemente transnacional da ameaça à medida que tentam minimizar os prejuízos para as suas populações, para as suas economias e para o partido no poder”, escrevem os autores. “No nosso cenário, estas tensões internacionais inibiram a partilha de informação”, continuam, sublinhando que foi precisamente isso que aconteceu com a China no início do surto.
Os investigadores do CSIS também falam da conjugação entre o setor privado e o setor público na investigação científica em torno deste e de outros vírus. “O governo federal dos EUA está legitimamente no centro da resposta a esta provável pandemia [o artigo foi publicado antes da declaração de pandemia pela Organização Mundial de Saúde]”, escrevem, para depois completar: “Mas é o setor privado que detém a maior parte da inovação tecnológica que produz tratamentos e curas”.
Estas recomendações ganham ainda outra força — e urgência — não só pela dimensão da atual pandemia mas por aquilo que os mesmos autores preveem ser a próxima. Ao contrário do que aconteceu agora, em que o surto começou na China — “a segunda maior economia do mundo, uma base científica relativamente desenvolvida e um sistema de governação vertical que lhe dá a possibilidade pouco comum de controlar e monitorizar a sua enorme população —, a próxima pandemia poderá começar num sítio onde, sem todas as condições acima referidas, o grau de propagação poderá ser maior e as hipótese s de controlo muito menores.
“A próxima pandemia irá muito provavelmente emergir num país ou numa região que é pobre, com uma má forma de governo e com infraestruturas de saúde pública fracas”, dizem os autores. Desta vez, talvez seja melhor anotarmos as suas palavras.