É uma entrevista polvilhada por risos, mas nunca gargalhadas. São risos como aqueles que se ouvem nos velórios de familiares chegados e que ajudam, de uma forma inexplicável, a lidar com a tristeza. É assim que o Charles Powell, historiador e biógrafo de Juan Carlos, fala ao Observador numa entrevista por telefone sobre o tema incontornável em Espanha e não só: o cume da desgraça de Juan Carlos, atingido esta segunda-feira com a carta que o rei emérito enviou ao filho, o rei Felipe VI, anunciando que ia sair de Espanha para poupá-lo às próprias polémicas.
“Já tive gente a dizer-me que isto é como se fosse a morte de um familiar”, confessa Charles Powell ao Observador. Muita gente lhe tem ligado desde a notícia desta segunda-feira. Não é para menos: Charles Powell é um dos autores mais destacados no estudo da figura que é Juan Carlos, de quem escreveu a biografia política “Juan Carlos of Spain: Self-Made Monarch” (sem edição portuguesa). Além deste livro, tem outro cuja tinta ainda mal secou, sobre o papel de Juan Carlos na política externa espanhola — a maior das ironias, numa altura em que Juan Carlos é suspeito de ter utilizado essa sua posição para enriquecer ilicitamente. “Não faço ideia do que é que agora faço àquilo”, diz. A obra já estava acabada, mas agora Powell quer fazer-lhe alguns ajustes. Se fosse publicado como está, o autor admite: “Iria fazer figura de parvo”.
Enquanto historiador, Charles Powell, que é também diretor do think-tank mais prestigiado de Espanha, o Real Instituto Elcano, tem assumido o esforço de sublinhar a importância de Juan Carlos no período da Transição do franquismo à democracia. Agora, assumindo que a maior culpa nisso é de Juan Carlos, Charles Powell admite: “Isso vai ser uma tarefa cada vez mais difícil para pessoas como eu“. É quando diz esta frase que solta o maior riso desta conversa. É, decerto, uma forma de lidar com a tristeza.
Comecemos pela necessidade disto tudo. A saída de Juan Carlos tinha de acontecer? Era inevitável?
Creio que a resposta é “sim”. A monarquia está sob uma pressão tremenda e é a sua sobrevivência que está em causa, pela primeira vez. O rei Felipe VI tomou a decisão certa ao afastar-se tanto quanto pôde do pai. Retirar fisicamente o pai do espaço que ambos partilhavam, o Palácio da Zarzuela, era uma questão urgente. Para muitas pessoas era uma ofensa que o antigo rei continuasse a viver ali às custas dos contribuintes espanhóis. Portanto, acho que isto era inevitável. Claro que, juntamente com tudo isto, há uma série de processos legais a decorrer em torno do antigo rei. Por isso, teria preferido que ele não tivesse saído de Espanha e se instalasse silenciosamente algures no campo. Fora de vista, fora de alcance.
Juan Carlos na República Dominicana? Tem lá um grande amigo: Pepe, o “rei do açúcar”
E porque é que acha que ele não tomou essa opção?
É difícil dizê-lo. Recuso-me a achar que ele é um fugitivo à justiça. Recuso acreditar que ele está a tentar escapar-se às consequências legais das suas ações. Mas é claro que vão surgir questões se ele se instalar na República Dominicana, como corre nos rumores. Pelo que sei, não há nenhum acordo de extradição entre Espanha e a República Dominicana. Mas creio que ele escolheu a República Dominicana provavelmente por questões pessoais e não por causa das consequências legais das suas ações. Ele tem amigos lá. Portanto, dado a sua idade e o seu estado psicológico, ele vai provavelmente procurar um sítio onde se sinta protegido e acompanhado de amigos com os quais queira passar o resto da sua vida. E fora do alcance do olho público. Creio que isto terá sido o fator determinante da sua escolha e não uma tentativa de fuga às consequências legais das suas ações. Até porque nem sabemos que consequências seriam essas.
Vá Juan Carlos para a República Dominicana ou para qualquer outra parte do mundo, acredita que ele estaria disponível a regressar a Espanha para ser julgado, se esse dia alguma vez chegar?
Teria de fazê-lo. Caso contrário, estaria a pôr em xeque não só o que resta do seu legado mas também o futuro da instituição em si — e, consequentemente, o futuro do rei Felipe VI e da monarquia enquanto instituição. Portanto, sim, ele teria de fazer isso mesmo. Mas é um pouco prematuro especular. Por esta altura, ideia de um julgamento parece-me horrível [risos]. Um julgamento deste tipo pode decorrer de várias maneiras. Mas alguma coisa terá de acontecer com o dinheiro em causa. Terá de haver algum custo financeiro para ele, a nível pessoal — isto se as alegações forem verdadeiras, coisa que não sabemos. Mas aquilo que achamos que sabemos é que em 2008 ele recebeu 100 milhões de dólares do rei da Arábia Saudita, que tê-los-á depositado quatro anos mais tarde num banco suíço e que depois este dinheiro foi transferido para uma conta nas Bahamas. Receber aquela quantia do rei saudita, por si só, pode até nem ser ilegal. Pode ter sido um donativo. Claro que nesse caso as pessoas vão querer saber porque é que o rei saudita foi tão generoso ao ponto de lhe dar 100 milhões de dólares — e em troca de quê? E é evidente que isto é uma pergunta legítima. Mas, em si, isso até pode não ser ilegal. Não nos podemos esquecer que outro rei saudita lhe deu o iate Fortuna em 1979. E ninguém fez qualquer tipo de perguntas nessa altura.
1979 foi um ano muito diferente daqueles que temos vivido ultimamente…
Foi um ano muito diferente e há que reconhecer que também são quantias muito diferentes. Um iate é muito caro, mas deveria ser algo entre 5 e 10 milhões de dólares, no máximo. Mas ninguém levantou nenhuma questão à altura.
Mas é de facto muito diferente. E isso é algo que não escapa até àqueles que cultivaram a imagem de Juan Carlos e que nesta altura se sentem desiludidos por aquilo que ele foi nas últimas décadas.
Absolutamente!
Como biógrafo de Juan Carlos, também se sente desiludido?
Sim, sinto. Tenho escrito muito sobre o rei e tenho tentado explicar o papel que ele teve na Transição para a democracia. Há até quem me acuse de idealizar o papel dele nesse processo, posição essa de que discordo. Aliás, acabei de escrever um livro, que agora quase me arrependo de ter escrito, sobre o papel do rei na política externa de Espanha e na função de promoção da democracia fora de fronteiras. Consultei documentos inéditos em arquivos americanos, ingleses e franceses. E o que o livro prova é que Juan Carlos teve um papel importantíssimo em arrastar Espanha das sombras, do isolamento e da irrelevância em que se encontrava em 1975. Daí levou Espanha para uma posição muito importante, que provavelmente atingiu um pico em 1992 — o nosso annus mirabilis, em que houve os Jogos Olímpicos de Barcelona e a Expo de Sevilha. E também consegui provar com recurso a documentos como ele ajudou a economia espanhola a sobreviver às duas crises petrolíferas. Primeiro a de 1973, na guerra do Yom Kippur; e a que começou com a queda do Xá da Pérsia em 1979 e a guerra que se seguiu entre o Irão e o Iraque. Espanha tem uma grande dependência petrolífera do estrangeiro. E nas duas ocasiões os governos de então (a primeira crise foi com Francisco Franco, a segunda já foi com Adolfo Suárez) pediram ao rei que se envolvesse de forma ativa. E ele conseguiu milhões de barris de petróleo tanto de graça ou a preços muito baixos. O impacto das duas crises petrolíferas podia ter sido muito pior.
José María Aznar tem sido muito crítico do conceito do rei como mediador ou facilitador de negócios com monarcas estrangeiros, porque estamos perante monarcas que não têm qualquer tipo de controlo político, seja da opinião pública, dos media ou do parlamento. E creio que Aznar sempre suspeitou das relações de Juan Carlos com estes monarcas. O argumento de Aznar era o de que uma monarquia parlamentar europeia não pode envolver-se diretamente com chefes de Estado de países não-democráticos. E podemos dizer que isso é um bom princípio, que é seguido nas democracias escandinavas e nos países do Benelux. Mas creio que aí a resposta do rei seria a de dizer ‘certo, mas eu tenho uma relação muito especial com alguns destes chefes de Estado e consigo utilizar a minha relação com estas pessoas como alavanca para obter benefícios para Espanha’. E, claro, a linha ferroviária de alta velocidade entre Meca e Medina é o melhor exemplo disso mesmo. Repare: não estou a desculpar quaisquer transações ou atividades ilegais nas quais o rei possa ter estado envolvido. O que estou a dizer é que desde 1969, já no tempo de Franco, e certamente no tempo de Adolfo Suárez e no de Felipe González, e dos Presidentes de Governo seguintes, o rei foi solicitado para mediar com estes chefes de Estado. E depois de 2008, por causa das críticas que já havia em torno da Monarquia, creio que Juan Carlos sentiu a necessidade de dar uma prova de si mesmo à opinião pública. Sentiu que ainda tinha um papel e que ainda podia ser útil. E a única maneira que viu para conseguir atingir esse objetivo foi ao contribuir para conseguir estes contratos de grande relevo. A linha ferroviária de Meca-Medina valia 6,2 mil milhões de euros. Miguel Ángel Moratinos, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, disse em on ao The New York Times que sem o rei o contrato de Meca-Medina nunca teria existido. Porque, no final de contas, num país como a Arábia Saudita, é o monarca que toma a decisão final.
Mas ao falarmos do contrato de Meca-Medina é impossível esquecer que é precisamente com essa obra que surgem todas estas suspeitas em torno de Juan Carlos. Diz que Juan Carlos sentiu a necessidade de demonstrar que ainda tinha valor, mas a ideia que resulta de tudo isto é a de que o rei estava já numa situação de descontrolo. E que no fundo isso significava que não conseguia demonstrar valor sem, ao mesmo tempo, alegadamente enriquecer simultaneamente com esse gesto.
Isto é obviamente parte de toda esta questão. Mas para mim há um problema fundamental com a alegação da linha de alta velocidade: os 100 milhões foram pagos em 2008 e o contrato só surgiu em 2011. Portanto, há um problema cronológico. Foram os juízes suíços e Corinna Larsen que estabeleceram essa ligação. Depois, como foi no escândalo de Lockheed com o príncipe Bernardo [dos Países Baixos] na década de 1970, normalmente é a empresa que está a tentar ganhar o contrato que paga à pessoa que vai tomar a decisão — não o contrário. Porque é que o rei saudita haveria de pagar 100 milhões a Juan Carlos quando é o próprio governo saudita que vai pagar pelo contrato? A explicação que tem sido dada, de que Juan Carlos convenceu as empresas espanholas a baixarem o preço, é para mim muito pouco convincente. Sobretudo porque se trata de uma parceria entre empresas espanholas e sauditas. Por isso, porque é que o rei saudita pagaria ao rei espanhol para lhe agradecer um desconto num contrato de grande dimensão quando isso implicaria que as próprias empresas sauditas não poderiam beneficiar tanto desse negócio quanto poderiam desde o início? O que quero dizer é que não conhecemos suficientemente os detalhes para perceber o que é que se passou. Isto aconteceu debaixo do nariz de vários governos. Especificamente de Zapatero e depois de Rajoy. E o rei foi acompanhado por ministros dos Negócios Estrangeiros. Estas pessoas disseram todas em público que os contratos em causa seriam impossíveis se não fosse o rei. Porque é que ninguém pergunta a estas pessoas o que é que elas sabiam da forma como estes contratos foram celebrados em países em que não há controlo político? Estes governos e estas empresas privadas foram os principais beneficiários — mesmo para lá destas supostas luvas de 100 milhões de dólares, que por si só são um grande problema. Há uma fotografia incrível de Juan Carlos a voar para a Rússia em 2012, em que ele está no avião com José Manuel García-Margallo [ministro dos Negócios Estrangeiros de Mariano Rajoy entre 2011 e 2016] e dois ou três amigos que, só por acaso, são presidentes de enormes empresas — como Juan-Miguel Villar Mir, da construtora OHL, ou José Lladó, da Técnicas Reunidas. São todos amigos próximos do rei. Para lá da questão de possíveis luvas, isto é a expressão de um sistema assente no capitalismo de compadrio.
Essa ideia do compadrio parece clara no caso das empresas que terão lucrado com grandes empreitadas e também no caso dos políticos que chegavam a Espanha e se podiam gabar ao país de terem conseguido grandes contratos para a economia do país. Mas não houve também muita gente a fazer vista grossa porque Juan Carlos era, no fundo, Juan Carlos? Refiro-me à ideia do que era o Juan Carlos da Transição, que na sua biografia política bem diz ter trazido a democracia para a Espanha, e não ao Juan Carlos dos escândalos, que começa a surgir mais publicamente após a maioria absoluta de Felipe González em 1982.
Creio que a tentativa de golpe de Estado de 1981 teve muito a ver com isso, porque muitas pessoas estavam convictas de que ele salvou a democracia nesse ano. E é muito importante dizer também que os jornalistas também fizeram vista grossa.
Depois de 1981?
Sim, e isto só começou a mudar por volta de 1992 ou 1993. Foi nessa altura que começaram a sair as primeiras notícias nos media espanhóis sobre a vida de mulherengo do rei. Como é que isto muda? Creio que sobretudo por uma questão geracional. Por um lado, há as pessoas que se recordam da morte de Franco em 1975, do papel do rei na Transição e da tentativa de golpe de 1981. Por outro, por volta de 1992, já não há muitas pessoas que tenham vivido tudo aquilo. E essas pessoas começaram a assumir que a democracia era um dado adquirido. E quem acha que a democracia é um dado adquirido, acham o mesmo do rei. E quem acha que o rei é um dado adquirido então acha que não há problema em gozar com ele ou em fotografá-lo completamente nu ou em falar das amantes dele. As pessoas pensaram: “Ele fez um bom trabalho, mas já não precisamos dele para proteger a democracia espanhola”. Isto tudo aconteceu ao mesmo tempo em que havia um poder executivo muito forte, no tempo de Felipe González, que governou com grandes maiorias no parlamento entre 1982 e 1993. O interessante é que de acordo com as sondagens a popularidade do rei não desceu na primeira crise económica da Espanha democrática, que foi em 1992 e 1993. A monarquia manteve-se sempre à tona e permaneceu mais popular do que os partidos e do que o parlamento. Mas já não foi assim na crise de 2008. Em 2008, todas as instituições foram prejudicadas e a monarquia mais do que a maioria. Por isso, creio que há aqui uma questão de renovação de gerações. Agora, respondendo à questão: porque é que as pessoas fizeram vista grossa? No fundo, por uma questão de gratidão.
Gratidão…
Sim, no fundo é isso. Pelo papel que ele teve na restauração da democracia. E no início as pessoas, sabendo da sua vida de mulherengo, pensaram que, enfim, ele estava no direito dele desde que isso não interferisse com o desempenho dele como chefe de Estado.
Mas essa tolerância diminuiu. Psicologicamente as pessoas deixaram de olhar para o rei dessa forma. E também o rei parece ter tido uma mudança psicológica depois dos anos da Transição. Sei que os seus escritos sobre Juan Carlos são de natureza política, mas permita-me que o convide para uma análise mais psicológica. Esta mudança de postura do rei deve-se ao quê? Acredita na tese que diz que, com a maioria de Felipe González em 1982, Juan Carlos deixou de se sentir na obrigação de ser o “bombeiro da democracia espanhola”? E que, depois de uma infância e de uma juventude tão austeras, chegado a esse ponto, Juan Carlos decidiu aproveitar tudo o que não pôde aproveitar até aí?
É certo que ele teve uma infância bastante má. Ele tem um ressentimento com o facto de os pais o terem enviado para um colégio interno [na Suíça] aos 10 anos, idade em que ficou entregue a si mesmo. Mas creio que a maior mudança surge quando sente que a democracia está consolidada e quando fica claro para ele que a monarquia é compatível com um governo socialista — o que, do ponto de vista de Juan Carlos, era o mais desafiante porque foi algo que o rei Afonso XIII [avô de Juan Carlos, que abdicou do trono e na prática dissolveu a monarquia em 1931 após a vitória de partidos republicanos nas autárquicas desse ano] nunca conseguiu fazer. A meio da década de 1980, Juan Carlos já podia dizer que tinha conquistado todos os seus principais objetivos: entrada na NATO em 1982 e entrada na Comissão Europeia em 1986. Nessa altura Espanha estava totalmente integrada no mundo ocidental, era uma democracia moderna e estável. E, por isso, nessa altura houve uma dose de relaxamento por parte do rei. Mas olhei para as estatísticas do tempo que ele passou fora do país em representação do país na década de 1980 e são números incríveis. Como tal, seria errado dizer que ele se encostou e foi de férias. Na verdade ele estava a trabalhar no duro.
Mas já noutras dimensões.
Claro. Mas também é importante dizer que ele estava a tirar partido do facto de ter em Felipe González o único Presidente de Governo que verdadeiramente o entendia. Até de um ponto de vista geracional, porque Felipe González é apenas quatro anos mais novo do que o rei. Provavelmente eles eram capazes de falar em privado sobre a vida, sobre mulheres e sabe Deus o que mais. Formaram um duo muito eficaz. No meu livro, defendo a ideia de que o elemento-chave de uma monarquia parlamentar é a relação entre o monarca e o Presidente do Governo. Creio que Felipe González fez sobressair o melhor de Juan Carlos e Juan Carlos sabia que Felipe González era um bom primeiro-ministro capaz de manter a casa em ordem. Mas há um episódio, que pode ser visto como um desentendimento entre os dois, em que surgiu a ideia de que a vida pessoal de Juan Carlos estava a interferir com o seu trabalho como chefe de Estado. Aconteceu em 1992, quando o Felipe González precisou de substituir o então ministro dos Negócios Estrangeiros, Francisco Fernández Ordóñez, que estava com cancro, por Javier Solana. Obviamente que para isto acontecer era necessário uma assinatura do rei, mas ninguém sabia dele à exceção de Felipe González, que estava a par de que Juan Carlos estava na Suíça a cuidar de uma antiga amante chamada Marta Gayá, que estava a atravessar uma depressão. Felipe González disse publicamente que não sabia onde é que o rei estava. Mas sabia! Quis humilhar o rei em público ao recordar-lhe dos seus deveres. Esta é a única ocasião, pelo menos que seja do conhecimento público, em que Felipe González pensou que Juan Carlos não estava a cumprir a parte que lhe cabia. Mas é bastante sintomático da relação que os dois homens têm que Felipe González foi o único político que Juan Carlos consultou antes de abdicar do trono, em 2014.
Já que estamos no capítulo dos Presidentes de Governo, pergunto-lhe agora sobre Pedro Sánchez, o atual executivo e a gestão deste caso. É público e notório o desconforto do Governo perante toda esta situação. Mas, por um lado, também não estamos a falar do propriamente do Governo com as credenciais monárquicas mais vincadas.
Penso que esta questão está a ser exagerada. Pedro Sánchez está muito confortável com o rei Felipe VI. Obviamente que o mesmo não acontece com Juan Carlos: praticamente nunca o viu, têm uma grande diferença de idades e provavelmente não sente que faz parte do seu leque de obrigações proteger Juan Carlos. Mas eu não daria importância à ideia de, por um lado, a presença do Podemos neste governo, e de, por outro, Pedro Sánchez alegadamente por inclinações republicanas, de que o Governo está a tentar prejudicar a monarquia. Isto é o que dizem os setores conservadores. Não alinho com isso. E não o digo para proteger o Governo, porque não tenho nenhum interesse em fazê-lo. Mas creio que eles têm problemas mais graves com que se preocupar. Além de que o Governo fez provavelmente a única coisa que podia fazer: pedir ao rei Felipe VI que se distanciasse do seu pai. Algo que, sinceramente, o rei Felipe VI já tinha e precisava de fazer de qualquer forma.
É um facto que já havia, pelo menos desde 2018, gestos óbvios de afastamento de Felipe VI do próprio pai. Isto na altura em que saem as primeiras gravações de Corinna Larsen.
Exatamente. Mas daí a chegar ao ponto de pedir-lhe para sair do Palácio da Zarzuela, que é onde ele vive desde 1962… é um grande passo! Mas é possível que Felipe VI se tenha aproveitado de Pedro Sánchez para lidar com o pai. Ele pode ter dito algo como: “O Governo quer que eu faça isto e, constitucionalmente, sou obrigado a ouvir o Governo. Isto não é uma questão familiar, é uma questão institucional e constitucional”.
Acredita que Felipe VI sai mais forte disto? Porque para todos os efeitos é um gesto simbolicamente muito violento. Isto é uma reversão de papéis de Saturno a devorar o filho, agora é o filho que devora Saturno. É um quadro brutal, mesmo para Goya. Como é que Felipe VI sai disto?
Os críticos de direita dizem que ele foi fraco e que não defendeu o pai contra as investidas do Governo. Eu não acredito nisso e creio que ele fez o que era correto. Deve ter sido muito doloroso para ele fazer isto e provavelmente sente-se desiludido com o pai — o que deve ser um sentimento horrível para qualquer filho. Até porque tem razões para suspeitar que o pai não foi totalmente honesto com ele. Portanto, acredito que Felipe VI sai disto um pouco mais forte, mas é impossível negar que a situação é incrivelmente delicada. Porque, inevitavelmente, quanto mais a figura e o legado de Juan Carlos são prejudicados, mais fragilizada fica a figura do rei e da monarquia. Quer queiramos quer não, desde a rainha Vitória é o detentor do trono e a sua popularidade que legitimam a monarquia e não o contrário.
Sempre se falou do juancarlismo. Em Espanha sempre se ouviu a expressão “não sou monarquista, sou juancarlista“. O juancarlismo passou definitivamente de prazo?
Sempre fui contra o juancarlismo. E sempre disse, um pouco controversamente, que o principal problema de Juan Carlos é que ele não acredita na ideia de monarquia.
Como assim?
Que ele não é um monarquista, no final de contas [risos]. Talvez porque o pai dele nunca reinou e porque ele próprio não foi criado numa família real com trono. E por isso faltou-lhe essa experiência fundamental. Já ao longo do seu reinado, ele demonstrou desprezo pelas figuras da monarquia — e as pessoas aplaudiam isto ao início, porque dava-lhe um ar fresco e moderno. Mas o problema por trás disto é que ao deixar que tudo passasse a depender da sua própria popularidade, assim que ela desaparecesse, a instituição passaria a estar imensamente fragilizada e vulnerável. Ele nunca cultivou os símbolos e os rituais da democracia, algo que acredito dever-se ao facto de ele não ter sido criado numa família real com trono. A rainha Sofía é muito mais monárquica, porque ela foi criada numa família com trono.
Além de que a única referência que Juan Carlos tinha enquanto rei foi o avô dele [Afonso XIII, detentor da coroa entre 1886 e 1931], que esteve longe de ser um rei consensual e imponente. Além que é um exemplo muito distante de Juan Carlos, visto que o avô morreu quando ele tinha só três anos. Daí sobra a impressão de que Juan Carlos improvisou durante todo o seu reinado.
É precisamente por isso que a minha biografia do rei Juan Carlos é se chama “Juan Carlos of Spain: Self-Made Monarch”.
Nem mais. Quando pensei nisto não tinha em mente o título do seu livro, mas a ideia que ele encerra já responde à minha questão.
Escolhi esse título porque quis apontar para um paradoxo. Porque como é evidente, não são os monarcas que se fazem a eles próprios, como um homem de negócios self-made. Mas ele fez-se monarca à luz da sua própria imagem. Por isso é que decidiu viver no Palácio da Zarzuela e não no Palácio Real, por isso é que decidiu não ter uma corte e apenas uma família real nuclear: mãe, pai e três filhos. Muitas destas decisões foram boas — ao início, isto é. Permitiram à opinião pública espanhola digerir a ideia de que, depois de um hiato de quatro décadas, tinham um rei. Mas o problema é que Juan Carlos não levou isso além para consolidar a instituição e a sua popularidade. E isso foi um grande erro.
Essa postura, de um certo desprezo em relação à monarquia enquanto instituição, está presente na carta em que ele anuncia ao filho que vai sair de Espanha? Porque na carta ele fala apenas da “repercussão pública” de “acontecimentos passados” da sua “vida privada”. Não fala de nada institucional.
A carta tem uma dimensão institucional, no sentido em que ele diz que não quer ser um obstáculo e que não quer prejudicar a monarquia. A minha objeção à carta é que ele atribui a atual crise às suas atividades privadas quando, na verdade, algumas dessas atividades não foram privadas — aconteceram antes de ele ter abdicado em 2014. E quando se recebe 100 milhões de dólares de um chefe de Estado estrangeiro, não podemos falar de uma transação privada entre dois cidadãos privados. É uma transação entre dois chefes de Estado em funções.
Mas isso demonstra ainda outra coisa: é que na carta que Juan Carlos envia a Felipe VI ele reconhece a instituição quando pensa no filho enquanto monarca…
… mas não quando pensa nele próprio.
Isso mesmo.
Concordo, sim. Concordo. Sabe, não tenho como provar isto, mas suspeito que Juan Carlos está bastante impressionado com o grau do monarquismo do próprio filho.
É quase um choque de gerações. E por isso pergunto-lhe: a partir daqui, como é que se explica alguém que apenas conhece o Juan Carlos de 2020 que, em 1975, Juan Carlos foi, como você mesmo escreveu, “o piloto da Transição”? Como é que chama atenção para isso? E, além do mais, crê que essa atenção é merecida?
Isso vai ser uma tarefa cada vez mais difícil para pessoas como eu [risos]. A vantagem é que neste momento já podemos falar deste período como sendo parte do passado. É História. Como tal, é algo que pode ser estudado com a metodologia necessária, com base nas provas documentais que estão disponíveis. Mas há um problema em relação a isso nesta crise em particular. É que os jovens olham para 1975 como sendo tão relevante para a vida deles como foi a Idade Média. A maioria não estudou nada disto na escola, não têm memórias desses tempos. E, portanto, quando se diz que Juan Carlos cometeu vários erros mas que foi muito importante na Transição eles já não estão a ouvir. Eles não compreendem o papel do rei na democratização porque para estes jovens a democracia, a Europa e o Estado social são tudo dados adquiridos. Assumem que, de uma maneira ou de outra, todas estas coisas aconteceriam na mesma. Portanto, vai ser difícil chamar atenção para o que ele fez naquele período.
Mas não acredita que essa dificuldade surge por culpa do próprio Juan Carlos?
Absolutamente. Ponha-se na minha pele: acabei de escrever um livro onde basicamente provo documentalmente o facto de que Juan Carlos teve um papel crucial na normalização da posição de Espanha no mundo. As pessoas podem até aceitar que ele ajudou a economia espanhola e ajudou a mitigar o impacto das crises petrolíferas. Mas depois também vão pensar: “Ah, mas porque é que ele fez isto tudo e porque é que ele foi tão expedito em conseguir esses contratos? Foi porque sabia que ia receber luvas no valor de 5%?”. Portanto tudo isto vai ficar manchado.
E agora, que será feito desse livro?
Não faço ideia do que é que agora faço àquilo.
Mas sente necessidade, não digo de reescrever, mas pelo menos de escrever mais um capítulo?
Certamente que reescreverei a conclusão. Porque com a atual conclusão iria fazer figura de parvo. A minha conclusão inicial é, no fundo, uma defesa do papel das monarcas do século XX na promoção da política externa. E agora isto tem de ser relativizado. Além do mais, gostava agora de escrever um post scriptum ou um capítulo final sobre o rei Felipe VI. Porque, caso contrário, o livro vai acabar numa nota muito triste.
Parece que o Charles está, dentro daquilo que são os seus meios, a fazer uma tentativa de salvamento da monarquia enquanto instituição.
Bom, creio que vale a pena tentar. Talvez seja um esforço vão, mas vale a pena tentar. Houve algumas coisas nos últimos anos que são impossíveis de apagar e quem estiver a ler vai perguntar, afinal, quando é que Juan Carlos começou a descarrilar. Quando é que ele começou a sucumbir às tentações, se foi isso que aconteceu? E a partir daí cada uma das suas visitas ao países do Golfo Árabe fica sob suspeita e é legítimo perguntar porque é que ele ia lá com tanta regularidade.
Desculpe a simplicidade da pergunta, mas não posso deixar de perguntar isto: sente-se triste com tudo o que aconteceu?
Muito. Estou muito transtornado. Já tive gente a dizer-me que isto é como se fosse a morte de um familiar.
Sente o mesmo?
Sim. Há algumas pessoas que, com uma honestidade brutal, dizem que o melhor era ele ter morrido… Não sei. Talvez seja verdade. Mas, sim, sinto-me dessa forma. Isto é o fim de uma era. Havia uma narrativa muito positiva no último quarto do século XX em Espanha: democratização, europeização, Estado social, uma presença crescente no mundo, etc.. E esta narrativa tem sofrido grandes abalos. Um ponto de viragem foi a Guerra do Iraque e os atentados de 2003 em Madrid. E, depois, a enorme recessão de 2008, que dizimou 10% do PIB. E agora temos a pandemia, que vai dizimar sabe Deus quanto num só ano. E a isto ainda se pode juntar as tensões entre o centro e a periferia, como é o caso da Catalunha. Portanto, aquela narrativa foi mutilada.
Fim de uma era. E por isso é que tão difícil de processar.
Sim. Repare: eu não tiro nenhum proveito pessoal ao defender ao monarquia. Só que sempre achei que eles deram um grande contributo ao país e em abstrato creio na instituição. Mas reconheço que fica agora mais difícil defender esta minha posição.