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ABIR ABDULLAH/EPA

ABIR ABDULLAH/EPA

Birmânia: a tragédia Rohingya, uma difícil partida de xadrez

O empresário João van Zeller esteve recentemente em viagem em Myanmar e escreveu um ensaio sobre a tragédia dos Rohingya.

Myanmar (Burma, Brimânia), no Sudeste Asiático, tem estado a ocupar os media internacionais, diariamente e com muita visibilidade, devido à questão Rohingya.

É um vasto país de cerca de 60 milhões de habitantes, com uma cultura que oferece alguma dificuldade para ser avaliada pelo Ocidente pois, se por um lado está coberto por um intangível manto de mistério oriental, religiosidade, poesia e amabilidade, por outro oferece um doloroso testemunho de crueldade, miséria, conflito e corrupção.

Quem conhece a cultura e a sociedade desse país, ao ler e ouvir as notícias que, a propósito dos Rohingya, diariamente testemunhamos nas aberturas e primeiras páginas dos noticiários dos media internacionais, desconfia-se destinatário dos restos da velha arrogância moral do Ocidente. É um complexo de superioridade que faz parte da matriz da herança colonial, uma atitude que não dá sinais de querer desaparecer do subconsciente das culturas ocidentais colonizadoras. E emerge nas lições de moral vertidas em rios de tinta e nas infindáveis horas televisivas editadas no conforto dos valores em voga, muitas vezes sem entrar a fundo nos obscuros contornos das questões que aborda.

Myanmar tem um povo que, apesar de paupérrimo, está repleto de interesse humano, aferrado às suas tradições religiosas e culturais, cuja suavidade, religiosidade e humildade deixa comovido e seduzido qualquer Ocidental que se procure fusionar com ele. São protagonistas de uma complexa partida de xadrez em que não merecem sair perdedores. Tal como os Rohyngia.

Em vários meridianos há tremendos conflitos que nunca parecem querer baixar o tom de sofrimento e de dor que provocam no ser humano. Em 2016, os desequilíbrios de muitas sociedades, com diferentes tipos de conflitualidade, originaram milhares de mortes violentas: Brasil, 61 mil, Síria 60 mil, Sudão 60 mil, Estados Unidos 38 mil, México 23 mil, etc.

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A desgraça dos cerca de 600 mil Rohingya que, no segundo semestre de 2017, se refugiaram no Bangladesh vindos de Rakhine, uma província no Oeste da Birmânia, é mais um desses dramas, a quem, por funestas razões, tocam agora os holofotes dos media do Ocidente. Trata-se de um conflito originado numa situação complexa, agravada sucessivamente ao longo dos últimos 70 anos, e que agora, e com o custo adicional de centenas de mortos, se transformou numa das grandes tragédias humanitárias em curso.

Cerca de 600 mil Rohingya fugiram da região de Rakhine, em Myanmar, no segundo semestre de 2017 (HEIN HTET/EPA)

HEIN HTET/EPA

É útil lembrar que no princípio de 2016 havia 21 milhões de refugiados no mundo, dos quais mais de 3 milhões foram parar à Turquia (dos quais 2,7 milhões de Sírios) e que em 2015, na Europa, procuraram refúgio 1,3 milhões de pessoas pessoas, tendo morrido quase 4 mil a atravessar o Mediterrâneo. Nem aqui se refere o que se passa no Sudão, na Etiópia, e noutros cenários de terror do mesmo calibre.

Padrão comum neste trágico universo é a morte violenta, a violação, o tráfico de pessoas, a exploração sexual de homens, mulheres e crianças, a prática da escravatura, a miséria humana na sua expressão mais trágica.

A Birmânia/Myanmar, é um mosaico de etnias tradicionalmente insurgentes face ao poder de um Estado que, após 50 anos de uma dura ditadura militar, conseguiu ver realizadas em 2015 umas surpreendentes eleições livres, graças à determinação, coragem e inteligência de The Lady, Aung San Suu Kyi, uma budista empenhada e devota, cujo pai fora já assassinado em luta pela liberdade e consolidação territorial. A sacrificada campanha em prol da democracia no seu País deu-lhe o direito a receber o prémio Nobel da Paz em 1991. Em 2015, viu compensada essa sua batalha, e conseguiu uma vitória esmagadora para o seu partido, a Liga Nacional para a Democracia. Terminou ganhando 85% das cadeiras parlamentares que foram a votos, ficando com 60% do total, já que 56 lugares no Parlamento pertencem constitucionalmente e de jure aos militares, que não vão a votos, sendo os outros 30 dos 224 lugares ocupados por partidos marginais.

Aung San Suu Kyi ganhou o Prémio Nobel da Paz em 1991, mas a sua atuação durante a crise dos Rohingya levou alguns a exigir que o galardão lhe fosse retirado (HEIN HTET/EPA)

HEIN HTET/EPA

Devido ao facto de o falecido marido e os dois filhos serem cidadãos estrangeiros, The Lady, como é universalmente conhecida no seu País, está impedida de ocupar a presidência do Governo, devido a uma disposição introduzida pelos militares na Constituição, que foi desenhada face à ameaça que The Lady há muito representava para o seu domínio de décadas. Mas ela acabou por ocupar o poder graças a uma falha na legislação que permitiu a criação de um Conselho de Estado que The Lady lidera, acabando por se tornar em chefe de Governo de facto.

No entanto o poder militar, embora agora mais “suave”, permanece com força: os militares conservaram constitucionalmente 25% dos assentos no parlamento, e detêm as pastas dos Assuntos Internos, e da Defesa. Uma situação de poder que é ainda mais reforçada pelo facto de o Orçamento anual do Estado ser votado pelo Parlamento só depois de os militares reservarem para si o que entenderem.

O outro poder prevalecente na Birmânia é o budista. A Birmânia deve ser o país budista onde a prática religiosa e a veneração pelo Buda e pelos seus monges é a mais abrangente entre todos os países asiáticos praticantes dessa religião. Há dezenas de milhares de templos budistas (a pequena cidade de Bagan tem cerca de 3 mil, alguns com mais de 2 400 anos), sendo cerca de 500 mil o número de monges do sexo masculino, e 75 mil as de sexo feminino. Além da sua implantação porosa por toda a Birmânia, a religião budista tem uma fortíssima influência na sociedade, designadamente no poder militar e civil, que lhe destinam avultadas verbas, não só para a manutenção dos templos, mas sobretudo encorajando fortemente a educação budista nos mosteiros, o que permite uma população com um nível de literacia de cerca de 90%.

É ousado fazer julgamentos sobre Myanmar/Birmânia sem entender a importância omnipresente do Budismo; sem entender The Lady Aung San Suu Kyi, e a sua defesa da não violência; sem entender os militares, que sempre fizeram donativos de centenas de milhões de dólares para renovar os templos e apoiar os conventos budistas; sem entender o poder civil, que tem igual comportamento.

Sendo o grupo social com nível cultural-religioso mais avançado, não surpreende que tenham sido os monges budistas que desencadearam todo o processo do regresso do voto livre à Birmânia. Com a “revolução do açafrão” (açafrão, sendo a cor dos mantos dos monges) os religiosos saíram pacífica e maciçamente à rua em Agosto, Setembro e Outubro de 2007 em protesto contra a ditadura militar. A violência da reação da Junta Governativa causou dezenas de milhares de feridos e centenas de mortos, nada mais fazendo do que consolidar o movimento democrático.

Os monges vivem de donativos. Desde o cidadão mais miserável ao mais rico, não há devoto que não sacrifique as suas mais modestas poupanças para, nas suas constantes visitas aos templos, contribuir para os monges, para o Buda. Em todo o país, os monges desfilam pelas ruas em procissões de 100, 200, 300, cada um acompanhado de uma pessoa com um saco para recolher as ofertas. Não se pense que a entrega a apenas um monge é suficiente. Não, as entregas são feitas a cada um dos monges que desfilam, as pessoas acotovelando-se para entregar dinheiro, arroz, e outros alimentos. Sim, porque cada um, quanto mais doar ao Buda, maior é a expectativa de atingir o Nirvana, o Karma, o Paraíso, após três ou quatro reencarnações. Esta prática é de tal forma abrangente, que a poupança individual acaba por ser severamente afectada, os pobres ficando mais pobres, mas mais felizes.

É ousado fazer julgamentos sobre Myanmar/Birmânia sem entender a importância omnipresente do Budismo; sem entender The Lady Aung San Suu Kyi, e a sua defesa da não violência; sem entender os militares, que sempre fizeram donativos de centenas de milhões de dólares para renovar os templos e apoiar os conventos budistas; sem entender o poder civil, que tem igual comportamento.

E sem entender o fim, em 2005, de Yangon/Rangoon como capital, e a construção desde o zero da mega cidade fantasma de Naypyidaw, a nova capital, uma obscenidade urbanística e cultural, construída em 10 anos numa zona pouco povoada do país. Alguns defendem que a razão de ser de tal demência se deveu à necessidade de o regime, há muito dominado pelos militares, se sentir ali mais protegido das insurreições civis e das poderosas demonstrações populares que desde sempre ocorreram e ocorrem por aquelas terras. Sob o ponto de vista de estratégia militar/política é comparável talvez a Ancara. Só que em Naypyidaw os jardins, os edifícios, as ruas, nomeadamente a estrada que conduz ao parlamento com 21 faixas de rodagem e sem trânsito, toda a cidade está deserta, os hotéis de luxo desertos estão, os golfes não têm jogadores, o comércio não tem clientes.

E nas recentes visitas a Myanmar e a Naypyidaw as figuras de Estado, tais como Tillerson, Secretário de Estado Norte Americano, ou o Papa Francisco, sabem que se atacarem de frente as barbaridades cometidas com os Rohingya, The Lady fica fragilizada, os militares excitados, e o modelo democrático em forte risco.

A prudência com que The Lady Aung San Suu Kyi tem vindo a abordar a questão Rohingya é o retrato dessa sua fragilidade, tendo estado a causar reações um pouco absurdas no Ocidente, ao ponto de se clamar que, devido aos seus silêncios e aparente falta de iniciativa para atacar aquele drama, lhe seja retirado o prémio Nobel.

Nas recentes visitas a Myanmar e a Naypyidaw as figuras de Estado, tais como Tillerson, Secretário de Estado Norte Americano, ou o Papa Francisco, sabem que se atacarem de frente as barbaridades cometidas com os Rohyngias, The Lady fica fragilizada, os militares excitados, e o modelo democrático em forte risco.

Num percurso de curvas apertadas, Myanmar avançou substancialmente desde 2010. Mantendo-se ainda como um dos países mais pobres do mundo, o crescimento económico tem sido elevado, o investimento estrangeiro aumentou exponencialmente, e em 2013 o McKinsey Global Institute previa que a economia quadruplicasse até 2030. Sendo o segundo maior fornecedor de ópio e anfetaminas do mundo, as receitas de vendas ao exterior em moeda estrangeira provém de um importante tráfico não violento de droga, o que confere poder aos que estão envolvidos nesse tráfico, e que investem na banca, nos sectores aeronáutico e turístico, e nas infraestruturas. Por outro lado, os visitantes curiosos em saber quem são os donos dos grandes empreendimentos turísticos, a resposta não varia: os militares.

Alguns marcos recentes da história de Myanmar

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Até à consolidação do domínio inglês, a Birmânia, não era o que hoje existe, mas sim um mosaico territorial preenchido por diferentes etnias e lideranças, onde o poder assimilador do Estado não se fazia sentir;

1824-1948: os britânicos colonizam a Birmânia;
1941: os japoneses derrotam os britânicos, e ocupam o país até 1945;
1945: os ingleses regressam e “ajudam” a preparar a nova Constituição;
1948: independência;
1961: o Budismo torna-se religião oficial do Estado;
1962: golpe militar, com a “Via Birmanesa Para o Socialismo”;
1962-1988: o país fica sob uma ditadura de facto, em que a economia é nacionalizada, os estrangeiros são expulsos, as organizações internacionais banidas, E são expulsos cerca de 100.000 chineses envolvidos na economia. O governo entra em bancarrota.
1964: partidos políticos banidos;
1974: nova Constituição com a criação da “Nova República Socialista da União da Birmânia”;
1988: a maior manifestação popular da história birmanesa, com um novo general à frente do Governo;
1988: The Lady Aung San Su Kyi forma o seu partido, “Liga Nacional para a Democracia”;
1990: apesar de ter ganho 85% dos votos em eleições, The Lady é colocada em prisão domiciliária, e o governo prepara uma nova Constituição;
1991: The Lady recebe o Prémio Nobel da Paz;
1993: é assinado um acordo de paz pondo fim a cerca de 30 anos da insurgência civil de natureza étnico-tribal que existia e criava insegurança em quase todo o território;
1995: The Lady Aung San Suu Kyi é libertada, mas de novo detida em 2000 e de novo libertada em 2002, presa outra vez em 2003;
2007: é redigida nova Constituição;
2007: levantamento dos Monges em Agosto, Setembro e Outubro, na denominada “Revolução do Açafrão”;
2008: o ciclone Nargis arrasa o sul do País, incluindo Yangon. O regime não permite a entrada de apoios solidários internacionais. 140.000 mortos.
2010: The Lady Aung San Su Kyi é libertada, após 15 anos de detenção.
2015: a “Liga Nacional para a Democracia”, partido da The Lady Aung San Suu Kyi, arrasa as eleições, com mais de 85% dos votos.

A questão Rohingya assustou o sector turístico que, em 2017, deve ter sofrido uma quebra de mais de 60%. No final de 2017, na época alta, os principais hotéis de Yangon, Mandalay e Bagan estavam vazios, e nas ruas, os monumentos e os principais pontos de atração escasseavam em visitantes, sendo que quase não se viam ocidentais. O turismo, num país fechado ao mundo durante dezenas de anos, até de 2010, não existia. Em 2016, e depois de um esforço muito substancial de investimento em estruturas de grande qualidade, recebeu cerca de 1,8 milhões de turistas; em 2017 não deve ter ultrapassado os 800 mil.

Em 2018, além de se poderem encontrar jornais de língua inglesa fortemente críticos do governo e sem grandes reservas quanto aos indícios de corrupção, não se vêm nas ruas nem soldados, nem polícia, não se detectam quaisquer medidas de segurança especiais, os cafés e restaurantes estão cheios, o ambiente nos espaços públicos é alegre e despreocupado. Apesar da questão Rohingya, a percepção é a de um país estável, com uma tranquilidade que os interlocutores atribuem à liderança e ao prestígio da The Lady, e ao actual “repouso” dos militares.

Todo o drama Rohingya não transparece nos centros urbanos do centro do país, muito menos nos meios rurais, parecendo não afectar em nada o tráfico das estradas, nomeadamente das do eixo do país que, passando por Mandalay, fazem a importante ligação terrestre entre a China e a Índia, com um trânsito de veículos demencial, ou o eixo norte sul que, passa por Mandalay, e chega a Yangon e à capital.

A situação Rohingya é resultado da violenta reação do poder militar birmanês a um feroz ataque da ARSA (Exército de Salvação Arakan Rohingya, uma organização de cariz terrorista, que assim se passou a designar recentemente) a instalações militares birmanesas na província de Rakhine, ocupada por 85% de Rohingyas, ocorrido na primeira metade de 2017

Se por um lado o Ocidente entra em pé de guerra em relação ao que é apelidado de limpeza étnica, a grande maioria dos birmaneses vê a organização insurrecional Rohingya da ARSA como um grupo que se intitula etno-nacionalista, formado por muçulmanos do Bangladesh emigrados ao longo dos anos para a província birmanesa de Rakhine, com uma agenda separatista que os birmaneses acreditam ser estimulada pelo fundamentalismo islamista, além de financiada e armada pelo Paquistão e Arábia Saudita.

Apesar de a religião budista ser a oficial do Estado birmanês, e estar omnipresente em todos os extratos da sociedade, a liberdade religiosa é abrangente em Myanmar, e a presença muçulmana em cidades como a antiga capital Yangon/Rangoon é bem visível nos trajes dos transeuntes, que circulam e frequentam as numerosas Mesquitas com tranquilidade.

O conflito étnico/religioso/político com os muçulmanos está centrado na Província ocidental birmanesa de Rakhine, para onde, e sobretudo desde o final da presença britânica em 1948, emigraram dezenas de milhares de famílias vindas do sobrepovoado Bangladesh, com chefes de família muçulmanos com três ou quatro mulheres cada, que ocasionaram um crescimento demográfico exponencial na zona.

Com a conflitualidade crescente, e 85% de muçulmanos, os birmaneses sentiram a província de Rakhine ameaçada e, em 1982, votaram uma lei que atribuiu às tribos do país o direito pleno de cidadania, procurando resolver um problema étnico-nacional, causador de centenas de insurgências em diferentes zonas da Birmânia ao longo dos séculos. Os Rohingyas emigrados do Bangladesh para Rakhine não foram incluídos, o que naturalmente os deixou civilmente excluídos e extremamente vulneráveis.

Com a conflitualidade crescente, e 85% de muçulmanos, os birmaneses sentiram a província de Rakhine ameaçada e, em 1982, votaram uma lei que atribuiu às tribos do país o direito pleno de cidadania, procurando resolver um problema étnico-nacional, causador de centenas de insurgências em diferentes zonas da Birmânia ao longo dos séculos.

Os Rohingya emigrados do Bangladesh para Rakhine não foram incluídos, o que naturalmente os deixou civilmente excluídos e extremamente vulneráveis.

Desde então reina a insegurança na província de Rakhine, onde a vida civil que já era perturbada pela crescente hostilidade entre os budistas birmaneses, monges sobretudo, e os muçulmanos originários do Bangladesh, ficou severamente afectada. Muitos budistas da etnia birmanesa Rakhine (nome da etnia e da província), destinatários de inúmera violências dos muçulmanos Rohingya começaram a abandonar aquelas terras. Com esta sangria, a província birmanesa acabou por se ver povoada por cerca de 85% de muçulmanos, muitos deles hostis aos budistas que ficaram, e que se sentiam progressivamente mais vulneráveis.

A percepção do Ocidente quanto aos Rohingyas é a de gente inocente, que o é, na realidade, mas parece ignorar que foram e estão a ser acirradas e vítimas de movimentações islamistas que inspiram o movimento terrorista ARSA, prejudicando de forma letal as relações entre Rohingyas e Birmaneses, ao ponto de os birmaneses, por seu lado, recearem que, devido a pressões exteriores, e a acções terroristas, os Rohingyas acabem por formar uma região autónoma dentro da própria Birmânia, ao longo da fronteira com o Bangladesh.

O movimento insurrecional muçulmano ARSA adquiriu força e dimensão em Rakhine, começando a preocupar as próprias autoridades do Bangladesh, que se têm entendido com os birmaneses no assunto. As pressões sobre The Lady Aung San Suu Kyi levaram-na a aceitar uma série de recomendações das Nações Unidas a 25 de Agosto de 2017. Horas depois de acordado o documento onde os preceitos ficaram lavrados, a ARSA desencadeou uma série de ataques causadores de centenas de vítimas, o que levou ao esmagamento dos Rohingya pelos militares birmaneses, e consequente fuga em massa para o Bangladesh, com o drama humanitário a que estamos agora a assistir.

A percepção do Ocidente quanto aos Rohingya é a de gente inocente, que o é, na realidade, mas parece ignorar que foram e estão a ser acirradas e vítimas de movimentações islamistas que inspiram o movimento terrorista ARSA, prejudicando de forma letal as relações entre Rohingya e Birmaneses, ao ponto de os birmaneses, por seu lado, recearem que, devido a pressões exteriores, e a acções terroristas, os Rohingya acabem por formar uma região autónoma dentro da própria Birmânia, ao longo da fronteira com o Bangladesh.

(AUNG HTET/AFP/Getty Images)

AUNG HTET/AFP/Getty Images

Por outro lado, a colossal pressão mediática ocidental tem-se concentrado na catástrofe humanitária, sem parecer abordar os fragilíssimos pontos de equilíbrio que existem em Myanmar entre os três eixos de forças que comandam aqueles cenários: The Lady, os poderosíssimos budistas, e os militares, que continuam a deter o verdadeiro controle do poder.

Em pano de fundo, Ashin Wirathu é um influente monge que paira como a “face do terrorismo budista”, designação da revista Time. Face aos fenómenos da islamização e das ameaças do fundamentalismo islâmico que estão a ocorrer em países do Ocidente, o mais evidente é o seu receio de que estes estejam a ser replicados no seu país, em Rakhine, em especial. Uma das ameaças veladas sobre a fragilidade da relação The Lady/Militares/Budistas é a enorme influência desta personagem na sociedade, o que faz pensar que, em duas penadas, e tal como o fez no passado, pode, com a sua voz aveludada e suave, elevar a teia da violência e radicalismo contra os muçulmanos da Birmânia, que afinal representam apenas 4% da população. Em 2003 sofreu uma pena de prisão de 23 anos, que penou 9. Presentemente conserva-se em silêncio, e os soldados que o abordam não o vêm prender, trazem-lhe donativos.

A leitura que se retira do determinante poder religioso é de que os militares não darão um passo para permitir o regresso dos Rohingya à Birmânia, se os budistas não concederem o seu expresso assentimento.

Os resultados da viagem que o Papa fez a Myanmar em Novembro de 2017 foram ambivalentes. A percepção da fragilidade dos equilíbrios do país cerceou o discurso do Papa Francisco, que acabou por nunca utilizar a palavra Rohingya. Mas, para um Papa que pede por uma comunidade rejeitada e sofredora como os Rohingya, tal como pede repetidamente pelas numerosas comunidades cristãs, e outras, ferozmente perseguidas em diversos países do mundo, é natural que, apesar de muitas dúvidas terem sido colocadas quanto à eficácia humanitária da visita a Myanmar, o seu universalismo tenha atraído não só, e em massa, a pequena comunidade católica birmanesa, como simpatia na recepção que lhe foi feita por parte dos líderes políticos e militares. Os media ocidentais, no entanto, acabaram por focar toda a sua atenção na omissão de uma palavra.

Se o delicado equilíbrio de forças fragilmente liderado pela por The Lady ficar afectado por pressões ocidentais que transportam algumas perspectivas redutoras da abordagem à questão, quer em termos diplomáticos quer mediáticos, essas movimentações podem não só não ajudar a resolver o tema em debate, como vir a ampliar as desgraças birmanesas. O primeiro sinal de deterioração já é bem visível na economia, com a deserção do turismo, e consequente ruína do sector.

Se o delicado equilíbrio de forças fragilmente liderado pela por The Lady ficar afectado por pressões ocidentais que transportam algumas perspectivas redutoras da abordagem à questão, quer em termos diplomáticos quer mediáticos, essas movimentações podem não só não ajudar a resolver o tema em debate, como vir a ampliar as desgraças birmanesas. O primeiro sinal de deterioração já é bem visível na economia, com a deserção do turismo, e consequente ruína do sector.

Uma das consequências de potenciais roturas políticas na Birmânia, nomeadamente do regresso do poder militar, é o reforço da influência chinesa, que era substancial até 2010, mas que se viu drasticamente reduzida após as eleições democráticas desse ano, nomeadamente pelo cancelamento de um mega projecto hidroelétrico, em que os chineses já tinham investido cerca de 1,5 mil milhões de dólares. Um regresso do domínio chinês, que já controla uma parte significativa da economia de Myanmar, traria desequilíbrios adicionais para o Sudeste Asiático, com debilitação dos interesses do Ocidente, esse Ocidente que parece poder abalar os equilíbrios existentes se não tratar com pinças diplomáticas a contundente questão Rohingya.

Myanmar é um país imerso em beleza natural, com vastos recursos naturais e uma posição geo-estratégica invejável. O isolamento de décadas faz com que o seu progresso não seja comparável a outros países da Ásia, também ricos em recursos. E tem um povo que, apesar de paupérrimo, está repleto de interesse humano, aferrado às suas tradições religiosas e culturais, cuja suavidade, religiosidade e humildade deixa comovido e seduzido qualquer Ocidental que se procure fusionar com ele. São protagonistas de uma complexa partida de xadrez em que não merecem sair perdedores. Tal como os Rohingya.

Kipling, cuja passagem pela Birmânia nos legou o admirável poema “The Road to Mandalay”, identifica na sua poesia alguns dos insondáveis arquétipos desse velho país, tão difícil de abordar pelos ocidentais. Ficam em destaque estes versos:

Ship me somewhres east of Suez, where the best is like the worst,
Where there aren’t no Ten Commandments an’ a man can raise a thirth;
For the temple-bells are callin’, an’ it’s there that I would be
By the old Moulmein Pagoda, looking lazy at the sea,
On the Road to Mandalay…

Janeiro de 2018

João van Zeller é empresário e esteve recentemente em Myanmar.

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