É como enviar um e-mail. De forma simples, livre, quase anónima. E não regulada. As bitcoins são isto: moedas virtuais que não se veem, não se tocam, não se sentem, mas que geram milhões. Para quem ganha e para quem perde. E não, não se trata de casinos online ou de jogos de vídeo como o Super Mário, da Nintendo. Aqui, não basta bater com a cabeça num pilar para fazer nascer dinheiro. Mas basta um algoritmo. Complexo, é certo, mas matemático. E já dizia Albert Einstein: “O princípio criativo reside na matemática”. Os bancos e os mecanismos de supervisão desconfiam. A polícia também. Amor ou ódio? Paixão, talvez. Daquela a que não se fica indiferente.
As bitcoins são moedas encriptadas, ou seja, códigos, que vivem em carteiras digitais na web e que não são controladas por nenhum banco central ou Governo. A 3 de outubro, uma bitcoin valia 295,3001 euros na bolsa para moedas virtuais BTC-E. Para que servem? Para comprar tudo o que os utilizadores quiserem, de forma anónima. Um cappuccino em Londres, uma cerveja em Sidney ou uma casa em Portugal, na Costa Nova, em Aveiro. Mas também drogas ou armas ilegais na Dark Web, a rede obscura, onde os conteúdos estão propositadamente escondidos por cibernautas. E a liberdade é total, porque apesar de ser possível verificar todo o histórico das contas, desde o primeiro bitcoin, é quase impossível saber quem é o autor.
Este sábado, a Captain Wings lança a primeira máquina ATM para compra e venda de moedas virtuais no país. A máquina, fabricada em Portugal, é uma espécie de multibanco para bitcoins e vai estar alojada em pleno coração lisboeta, no centro comercial Saldanha Residence. Basta um smartphone ou um tablet para converter matemática em euros ou euros em matemática e uma app para ler QR Codes, códigos de barras bidimensionais. Joaquim Lambiza, fundador da empresa e da marca Bitcoin Já, explicou o processo ao Observador.
Quem quiser comprar bitcoins aponta o smarphone com o QR Code da sua conta para a câmara, que está instalada na máquina. Esta lê o código, identifica o número da conta, pede ao utilizador para inserir o dinheiro que quer converter em bitcoins no ATM e deixa que a informática faça o resto. Os utilizadores que estiverem interessados em trocar os bitcoins da carteira digital por euros, devem captar o QR Code gerado pela máquina com o smartphone, aguardar para que este identifique o número de conta e enviar os bitcoins.
Para emitir o dinheiro, a máquina precisa de receber três confirmações de “mineiros” que garantam que a transação é segura. E não, o ATM não tem nenhuma mina escondida no subsolo. Mas antes de descobrir quem são os “mineiros” da moeda virtual, descubra primeiro Satoshi Nakamoto, o anónimo dos anónimos que criou as bitcoins em 2008. Os “mineiros” e a sua função seguem depois.
Satoshi Nakamoto é a mente por detrás das bitcoins, mas ninguém sabe sequer se ele existe. Um geek ou um grupo de geeks? Fica a dúvida. O que é certo é que o pseudónimo que em novembro de 2008 assinou o artigo “Bitcoin: A Peer-to-Peer Electronic Cash System”, que em português seria algo como “Bitcoin: sistema de dinheiro eletrónico descentralizado” é considerado o pai das bitcoins. Foi ele quem desenvolveu o sistema de pagamento eletrónico que permite que duas pessoas ou entidades negoceiem entre si sem precisarem da intervenção de uma terceira, como um banco. Foi ele quem colocou a criptografia a substituir a confiança. Melhor, que colocou a confiança na criptografia a funcionar.
O Banco de Portugal já reagiu ao lançamento do multibanco da Captain Wings. Numa nota enviada às redações, na sexta-feira, recorda que “este ATM não está integrado no sistema de pagamentos português”. E alerta para os riscos de utilização e de comercialização de “moedas virtuais” como a bitcoin. “As moedas virtuais não são seguras. As entidades que emitem e comercializam moedas virtuais não são reguladas nem supervisionadas por qualquer autoridade do sistema financeiro, nacional ou europeia”, lê-se no comunicado. Mais: o risco fica todo do lado do utilizador, porque “não existe garantia” de que as bitcoins sejam aceites na compra de bens ou serviços, nem proteção legal que garanta direitos de reembolso ao consumidor.
Ao Observador, Joaquim Lambiza explicou que tem estado a acompanhar “de muito perto” o que acontece em termos de legislação portuguesa e europeia e que “está a tentar forçar uma posição”. “A regulação tem sempre dificuldade em acompanhar a evolução e ainda bem que é assim. A evolução existe e a regulação debate-se para acompanhá-la. É preciso impedir que o sistema seja utilizado para a lavagem de dinheiro, mas isso deve acontecer sem impedir o avanço tecnológico que isto [moedas virtuais] representa”, adiantou.
Para evitar que a máquina seja utilizada para lavar dinheiro, foram incorporados alguns dispositivos de segurança. “Por iniciativa própria, limitámos o valor que pode ser transacionado na máquina e que é igual ao de um multibanco normal: duas vezes 200 euros por dia”, conta. No final da operação, a máquina emite um recibo e Joaquim Lambiza conta que já pediu um parecer vinculativo às Finanças sobre o tratamento fiscal que a transação deverá ter. Por cada operação, a empresa retém uma taxa de 3%.
Como é que tudo funciona? Com matemática e mineração
Cada bitcoin é um código matemático complexo, que assenta numa tecnologia distribuída por uma rede de computadores, cujo histórico é aberto e transparente, a blockchain. “Tudo o que acontece com as bitcoins, todas as transações de compra e venda, ficam registadas nesta rede de contabilidade 100% transparente, que está sempre a crescer”, explicou Joaquim Lambiza, que também já foi partner da IBM. É aqui que entram os “mineiros”: indivíduos que disponibilizam super computadores aos sistemas para validar e gerar consenso entre as transações. O que ganham em troca? Bitcoins.
Se, quando a moeda virtual apareceu, bastava descarregar um software num computador normal para contribuir para a validação das operações, hoje os “mineiros” são tantos, que são precisos computadores específicos, ASIC, para fazer a mineração, ou seja, para gerar consenso entre as transações. O grau de dificuldade é cada vez maior e o tempo necessário para obter lucro com o investimento também.
Joaquim Lambiza explicou que para conseguir obter o retorno do investimento num super computador de cinco mil euros (receber em bitcoins o equivalente a este valor) é preciso que ele esteja a trabalhar 24 horas por dia durante 250 dias. Ao valor do aparelho soma-se o gasto com a eletricidade. E é cada vez mais difícil entrar no sistema.
“É como ter um ferro de engomar constantemente ligado”, explicou Ricardo Gonçalves, 35 anos, ao Observador. O “mineiro” entrou no universo das moedas digitais em novembro de 2013 juntamente com um amigo. Investiram 900 euros num computador normal e em duas placas gráficas “relativamente poderosas” para minerar litecoins, uma moeda que resulta da modificação que fizeram no código da moeda lançada por Nakamoto. “Já era tarde para entrar na mineração de bitcoins“, conta. Já era preciso um ASIC.
O computador e as placas gráficas estiveram constantemente ligados até o verão aparecer. Quando as temperaturas começaram a aumentar desligou tudo. No quarto em que estava o equipamento, em pleno inverno, com janela aberta e estores fechados, a temperatura rondava os 21º graus. Era uma espécie de aquecedor, portanto. Em fevereiro de 2014, Ricardo Gonçalves já tinha recebido 27 litecoins pelo trabalho de mineiro.
O processo é semelhante ao das moedas lançadas por Nakamoto: à medida que o computador vai confirmando as transações na rede, vai recebendo parcelas da moeda em questão. Com as bitcoins, a recompensa pode demorar mais a chegar: são tantos os mineiros envolvidos que está a tornar-se cada vez mais difícil entrar no processo de mineração e contribuir para a validação das transações. Ou seja, é cada vez mais difícil receber bitcoins. “O próprio sistema que regula a produção deteta quando há muito poder informático a entrar na plataforma e aumenta a dificuldade do enigma criptográfico que o computador tem de resolver para conseguir minerar”, explica Joaquim Lambizo.
Nada foi deixado ao acaso por Satoshi Nakamoto. A inflação da bitcoin está predefinida matematicamente na tecnologia, logo está controlada, bem como a quantidade de moedas que podem ser produzidas: 21 milhões. Atualmente, a cada dez minutos, são gerados 25 novos códigos matemáticos, ou seja, bitcoins, que podem ser divididos em oito casas decimais – cêntimos das bitcoins chamam-se satoshis. No final de setembro, existiam cerca de 13,3 milhões de bitcoins em circulação, 63% do máximo imposto por Nakamoto, segundo o Blockchain Info.
O grande problema da bitcoin, segundo Ricardo Gonçalves, é o risco de double spending, que em português significa algo como “gasto duplo”, ou seja, a burla: consumidores que utilizam a mesma moeda para efetuarem duas transações. E a culpa é do “ataque 51%”. Confuso? A explicação do técnico de informática chega a seguir: todos os super computadores que estão ligados ao sistema geram 100% do poder de processamento de bitcoins, que está dividido por várias pools (computadores que agregam mineiros) e por solo miners.
Como há poucas pessoas a minerarem sozinhas, “porque é pouco provável que se consiga obter retorno”, as pools mais conhecidas podem agregar mais mineiros e provocar uma distribuição desproporcional do poder de processamento. Ou seja, quando uma só pool é responsável por 51% das confirmações do sistema, o risco de burla aumenta. Porquê? Porque as confirmações das transações demoram mais tempo a serem efetuadas ou podem nem sequer existir. Nesse compasso de espera, o utilizador fica livre para utilizar a mesma moeda em várias operações.
Sim, o double spending é um problema, mas não é o único. A especulação, a não regulação, a desconfiança, a lavagem de dinheiro e a associação a negócios ilícitos alimentam a polémica sobre a moeda que não se vê nem se sente, mas que tem feito vibrar o mercado. Joaquim Lambiza não tem dúvidas: a blockchain, tecnologia que sustenta a bitcoin é a tecnologia disruptiva do futuro. É ela que vai ser responsável por mudar a vida das pessoas, a seguir à internet, explicou ao Observador.
Sobe e desce à margem da supervisão
Moeda sem dono, melhor, sem país, troca a supervisão por matemática pura. E, apesar do rigor do código, seduz por ser libertadora. No início de 2013, as bitcoins valiam cerca de 15 dólares norte-americanos, 11,86 euros. No final desse ano, valiam cerca de 1.200 dólares, ou seja, 948,96 euros. A 3 de outubro, valiam perto de 300 euros. Falar de bitcoins sem falar de volatilidade não é possível e é por isso que não há margem para descuidos. Para lucros e perdas de alto nível, atenção ao mais alto nível, e o Banco de Portugal alerta: não existe um fundo que cubra eventuais perdas dos utilizadores.
Francisco Sant’Ana tem 19 anos, é natural de Lagos, no Algarve, e estuda Direito, na Universidade de Lisboa. Desde o início de 2013 que investe em moedas virtuais. Num fórum que abriu no Reddit, conta que começou a investir “algures em 2013” com cerca de 50 euros, que esperou pela subida do valor da bitcoin, mas que acabou por trocá-la por outras moedas virtuais. Além disso, investiu em vários casinos e conseguiu, “em pouco mais de um ano, fazer uma quantia interessante de dinheiro que lhe permite ter um estilo de vida confortável”, escreve. Este ano, diz já ter dinheiro suficiente para pagar as propinas e que tirar a carta de condução ou fazer um InterRail estão entre os seus planos.
Quando lhe perguntam que estratégia utiliza, explica que não se “mete em moedas” cujo volume diário de compras é pequeno, que não é ganancioso, que marca uma taxa de retorno antes de comprar e que não vende logo quando começa a perder. “Deve-se esperar uns dias”, escreve. Regra de ouro para qualquer investidor: não colocar os ovos todos no mesmo cesto, ou seja, não colocar o dinheiro todo na mesma moeda.
As moedas virtuais não são supervisionadas, mas o burburinho está instalado. Ben Bernanke, o então presidente da Reserva Federal norte-americana, reconheceu numa carta ao Congresso, em novembro de 2013, a possibilidade de as moedas virtuais se tornarem “num sistema de pagamento mais rápido, mais seguro e mais eficiente”. “Existem vários países europeus que já tiveram algumas iniciativas de regulação. A Bélgica já tomou a iniciativa de isentar as transações em bitcoins de IVA, a Suécia tem estado a pressionar o Banco Central Europeu”, adianta Joaquim Lambiza.
A polémica em torno das moedas virtuais aqueceu depois de uma das maiores plataformas de transação da moeda, a japonesa Mt. Gox, ter sido alvo de um ataque de hackers, que fizeram desaparecer cerca de 850 mil bitcoins – o equivalente a cerca de 500 milhões de dólares. A empresa fundada por Mark Karpeles não teve outra hipótese senão anunciar a falência da Mt. Gox, no início de 2014.
E há uma palavra inerente a toda esta discussão: especulação. Se, para muitos, as bitcoins são uma forma de ganhar dinheiro, para outros a discussão ganha dimensão política. Podem as moedas virtuais tornarem-se numa reserva de valor legítima? Há quem acredite que sim.
O primeiro multibanco de bitcoins chega a Portugal este sábado. A Showroomprive.com, uma das líderes de vendas privadas online na Europa também já está a aceitar pagamentos em bitcoins e o PayPal já anunciou que vai começar a aceitar a moeda virtual nas sua transações. Os dados estão lançados e o jogo vai a meio. O monopólio não é de tabuleiro, mas aqui também há quem ganhe e quem vá à falência. Resta saber quem desiste da corrida primeiro.