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Bloco de Esquerda. O raio-x a um partido desbloqueado

Em 2011, com oito deputados, poucos acreditavam que o Bloco desse a volta. Catarina Martins regressou com força e resolveu o bloqueio da esquerda. Agora é poder. O Bloco mudou?

16 de julho de 2013. O país vivia o verão quente da demissão “irrevogável” de Paulo Portas. Há três semanas que se desenrolava uma crise política sem fim à vista e Cavaco Silva lançara o derradeiro apelo à formação de um Governo de salvação nacional. Eis que Catarina Martins e João Semedo — a liderança bicéfala do Bloco — tentavam o impensável, dado o histórico bloqueio da democracia portuguesa à esquerda: a “abertura de um processo de discussão e aprovação das bases programáticas de um governo de esquerda” com PS e PCP, “de imediato” e com “urgência”. Era a primeira vez que o partido desafiava explicitamente os dois partidos a formarem uma alternativa de esquerda. Este fim de semana, em Lisboa, os bloquistas reúnem a sua X Convenção e vão avaliar a primeira experiência com o poder.

As condições impostas pelos bloquistas em 2013 eram duras para o PS então liderado por António José Seguro. Exigiam a “construção de um Governo de esquerda que termine a austeridade e o memorando, que consiga a reestruturação da dívida, mobilizando recursos bancários, financeiros e fiscais necessários e que recupere o rendimento perdido pelas pessoas”. As negociações não duraram mais de 72 horas. “O PS tinha preferido dialogar à direita e não à esquerda e acabou por contribuir para dar um pequeno balão de oxigénio a um Governo moribundo”, acusaria João Semedo.

O futuro seria ligeiramente diferente para os protagonistas do PS e do Bloco de Esquerda. António José Seguro caiu perante António Costa. Catarina Martins e João Semedo enfrentaram a oposição interna que os acusava de terem ido bater à porta do PS. A luta fratricida acabou num empate técnico entre as duas principais correntes do partido. João Semedo afastava-se. A coordenação bicéfala passava a comissão permanente com seis elementos na última Convenção do Bloco, em 2014. Um desastre anunciado.

Passaram 848 dias entre as primeiras negociações falhadas à esquerda e a assinatura das posições conjuntas de PS, Bloco de Esquerda, PCP e Verdes. Nesse mesmo dia, a 10 de novembro de 2015, o Governo de PSD e CDS caía no Parlamento e nascia a “geringonça” — como viria a tornar-se conhecida a aliança parlamentar de esquerda. Estes partidos davam os primeiros passos num caminho nunca antes testado. O Bloco, que se prepara para reunir este fim-de-semana para a sua primeira Convenção pós-legislativas, migrava das trincheiras da oposição onde se tinha acantonado, como insistiam os críticos, para o centro das decisões políticos. Tornava-se poder. Tornava-se pragmático?

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O Bloco de Esquerda foi sempre um partido pragmático“, garante Francisco Louçã ao Observador. Não é o único a pensar assim. Entre os bloquistas ouvidos pelo Observador, todos rejeitam a ideia de que o BE se tenha mexido um centímetro em direção ao centro-esquerda. “Houve duas coisas que mudaram: a configuração eleitoral, que se traduziu num crescimento do Bloco de Esquerda e numa maioria parlamentar diferente; e mudou o PS”, diz Francisco Louçã. O co-fundador do Bloco de Esquerda diz que “basta olhar para o que defendia o PS no PEC IV, entre privatizações e cortes salariais. Ou o que defendia no Programa de Governo [nas eleições de 2015], em que se propunha a facilitar os despedimentos e a congelar as pensões. Foi o PS que mudou“, insiste.

O rótulo de “partido de protesto” ou de partido entrincheirado na oposição foi uma “etiqueta acusatória que tentaram sempre colar ao Bloco. O Bloco nunca foi isso”, concorda Jorge Costa, deputado e dirigente bloquista. “O Bloco estava tão pronto [para fazer parte de uma solução] antes como depois das eleições”. De resto, insiste, não fosse a expressão eleitoral do Bloco e não teria sido possível encontrar um caminho diferente para o país. “O PS não ia retroceder” em matérias como o congelamento das pensões e o regime compensatório [que, segundo o BE, facilitaria os despedimentos].

Se não tivesse existido essa mudança de chip no Largo do Rato, vão insistindo os bloquistas, era impossível chegar a um princípio de convergência com o PS. É isso que diz também José Manuel Pureza. “Se o Bloco de Esquerda não tivesse tido a votação que teve, teria havido descongelamento das pensões? Seguramente não. O PS tinha sido no seu programa eleitoral congelamento das pensões. O PS cumpriria o seu programa. Foi a votação do Bloco de Esquerda que determinou esta mudança política”, disse, numa entrevista ao Observador.

"O PS mudou. Basta olhar para o que defendia o PS no PEC IV, entre privatizações e cortes salariais. Ou o que defendia no Programa de Governo [nas eleições de 2015], em que se propunha a facilitar os despedimentos e a congelar as pensões".
Francisco Louçã, fundador do Bloco de Esquerda e ex-líder do partido

Não deixa de ser verdade, no entanto, que o Bloco aceitou fazer parte de uma solução de poder que vai contra um dos princípios fundamentais do partido: a rejeição do “espartilho” em que se transformaram as regras do Tratado Orçamental.

Na moção que levaram à IX Convenção do Bloco, em 2014, justamente quando o partido atravessava uma luta fratricida, Catarina Martins e João Semedo eram claros: “Quem se aproxima do PS para governar com ele abdica de responder ao principal desafio de desobedecer às imposições da União Europeia. Não há posição intermédia”. E, mesmo assim, o Bloco decidiu dar a mão ao PS.

José Manuel Pureza, um dos subscritores dessa proposta, afasta qualquer contradição entre a posição assumida há quase dois anos e a realidade que hoje existe. “Bloco apresentou-se a eleições numa posição com a maior disponibilidade possível para criar toda a tensão com as orientações prevalecentes no PS, sem nunca deixar de estar aberto a todas as posições de diálogo. As duas coisas não são incompatíveis. Não há nenhum gradualismo, não há nenhuma posição intermédia“, garante.

Marisa Matias concorda. “Não acho que exista qualquer dilema para o Bloco”. “A destruição que PSD e CDS impuseram ao país, permitiu que definíssemos claramente os critérios e as prioridades políticas” para o acordo com o PS. E a prioridade absoluta, lembra, passava pela recuperação de rendimentos, de direitos sociais e o fim do caminho de empobrecimento do país. Foi o “reconhecimento de que aquilo que nos unia era muito mais do que aquilo que nos separava neste momento que permitiu este acordo”, reitera Marisa Matias.

A herança do anterior Governo e a possibilidade de se repetir uma solução governativa à direita foi, assumidamente, o vapor que fez mover a locomotiva da “geringonça”, uma solução há muito defendida por vários intervenientes à esquerda. Esta nova solução, no entanto, não veio sem um custo: uma travessia no deserto que durou mais quatro anos.

Há dois anos, o Bloco dizia que quem se aproximasse "do PS para governar" abdicava de "desobedecer às imposições da União Europeia". José Manuel Pureza não vê qualquer contradição. "As duas coisas não são incompatíveis. Não há nenhum gradualismo, não há nenhuma posição intermédia"

O que o Bloco andou para aqui chegar

Outro salto ao passado: 23 de março de 2011. O PEC IV de José Sócrates era chumbado no Parlamento com votos de toda a oposição. Bloco de Esquerda incluído, a votar ao lado da direita e do PCP. A derrota precipitava a demissão do então primeiro-ministro socialista. Menos de um mês depois, a 18 de abril, Francisco Louçã recusou participar numa reunião, que considerava “inoportuna” com a troika. Era ao Governo, e não aos partidos, que competia negociar com os credores, justificava o partido. Sem adivinharem, os bloquistas retiravam as duas primeiras peças da jenga em que se viria a tornar o Bloco. Os meses que se seguiram revelaram-se desastrosos.

As eleições de 2011 seriam desastrosas para o partido. Poucos meses depois, Francisco Louçã deixava a cabeça do Bloco, sugerindo uma solução a dois, com Catarina Martins e João Semedo. O plano não convenceu toda a gente. Em 2013, novos desastres eleitorais, primeiro nas autárquicas, depois nas europeias. Os dissidentes multiplicavam-se e as correntes digladiavam-se. Pedro Filipe Soares, líder parlamentar do Bloco, avançava contra Catarina Martins e João Semedo na Convenção de 2014. O Bloco sangrava numa disputa cerrada pela liderança, cujo culminar foi o desenho de uma solução a seis em que poucos fora do partido acreditavam — se a dois não tinha resultado, dificilmente resultaria a seis. O partido fragmentava-se e ameaçava ruir tal qual a imagem da torre de madeira a que se vão retirando as peças-chave.

Passámos por um período muito difícil, de alguns desacertos estratégicos e políticos“, concede Marisa Matias, referindo-se, desde logo, à recusa em participar na reunião com a troika. À distância, José Manuel Pureza também o reconhece. “Os tempos que estamos a viver mostram como teria sido totalmente improcedente reunir com a troika. Poderá ter havido aí um gesto mal pensado, do ponto de vista do seu impacto no domínio do simbólico“.

O mea culpa do Bloco nem sequer é novidade. Quinze dias depois do desastre eleitoral nas legislativas de 2011 que reduziu o Bloco de Esquerda a oito deputados (antes eram 16), Francisco Louçã admitia o erro. “Para muitas pessoas o Bloco devia ter expressado os seus pontos de vista junto [da troika]. A nossa atitude não foi compreendida e isso prejudicou-nos do ponto de vista eleitoral. Poderíamos ter tomado uma atitude diferente, certamente”. Poucos meses depois, Louçã, fundador e o principal rosto do partido, afastava-se, abrindo uma crise de sucessão. A coordenação bicéfala, pensada pelo fundador do partido, motivou críticas. Daniel Oliveira e Ana Drago, por exemplo, consideraram a solução um erro absoluto. Os resultados eleitorais vieram a dar-lhes razão.

"Passámos por um período muito difícil, de alguns desacertos estratégicos e políticos"
Marisa Matias, eurodeputada bloquista

Publicamente, as divergências em matéria de alianças eram cada vez mais notórias. A 5 de março de 2013, Daniel Oliveira, originário do Fórum Manifesto, batia com a porta, sem poupar Louçã, Catarina Martins e João Semedo. Numa carta enviada ao partido, o jornalista acusava o histórico líder de não desistir de continuar a coordenar o partido e de promover um “certo culto da personalidade”. Além disso, criticava a tão propalada fobia do partido aos entendimentos à esquerda. O Bloco, dizia então Daniel Oliveira, era “um fator de bloqueio, alimentando-se e alimentando o sectarismo“, apostado num “boicote premeditado a qualquer entendimento à esquerda” e mergulhado num “completo autismo“.

Seguiu-se-lhe Joana Amaral Dias, há muito afastada do partido — sobretudo depois de ter sido mandatária para a juventude de Mário Soares nas presidenciais de 2006, numa corrida em que Louçã também participou. Dois dias depois de sair formalmente do Bloco, a psicóloga discursava num congresso do PS e confessava o desagrado com a política de alianças do Bloco. João Semedo reagia com frieza. “Sim, é verdade, a Joana Amaral Dias demitiu-se do Bloco na passada semana. Depois de muitos anos sem qualquer participação na atividade do Bloco, deu agora por concluída a sua ligação. É uma opção sua, não tenho mais qualquer comentário a fazer”.

Estávamos em maio de 2014. Dois meses depois era a vez de Ana Drago abandonar o partido, por entender que o Bloco já não oferecia as soluções de que o país precisava — mais uma vez, a dificuldade do partido de encontrar entendimentos à esquerda. “Amigo não empata amigo”, sintetizou então.

Os três faziam parte da nova vaga de dissidências do Bloco e todos justificaram a saída com a política de alianças do partido. Antes, em 2011, Gil Garcia, da corrente Ruptura/FER (Frente de Esquerda Revolucionária), já tinha abandonado o partido, exigindo uma aliança eleitoral com o PCP, que a direção rejeitou. E ainda há o caso de Rui Tavares, independente que foi eleito nas listas do Bloco nas europeias de 2011 e que se afastou do partido por incompatibilidades com Francisco Louçã. Ou José Sá Fernandes, o vereador lisboeta eleito com apoio do Bloco que juntou forças com António Costa e que acabou em rutura.

A propósito desse episódio, António Costa, então presidente da Câmara de Lisboa, teria uma tirada que, vista à lupa dos dias de hoje, não deixa de ser curiosa. “Quando [o Bloco] nasceu, há dez anos, pensámos que poderia ser um parceiro. Hoje já não podemos ter essa ilusão. [O] Bloco é um partido oportunista que parasita a desgraça alheia, incapaz de assumir responsabilidades de governação“. Estávamos em 2009. Sete anos depois, no 21º Congresso socialista, o primeiro “pós-geringonça”, António Costa não pouparia elogios aos partidos de esquerda, Bloco incluído. Sinais dos tempos.

À exceção de Sá Fernandes, os restantes cinco viriam a integrar movimentos alternativos nas legislativas de 2015: Rui Tavares, Ana Drago e Daniel Oliveira fizeram parte do Livre/Tempo de Avançar; Joana Amaral Dias e Gil Garcia juntaram-se na coligação AGIR. Nenhum teve o sucesso eleitoral que ambicionava. Pelo contrário, o Bloco de Esquerda desbloqueou-se destas contradições internas. Como parte integrante da “geringonça” o Bloco ocupava finalmente uma vaga à mesa do poder. E muito graças à estratégia “ousada” e “muita corajosa” da direção do partido, elogia Francisco Louçã.

Nem todos têm uma visão tão benigna da evolução do Bloco de Esquerda. “O Bloco chegou a 2015 com uma presença estruturante na democracia portuguesa que lhe dava capacidade de fazer um balanço sobre as suas vitórias e derrotas. Se o Bloco tivesse recusado a proposta do PS seria desastroso para o partido“, analisa o politólogo António Costa Pinto, em declarações ao Observador.

Adelino Maltez, professor e especialista em Ciência Política, concorda. “O Bloco estava morto. Teve uma espécie de sobressalto existencial” que, suportado “por uma operação de voluntarismo e de marketing“, pela “empatia de Catarina Martins” e pelo “abandono das lutas facciosas”, criou condições para um resultado acima das expectativas nas legislativas. Com o PS enfraquecido, o próximo passo era óbvio: “O Bloco (e o PCP) fizeram um seguro de vida. António Costa ofereceu-lhes um seguro de vida. E essa é a potencialidade e vulnerabilidade desta aliança”, concluiu. No fundo, enquanto precisarem eleitoralmente uns dos outros a “geringonça” sobrevive. A menos que alguém estique a corda para lá do aceitável — e Catarina Martins já disse que vai esticar a corda. Será que rompe?

"O Bloco estava morto. Teve uma espécie de sobressalto existencial. António Costa ofereceu-lhes um seguro de vida", sublinha o investigador Adelino Maltez. "Se o Bloco tivesse recusado a proposta do PS seria desastroso para o partido", concorda o politólogo António Costa Pinto.

Bloco versão 2016. Que partido é este?

Na moção que leva à X Convenção, Catarina Martins, que desta vez conta com o apoio do anterior challenger Pedro Filipe Soares, é clara: “Sem uma nova estratégia para o país não é possível vencer a austeridade e sustentar o compromisso de recuperação de rendimentos em que assenta a maioria parlamentar”. Uma estratégia que pode passar por “renegociar a dívida pública e realizar uma intervenção sistémica sobre a banca privada, assumindo o controlo público”. Até onde está disposto a ir o Bloco dentro da “geringonça”? E o que significará para o partido uma permanência duradoura no centro do poder para o poder?

A verdade é que o Bloco de Esquerda já aprendeu a andar na “geringonça”, mas quer fazê-la correr mais depressa. Muito mais depressa. O PS, no entanto, dificilmente pode acompanhar esse ritmo ou aceitar uma solução nestes termos. A pergunta impõe-se: até quando o Bloco aceitará fazer parte de uma solução governativa que teima em não responder aos problemas que o partido quer ver resolvido? O futuro o dirá.

A Europa será uma linha decisiva para separar as partes: “Vamos ter de fazer uma escolha. Não é possível por mais tempo estar aqui à espera que haja uma qualquer harmonia cósmica que nos permita resolver o problema [da união Europeia]. Parece-me absolutamente claro que não é possível ser socialista neste contexto institucional, jurídico, político, económico e ideológico na Europa”, alertava José Manuel Pureza numa entrevista ao Observador.

Marisa Matias é mais prudente. “Há ainda muito a fazer em matéria de recuperação de rendimentos. A nossa agenda não está esgotada, mesmo reconhecendo que a abordagem seguida é ainda muito ténue e modesta. Agora, uma coisa é certa: ninguém pode esperar que sejamos cúmplices de uma política que imponha mais sacrifícios aos portugueses.”

Para o Bloco, o caminho só pode ser um: em frente, sem olhar pelo retrovisor. Na prática, o empenho do Bloco será tanto maior quanto maior for o empenho do PS na construção de um caminho de alternância. Estará o Bloco destinado a assumir-se para o PS como o CDS para o PSD? Nem pensar, respondem os bloquistas.

Nós não queremos ser isso. Nós recusamos esse caminho”, assegura José Manuel Pureza. “O que move PSD e CDS é uma lógica de ocupação de lugares e de distribuição de poder. O CDS adaptava-se para chegar ao poder. O Bloco luta por um espaço político” que permita impor o seu programa, completa Francisco Louçã.

“Vamos ter de fazer uma escolha. Não é possível por mais tempo estar aqui à espera que haja uma qualquer harmonia cósmica que nos permita resolver o problema"
José Manuel Pureza, em entrevista ao Observador

O Bloco nunca renegará a sua identidade para ser poder, garantem os bloquistas. A permanência na “geringonça” não é um dado adquirido. Tudo depende de tudo. O Bloco quer mostrar que não está agarrado ao poder e tem ambições de crescer mais e sozinho.

Depois da “queda do último muro” ninguém sabe exatamente o que pode acontecer. “Estamos no início de um processo de convergência. Quem vai beneficiar com esta solução é ainda um grande ponto de interrogação “, deixa em aberto o politólogo António Costa Pinto. Os dados estão lançados, mas é certo: o Bloco já conseguiu provar uma vez que as notícias sobre a sua morte eram manifestamente exageradas.

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