Está tudo nas mãos de Catarina Martins. Com as engrenagens do partido já a rodar para preparar a convenção bloquista marcada para maio, regressa a questão sobre a liderança, cargo que a deputada já ocupa há quase nove anos (mais dois de liderança partilhada com João Semedo). No Bloco de Esquerda, só se dá uma certeza: se a líder quiser continuar, terá apoio e condições para isso; mas é uma decisão que terá de partir da própria e que o partido continua a não dar como fechada.
De resto, não há quem se atravesse com uma resposta taxativa sobre a continuidade ou não da liderança de Catarina Martins para lá de maio, como acontecia ainda na última convenção — nessa altura, todos os dirigentes garantiam simplesmente que a questão era extemporânea e que ninguém equacionava outra hipótese que não a continuidade.
Entretanto, houve eleições, uma hecatombe para o Bloco de Esquerda no Parlamento e, desta vez, há mais cautelas: para já, vão existindo sinais de apoio inequívoco à coordenadora do partido, mas a decisão de continuar ou não é atirada para uma reflexão que própria terá de fazer até maio.
Ainda a 4 de fevereiro, depois da reunião da Mesa Nacional do Bloco de Esquerda, a própria Catarina Martins alimentava o tabu. “Teremos outras oportunidades para falar [de candidaturas]. Os processos de convenção são muito participados, vamos ter debates vários dentro do partido para criar moções de orientação e, muito em breve, esse movimento, estando a avançar, cá estaremos para todas as perguntas sobre isso. É assim que deve ser. Hoje eu sou coordenadora da comissão política que está em funções”, cortou a bloquista.
Esta terça-feira, em entrevista ao Observador, Pedro Filipe Soares, antigo rival e agora aliado, punha as coisas nestes termos: “Como é público, Catarina Martins tem todas as condições internas e externas para continuar. É da sua decisão fazê-lo ou não. É uma decisão que Catarina Martins tem de ponderar“, afirmou o líder parlamentar do Bloco de Esquerda.
Perante a insistência sobre se havia ou não alternativa caso a atual coordenadora quisesse dar por terminado este ciclo político, Pedro Filipe Soares acabou por reconhecer que o partido a isso está obrigado. “Como é óbvio qualquer partido tem de ter sempre alternativas porque o partido não se esgota em pessoas. Se se esgotar, é porque não tem força política suficiente. O Bloco não se esgota em pessoas, seja dentro ou fora do grupo parlamentar.”
Entre os apoiantes de Catarina Martins no partido, incluindo alguns dos mais próximos, a tónica é a mesma: elogios rasgados à prestação da líder, mesmo depois do desaire eleitoral que deixou o Bloco com o grupo parlamentar mais reduzido em vinte anos, e garantias de que, se quiser, terá o partido com ela. No mês passado, em entrevista ao Observador, Joana Mortágua, que esteve com Pedro Filipe Soares nas eleições internas de 2014, também garantia: “Catarina Martins tem apoio interno sólido para continuar”.
Os argumentos para manter líder
Para os apoiantes internos de Catarina Martins, os dois dias de jornadas em Aveiro e Viseu que acaba de completar — uma espécie de simulacro de campanha, com ações de rua, uma ida à feira e até uma viagem de autocarro com paragens em espaços que poderiam servir para habitação pública — provam que Catarina Martins está com energia.
Além disso, e mais importante do que isso, que continua a obter uma boa reação quando sai às ruas. Tendo em conta que o risco de desgaste de uma liderança tão longa existe e não pode ser descartado, a receção que vai tendo nos habituais contactos de rua são um bom barómetro da popularidade da coordenadora do partido, insistem as mesmas fontes ouvidas pelo Observador.
O outro argumento dos mais próximos de Catarina Martins passa pelo que a líder ainda representa: é a cara dos tempos de geringonça, símbolo da maior influência nas decisões políticas que o Bloco já teve na sua história. Aliás, na última campanha para as legislativas, voltou a pedir a António Costa que assinasse um novo “contrato” para uma geringonça 2.0, hipótese que a maioria absoluta se encarregou de aniquilar.
Mesmo assim, há quem teorize que Catarina Martins é o símbolo da alternativa que o Bloco defendia, e que o PS acabou por rejeitar, avançando para uma legislatura absoluta acidentada e com uma queda de popularidade considerável. De alguma forma, a atual líder do Bloco é a voz do ‘eu bem avisei’, que serve de lembrete para o resultado da maioria de Costa — e que lhe dá capital político, naturalmente.
Juntando a isto, os mais próximos de Catarina Martins acrescentam outro argumento: um líder que pegasse nas rédeas do partido apenas na próxima convenção, em 2025, chegaria com energia renovada para as eleições que (nos prazos normais) acontecerão em 2026. Acreditando no que disse o mesmo Pedro Filipe Soares em entrevista ao Observador, o cenário de eleições antecipadas, depois de maio de 2024, não é tido como sério no Bloco.
Mas isto, insistem os apoiantes da líder, são os argumentos e a vontade de quem a rodeia: o derradeiro argumento será sempre a vontade da própria. E sobre essa Catarina Martins ainda não foi clara, tendo apenas dito, no sábado, que ainda não é o momento de se pronunciar.
Para já, fica marcado o prazo limite para uma primeira etapa rumo à convenção: a apresentação das moções de orientação política, até 27 de fevereiro. Só depois disso é que o partido estará pronto para se lançar às discussões sobre liderança, reduzindo ao máximo a janela das etapas que levarão à convenção.
Críticos atacam processo. Partido fala em Mortágua
Ainda assim, com ou sem passagem de testemunho, é de esperar que o caminho seja acidentado. Os críticos internos da atual direção não poupam críticas à forma como o processo da convenção está a ser conduzido e atacam a decisão de aumentar o número de assinaturas necessárias para apresentar moções de orientação.
Esses críticos, aliás, já se vão mexendo. Por um lado, mostrando (embora mais nos jornais do que dentro de portas, ironiza-se no núcleo duro de Catarina Martins) o seu desagrado com a rapidez do processo até à convenção, que diminui as hipóteses de haver um debate mais democrático e participado. Além disso, repetem as críticas sobre falta de “pluralidade” no partido, que ficará particularmente em causa no encontro do Bloco agendado para maio.
Quanto à questão da liderança, os adversários internos da atual direção acusam a equipa que rodeia Catarina Martins de já ter começado a “fazer campanha por ela”. “Já começaram a dizer que quem não for pela Catarina quer fraturas e prejudica o Bloco”, comenta com o Observador um elemento do partido que não se revê na gestão dos bloquistas.
Nas alas críticas da direção, antecipa-se que Catarina Martins fique para mais um ciclo à frente do partido, mas a razão não são exatamente os méritos da coordenadora — pelo contrário. Segundo os adversários internos da linha oficial do Bloco, a questão é mais profunda porque não haverá “consenso” para a sucessão. Uma tese que o núcleo duro rebate sem hesitações: no caso de a líder querer sair, o Bloco terá alternativas para responder a essa “necessidade”.
As alternativas, essas, não serão novidade: a dirigente e deputada Mariana Mortágua, um dos rostos mais conhecidos do partido e o que é sempre mencionado à cabeça quando a conversa chega à sucessão, continua em alta na bolsa de apostas. De que teria um apoio interno substancial ninguém duvida – resta saber se conseguiria uma aceitação razoável fora do partido, onde soma alguns anticorpos também.
Por outro lado, lembra-se o nome de Marisa Matias, cuja cotação desceu depois do mau resultado nas últimas presidenciais, que viria tirar o brilhar aos históricos 10% que conseguiu na corrida a Belém de 2016. Curiosamente, nas presidenciais do ano passado o núcleo duro bloquista relativizou o resultado para poupar Catarina, recordando que não tinha sido o rosto da campanha. Dois anos e uma derrota pesada depois, o espírito é o mesmo: o partido continua a dar o seu apoio à líder. Resta saber se Catarina Martins o quererá.
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