O Bloco de Esquerda não quer dar por encerrada a questão da privatização da TAP. Por isso, a bancada parlamentar bloquista está a tentar a chamar o decreto do Governo ao Parlamento, para que os deputados possam discutir e votar a decisão do Executivo — e para isso esperam contar com a ajuda do PCP. Ao Observador, fonte oficial do Bloco de Esquerda confirma que é essa a intenção do partido: “O Bloco tentará promover pontes que permitam a apreciação parlamentar deste decreto-lei”, explica.
O obstáculo é matemático, como a mesma fonte assume. “Os deputados do Bloco não chegam para fazê-lo.” Ou seja, dado que existe um patamar mínimo de dez deputados, previsto na Constituição, para chamar um decreto aprovado pelo Governo para que seja reapreciado no Parlamento, o partido precisa de se entender com outras bancadas, uma vez que nenhuma das forças de esquerda tem um número suficiente de assentos no Parlamento para tomar sozinha esta iniciativa. Do ponto de vista prático, portanto, só há três formas de haver essa apreciação parlamentar: ou o PSD, que, em abstrato, admitiu fazê-lo; ou o Chega, que não respondeu às perguntas do Observador; ou através desta aliança entre velhos parceiros de ‘geringonça’.
De acordo com as informações que o Observador apurou, o Bloco — que conta com cinco deputados — deverá assim contactar o grupo parlamentar do PCP — onde se sentam seis deputados. Os comunistas posicionam-se, tal como os bloquistas, contra a privatização da companhia aérea, pelo que o Bloco protagonizará uma tentativa de unir esforços para voltar a discutir e votar o assunto no Parlamento. O Observador contactou o PCP para saber se admite tomar uma iniciativa deste género, mas não obteve resposta até à publicação deste artigo.
Uma vez que o PS conta com a maioria dos deputados no Parlamento, um cenário em que uma votação negativa tivesse um efeito prático sobre a decisão do Governo seria praticamente impossível — mas a estratégia poderia forçar o Governo a explicar-se e, no limite, obrigar alguns deputados socialistas a assumir divergências em relação à estratégia para a companhia que o Executivo nacionalizou e que quer agora privatizar. A Constituição prevê que uma apreciação parlamentar sirva para obrigar à “cessação da vigência” do decreto em causa, obrigando o Governo a recuar, ou a uma “alteração” do seu conteúdo.
PSD analisa hipótese, pedronunistas descontentes
No resto da oposição parece ainda não haver decisões tomadas quanto a este caminho. Por um lado, porque é na esfera da esquerda que existe uma oposição à ideia de privatizar a TAP, o que pode excluir desde logo alguns partidos destas contas. Por outro, o PSD até admite vir a chamar o decreto ao Parlamento, mas não assume decisões definitivas, garantindo estar ainda a “analisar” o assunto.
“É algo que estamos ainda a analisar. O decreto ainda precisa de alguma clarificação, nomeadamente no que diz respeito ao caderno de encargos. E mais pormenores são necessários saber sobre o processo. Se entendermos que há zonas nebulosas, claro que iremos fazê-lo”, dizia o vice-presidente do PSD Miguel Pinto Luz, na semana passada, em entrevista ao Observador. E explicava que entre essas “zonas nebulosas” estaria a suposta intenção do PS de, em vez de vender a TAP inteira, “fazer uma TAP boa e uma TAP má”.
Até no PS existe alguma divisão sobre o assunto: logo na primeira edição do seu comentário semanal na SIC Notícias, Pedro Nuno Santos assumia estar contra a venda da maioria do capital da TAP, defendendo que a solução para assegurar que a companhia aérea ficará, no futuro, sediada em Portugal e com hub em Lisboa teria de passar pela manutenção do controlo do Estado.
Ainda assim, o líder da ala esquerda do PS sugeriu que não irá contra a orientação do Governo caso o dossiê da TAP seja votado pelo Parlamento, tal como o Observador adiantou na semana passada. Na SIC, esta segunda-feira, Pedro Nuno recordou, a propósito da contagem do tempo de serviço dos professores (contra a qual votou no Parlamento, mesmo assumindo que é favorável à ideia) que integra “um partido, uma organização” e que por isso nem sempre vota de acordo apenas com a sua consciência.
Questionado sobre o que faria caso se colocasse a mesma questão sobre a TAP, respondeu que estaria “ao lado da bancada parlamentar”, acrescentando: “Há matérias que são tão fundamentais na governação que exigem que nos submetamos à orientação do coletivo“.
O assunto já tinha provocado um desentendimento, seguido de um mea culpa de António Costa, na semana passada. Depois de o primeiro-ministro ter sugerido que o plano de reestruturação da TAP implica que a empresa seja obrigatoriamente privatizada, foi desmentido por Pedro Nuno e acabou a explicar que se tinha “expressado mal” — a abertura do capital da empresa sempre foi um “pressuposto”, mas a privatização é uma opção do Governo e não uma obrigação, admitiu. Pedro Nuno acabaria a desvalorizar a questão, dando a entender que tudo não passou de um mal entendido, mas mantendo a sua opinião: privatizar a companhia aérea será um erro.
Entre as hostes pedronunistas, a ideia colhe apoio. Em entrevista ao Observador, há duas semanas, a deputada e ex-ministra Alexandra Leitão argumentava a favor da manutenção do controlo da companhia aérea (via maioria do capital ou, em alternativa, alguma solução do tipo golden share), prometendo fazer “o que a cabeça ditar” caso o diploma fosse chamado ao Parlamento: “Não sei o que os meus colegas deputados farão, seguramente farei o que a minha cabeça ditar se for chamada a votar isso. Como em tudo aquilo em que tenho convicções”.
No final de setembro, o Governo aprovou em Conselho de Ministros o decreto-lei que lança o processo de reprivatização da TAP, tendo definido que tem por objetivo a alienação de pelo menos 51% do capital da empresa (destinando pelo menos 5% aos trabalhadores). O Executivo garantiu na altura que quer, neste processo de venda, salvaguardar princípios estratégicos como o crescimento da companhia e do hub nacional; o crescimento de operações que “aproveitem capacidade não aproveitada nos aeroportos nacionais”, com destaque para o do Porto; e a “maximização” do encaixe financeiro para o país.
Fernando Medina disse ainda, na mesma altura, que o comprador terá de ser um “investidor de escala do setor aeronáutico” e não um investidor “puramente” financeiro, que só esteja interessado em entrar na companhia aérea para vendê-la, ou partes dela, posteriormente, “retirando o contributo estratégico da TAP para o país”.
Segundo o calendário do Governo, entre o final de 2023 e o início de 2024 deverá ser apresentado em Conselho de Ministros, de forma “mais fina”, o caderno de encargos que definirá os moldes em que o negócio deve acontecer. Os bloquistas esperam, pelo meio, conseguir escrutinar a decisão do Governo no Parlamento.
Curiosamente, foram os socialistas os responsáveis pela reapreciação da privatização anterior da TAP, no tempo de Pedro Passos Coelho. Na altura, em 2015, a bancada chamava o decreto do Governo ao Parlamento para debater uma “série de contradições” que detetava nas declarações públicas do então primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, o ministro da Economia, Pires de Lima, e o então líder parlamentar do PSD — e atual líder do partido –, Luís Montenegro.
O cenário, que agora se inverte, repetiu-se com outras privatizações: em 2012, o PCP conseguiu que o decreto que ditava a venda da ANA fosse discutido no Parlamento; aconteceu o mesmo em 2015 com a reprivatização da CP Carga e em 2014 com a da EGEF (sub-holding do grupo Águas de Portugal), tendo nessa altura PS e PCP juntado forças para o fazer.
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