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Não há quem não o trauteie. Há décadas. E trauteiam esta: Tenho uma lágrima no canto do olho. Ou mais esta: Mariquinha, vem comigo p´ra Angola. E muitas, muitas mais. Bonga também as trauteia, às canções que escreveu, sempre de dikanza ou de batuque na mão, a dar concertos — menos do que antes — de Portugal a França, que são a “segunda” casa, e mundo fora. Só em Angola, a sua Angola onde foi menino do bairro, do musseque suburbano, é que não. Lá, Bonga é uma voz “incómoda”, por se dizer contra o regime “caduco”, por criticá-lo sem teimas nem peias, por não lhe temer o medo que causa aos outros.

Bonga recebeu-nos em casa, na Pontinha. Mantém o porte atlético de sempre, a “pinta” de sempre, apesar de ser já septuagenário e de a farta carapinha (e barba) de outrora ser hoje mais grisalha. Um porte atlético que traz dos dias em que, em Angola ou no Benfica, foi o melhor velocista da sua geração. Então como Barceló. Barceló de Carvalho. Só se tornaria Bonga quando fugiu “dos pidescos” e se exilou na Holanda. Foi aí que primeiro gravou. Seguiram-se dezenas de álbuns e de sucessos.

Saudades, sente? “Não sou saudosista.” E não o é, Bonga, porque continua a cantar a “Marquinha” e os “Olhos Molhados”. Este sábado atua no Porto, no festival NOS em d’Bandada (Coliseu do Porto, 21h30), um festival de “miúdos”. “Os miúdos pedem muitas dicas aqui ao ‘kota’. Sou uma referência de peso”. E é.

A infância no musseque. “No tempo colonial uns eram os filhos da mãe e outros eram… filhos da coisa”

Nasceu em 1942. E fez há poucos dias [5 de setembro] 74 anos. Sente-se com 74 anos? Sente-se “kota”?
Sinto-me “kota”. E hoje, mais do que nunca, sinto-me uma referência de peso para essa juventude que me contacta. Não direi que me contactam quotidianamente, mas contactam semanalmente. Com coisas novas, obras novas. Para dar sempre uma opinião, uma achega, enfim, aquelas coisas. Mas sinto-me “kota”, evidentemente. Por ter esse passado imenso, com muitas outras pessoas – a maior parte delas, aliás, já desapareceu, não está aí. E, por conseguinte, sentir-me “kota” é uma responsabilidade muitíssimo grande.

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José Adelino Barceló de Carvalho. O nome de batismo é este. Durante muito tempo, enquanto foi atleta – adiante falaremos disso –, todos o conheciam como Barceló de Carvalho. E mais tarde, na música, como Bonga. Ainda alguém o trata por Barceló?
Ainda há. Com certeza que há. E ainda há quem não consiga fazer a diferença entre o Barceló de Carvalho do atletismo e o Bonga da música. Tenho algumas surpresas de vez em quando. “Ahhhhh, você é que é o Barceló?”

Vamos falar da infância. Nasceu em Porto de Kipiri, na zona do Bengo, a norte de Luanda. Que memórias é que tem da sua infância em Kipiri?
Olha, isso para mim foi muito importante, o ter nascido aí, porque era logo o contacto direto que a gente tinha com as tradições. As tradições, os comeres, enfim, a maneira de estar, os “kotas” — os velhos naquele tempo eram muito afirmativos na sua forma de estar connosco –, e depois a família, a família com um sentido muito próprio, muito natural, muito terra a terra, muito aconchegadinhos sempre, e depois a defesa que a gente tinha, a defesa das coisas, a defesa da família, dos miúdos, a proteção que havia era muito importante. E depois sentir aquele cheio, aquele cheiro do mato, teve uma importância fundamental. Enfim, guardei isso como uma recordação tremenda. Ainda não desapareceu.

Volta a Kipiri?
Sim, de vez em quando ainda lá volto. Muito embora nada se esteja a fazer nada para que eu volte mais vezes. Há uma distanciação tremenda. Estou no exterior a viver de há muito tempo esta parte. Não vou tantas vezes quanto desejaria que fosse.

Foi uma infância dura? Com pobreza?
Isso é tudo verdade. Estamos a falar do tempo colonial, onde uns eram os filhos da mãe e outros eram… filhos da coisa. Desprotegidos. Afastados de todo um contexto de melhoria. Os nossos “kotas” tiveram que se impor, que se bater, que se afirmar, para que nós hoje pudéssemos respirar um bocadinho mais de ar livre, de conforto, de liberdade. Foi tudo tirado a ferro e fogo.

Chegou a passar fome?
De tudo isso se passou. Claro que eu não sou dos que mais penou. Mas tenho consciência disso — por ter vivido nos bairros em que a gente vivia, com gente que penou. Foi uma chatice.

E isso só se ultrapassava com a entreajuda…
Essa é uma política africana – sem qualquer ideologia — que reina até hoje, a da entreajuda. E essa entreajuda – de familiares, de vizinhos – facilitou-nos muitas vezes. Essa tónica africana é algo que temos como bandeira.

E na escola? Era bom aluno?
Era um aluno como os outros, nem muito bom nem muito mau. Algumas coisas a gente não aceitava muito bem, porque punham em evidência as coisas da Europa e não forçosamente aquilo que nos tínhamos muito mais a peito. Estou a falar da nossa filosofia de vida, das nossas tradições, usos e costumes, ninguém evidenciava a nossa música por exemplo, era totalmente esquecida na escola. A minha geração, como a anterior, teve que se ocupar disso, razão pela qual a gente cantou muito, dançou muito, fez muito teatro, e isso constitui um marco muitíssimo importante. Por essa razão é que estamos aí, não é?

Sempre o conheci rodeado de mulheres. Mulheres vistosas. Namoradeiro, era?
Fui bastante. Como bom africano que sou. [Risos] Tem a ver com a onda daquela altura, as pessoas encontravam-se amiudadas vezes e a partir daí, olha: o que é que a gente não fazia, não é?

Viveu em muitos bairros, muitos musseques [os subúrbios não asfaltados de Luanda]. Nos Coqueiros, Imgombotas, Bairro Operário, Rangel e no Marçal…
Eram as congruências daquele tempo. Havia dificuldades. Não podíamos mais viver nas casas do antigamente. Fomos afastados. Estou a falar da Angola dos anos quarenta/cinquenta. Vivíamos praticamente no centro urbano e fomos afastados para fora, para os tais musseques, para onde o colono queria que fossemos. E agora está a acontecer exatamente a mesma coisa que no tempo da “outra senhora”. Quem quiser fazer um paralelo, que faça. Era – e é – um fenómeno essencialmente político. Não tínhamos “massa” para pagar um apartamento nos centros urbanos.

Aí viviam sobretudo os funcionários públicos, não é? Havia rivalidade entre os miúdos do musseque e os filhos desses funcionários?
Havia, havia. Mas era uma rivalidade no bom sentido. Encontrávamo-nos amiudadas vezes. Mas sempre no sentido da cordialidade – tínhamos o exemplo dos nossos pais, dos nossos avós – e isso era muitíssimo bom. Então, fazíamos desporto, não federado, corríamos bairro contra bairro. Mas também havia essa rivalidade no futebol, na música. E foi muitíssimo importante.

O Bonga é o terceiro filho. Irmãos são nove. Era quase uma equipa de futebol…
[Risos] É verdade. Africano que se preze não faz só um filho. Nem dois. Nem três. Nenhum outro povo no mundo é assim. Mas nós somos assim. África é muito grande, tem muita terra para explorar. E ninguém tem que nos dizer que só podemos ter um filho ou dois. Às vezes as pessoas dizem: “Ahhh, como não havia televisão e não sei quê, faziam filhos.” Não era por isso. E até te digo mais: há casais em que o chefe de família, o pai, tinha – como se diz por aqui – várias “sucursais”. O africano não tem medo de assumir essa conduta só porque o vão acusar de poligamia. O africano assume-se. Afinal, há muito mais mulheres do que homens. [Risos] Mas não digo que é por essa razão que o faziam. Era um tempo de uma tremenda harmonia nesses casais. E muitas vezes era a primeira mulher – se é que podemos dizer assim – que avisava o marido que em casa da segunda faltava o leite ou faltava isto e aquilo. E isso é maravilhoso. Hoje, ninguém acredita nisto, mas antigamente era assim.

Um velocista que “faz favor”, o Benfica e a fuga à PIDE. “Às vezes até a minha mãe me dizia: ‘Podes ir devagar!'”

Sei que ainda chegou a “dar uns pontapés na bola”. E sempre gostou de futebol – foi muito amigo do Eusébio. Mas a primeira paixão, a maior, sempre foi o atletismo. Quando é que começou nas “correrias”, por brincadeira?
Eu gostava mais do atletismo. Aquilo é pessoal. Você tem que fazer a corrida e na corrida você está sozinho – fora quando é na estafeta. E eu corria muito. A velocidade era mesmo boa e destaquei-me. E o grande treinador Demósthenes de Almeida Clington foi o grande obreiro. Era ele quem escolhia, quem decidia, quem opinava, quem treinava e ensinava. E ele um dia disse-me: “Futebol? Na, na, na. É no Atletismo que você é bom. A correr assim desse jeito? Faz favor…”

E deixou de ser uma brincadeira quando começou a correr pelo S. Paulo do Bairro Operário. Chamavam-no, pejorativamente, o “clube dos pretos”. Porquê?
Porque estava cheio de “bumbos”. [Risos] Nós éramos 99,9 por cento de negros no São Paulo. E depois, todos esses atletas viviam nos tais bairros, nos musseques, e como eu era um deles, foi a esse clube que me afiliei.

Tinha 12 anos quando foi para o S. Paulo do Bairro Operário. Sabia que era realmente bom? Logo com essa idade?
Era um miúdo que corria bastante. Sempre, sempre, sempre. Quando me mandavam fazer as compras, corria e voltava, transpirava, e às vezes até a minha mãe me dizia: “Podes ir devagar, lentamente.” E eu respondia: “Oh mãe, a mãe diz sempre para eu chegar a horas, para vir sempre cedo para casa.” Eu saía da escola a correr, para vir para casa. Então, destaquei-me sempre. O desporto sempre esteve em mim.

Mais tarde foi para o Club Atlético de Luanda. E aí teve como treinador o Demósthenes de Almeida Clington – de quem ainda agora falámos. Foi alguém muito importante para si…
Foi, sem sombra de dúvida. Para mim e para todos os outros — alguns dos quais até vieram para Portugal, enriquecer as lides do desporto, fosse no atletismo, no futebol, no basquetebol. Ele foi, de facto, o grande homem, o grande impulsionador, aquele que descobriu, aquele que incentivou, e que disse como é que era, como é que tinha que ser.

Era mais que um treinador.
Era. Evidentemente. Sobretudo nos conselhos que dava.

Condições, no Atlético e lá no velho campo dos Coqueiros, não havia. A pista tinha “buraquinhos”, não é? Mas, ainda assim, foi recordista angolano nos 200 e 400 metros…
Não tinha condições, mas era o única [pista] que a gente tinha. Tínhamos que fazer com que valesse a pena. A correr em Angola, naquela pista esburacada, de cinza, que não tinha condições nenhumas, mesmo assim conseguir correr e pulverizei os recordes de Angola. Era o que tinha, tinha que me sujeitar a isso.

E é aí, em 1966 – tinha 23 anos –, que surge o Benfica. Como é que foi?
Foi depois de eles terem percebido que eu e outros atletas éramos muito valorosos. A fazer marcas daquelas em pistas de cinzas e de carvão, como não seria cá, numa pista em condições. E partir daí é que demonstraram interesse em que eu viesse para aqui.

Vinha cheio de ilusão, mas a chegada a Lisboa foi uma “desilusão”…
Ihhhhh, grande, grande. Também não estava à espera de nenhuma fanfarra. A ilusão nunca foi essa. Eu tinha uma ideia de como seria viver aqui, mas nunca pensei que houvesse tanta forretice – aquela coisa do cada qual por si e Deus por todos. Senti logo que era um clima diferente daquele que a gente vivia em Angola. Cá como lá, havia pobreza, dificuldades. Mas lá éramos uns para os outros. Se eu convidava alguém para ir a um café, uma cervejaria, uma porcaria qualquer, eu assumo aquilo, não havia problema. Aqui não; aqui comecei a ver que se contavam muito os tostões. E quando vi, tive imediatamente vontade de me ir embora. Pensei: “Eh pá, o que é que é isso?”

E o que é que o aguentou cá?
O que me aguentou aqui foram os africanos que já cá estavam a viver, principalmente os jogadores de futebol do Benfica, os desportistas em geral, através dos encontros amiudados que a gente tinha nalgumas cervejarias da capital – o que não quer dizer que a gente chupava copos! [Risos] Ihhhhh, as farras que a gente fazia. Era contagiante. E então disse: “Espera lá um bocadinho, estas pessoas também vieram de lá para cá, também tiveram as mesmas dificuldades que eu, as mesmas lutas, e aguentaram-se.” E isso foi ótimo.

No Benfica voltou a vencer, tal como em Angola. Fale-me desses tempos? Era um ídolo?
Ídolo? Sim, mas só depois de certas marcas terem sido obtidas. Quando foram, todos os fins-de-semana aparecia na televisão, nos jornais, e as pessoas identificavam-me na rua. Foi aí que comecei a ganhar nome.

Depois, dá-se a ida para o Belenenses, não é? Porquê?
Isso foi depois. Nós no Benfica tínhamos a ilusão de pertencer a uma família. E a família às vezes também nos desilude um bocadinho, ‘tás a ver? Foi isso que aconteceu comigo. Eu comecei a ver os amigos mais chegados, o Rui Mingas, o Júlio Pereira, o Fonseca e Costa, a irem todos para o Belenenses. E fui para lá por uma questão de solidariedade para com os angolanos que lá estavam.

Nos tempos do Belenenses o Bonga já era um ativista político – se é que podemos dizer assim. E em 1972 teve mesmo que se exilar na Holanda. Abandonou aí, e de vez, o atletismo? Nunca pensou em voltar a correr? Mesmo na Holanda…
Ainda tentei. Mas não tinha moral, nem física nem psicológica, para continuar. Não deu mesmo. E comecei a ter outro tipo de atividades. É aí que surge a proposta para gravar o primeiro disco [Angola 72], que foi um desabafo que eu tinha guardado aqui dentro, das coisas vividas no tempo colonial. E arrumou-se o atletismo de vez. [Pausa] Espera… não. Eu entretanto fui descoberto, fui apanhado. Fui treinar – era aquela coisa da febre do desporto – e quase ganhei ao campeão de Roterdão. Foi por um palmo que não ganhei. E as pessoas ficaram a dizer: “Quem é este?!” Os holandeses lá andaram a vasculhar e, no dia seguinte, vem na primeira páginas do jornal: “Afinal, este que diz ser o cantor Bonga é o Barceló de Carvalho, campeão de Portugal dos 400 metros”. A partir daí tive que começar aos ziguezagues para não ser descoberto pela PIDE.

Aquele que vê, que está à frente e em constante movimento: eis Bonga. “Nunca tive problemas com a PIDE. ‘O gajo até é bom e tal, é da família Benfica, tá-se bem'”

Ouvi dizer que o seu pai tocava concertina, sanfona. E, enquanto ele tocava, o Bonga raspava a dikanza [equivalente ao reco-reco português], não era? Foi aí que começou a paixão pela música? Em casa?
Não. Acho que não. Foi mesmo no bairro. No bairro nós temos o privilegio de ter a porta sempre aberta – ou tínhamos, agora já não. E os vizinhos entram na nossa casa como se fosse a deles. Havia uma harmonia tremenda. Sempre com aquela curiosidade de fazer qualquer coisa relacionada com a terra, com a identidade musical. Eu comecei muito cedo com os batuques. E organizava aqueles grupinhos de bairro. Foi com o batuque que tudo começou. Mas a dikanza chamou-me imediatamente a atenção. O meu tocava em casa aquela sanfonazinha, tocava algumas músicas tradicionais, uma ou outra brasileira que se ouvia na rádio, e eu é que pegava na dikanza para o acompanhar. E o velho gostava! Ele dizia: “Estás no tempo, estás a tocar bem.” Se não estivesse ele dizia: “Tché, pára, pára, não está lá!”

A voz rouca é – e sempre foi – uma imagem de marca. Mas em criança, por causa da voz, pouco “lírica”, foi dispensado do coro da igreja…
Nada lírica. [Risos] Não me deixaram entrar. Era um tio meu, o Joaquim, que era professor de canto coral. E quando eu começava a cantar, ele dizia: “Tché, não dá, pára.” E quase me traumatizou – o que vale é que nós africanos não temos esse tipo de traumas. E o “Angola 72” é que vem dar uma abertura tremenda para esta rouquidão aparecer em canto.

Kimbandas do Ritmo. Kissueia. Foi fundador, em Angola, de vários grupos folclóricos. E colaborou com Eleutério Sanches, Rui Mingas, Duo Ouro Negro. Tocava percussão. Fazia vozes. Mas a música nessa altura não era ainda uma coisa séria para si…
Nunca pensei em ser cantor. Era só uma colaboração que iria dar na percussão, na tal dikanza, no batuque, aqueles ritmos de Angola. Mas não pensava em usar a voz propriamente dita. Não a solo.

Em 1972, como contou há pouco, exilou-se na Holanda. E é aí que nasce o “Bonga” – que significa “aquele que vê, que está à frente e em constante movimento”. Como é que surge este “Bonga”?
O nome surge, primeiro que tudo, para ninguém descobrir que o Bonga era o Barceló de Carvalho. E para que não me viessem incomodar. E depois, esse nome, que é um nome em quimbundo, acaba por ter uma conotação com a tradição. Não me estava a ver a cantar uma música africana com tanto ritmo e a chamar-me Barceló de Carvalho. [Risos] Mudei. E foi uma boa mudança.

É no exílio que grava o primeiro disco: “Angola 72”. O disco foi proibido em Portugal e em Angola. Era cantado em quimbundo [dialeto do noroeste de Angola falado por mais de três milhões de pessoas], falava da libertação de Angola, do colonialismo, da pobreza, da injustiça, da imigração. As letras eram suas. Considerava-se um “cantor de intervenção”?
Não era bem isso que eu queria fazer, mas fui obrigado a fazer. Era a minha vivência. Queria participar, intervir diretamente, mobilizar. Não queria mobilizar para que quem me ouvisse fosse “carne para canhão”. Na, na, na. Era uma mobilização de um estado de consciência, para reagirmos em conformidade.

Chegou a ter problema com a PIDE, cá em Portugal?
Nunca diretamente. Sabe que naquela altura os “pidescos” eram matreiros. Nós saíamos para fazer atletismo no estrangeiro e havia sempre dois tipos que viajavam connosco e que ninguém sabia quem eram. E eram os gajos da PIDE. Controlavam tudo. Mas nunca fui preso, isso não. Andava por aqui, dizia umas coisas, mas sempre no sigilo, “de caxexe” – como se diz lá em Angola –, às escondidas. Um homem prevenido vale por cinco. Outros de nós, como não eram tão famosos no desporto, já tinham tido problemas. Não precisam deles. Quando precisam, não chateiam muito. “O gajo até é bom e tal, é da família Benfica, ‘tá-se bem.”

Quando escrevia as canções, tinha que dizer o que queria dizer “nas entrelinhas”. Sentia medo, mesmo à distância?
Sentia. Não por mim. Temia-se pelas famílias, pelos amigos chegados, que sofriam a consequência de algo que a gente fizesse no exterior. A PIDE não perdoava.

Sabe do 25 de Abril em Paris. Quando é que recebeu a boa-nova? E o que é que aquilo significou para si?
[Toca a campainha de casa. “Que chatice, pá!” Bonga levanta-se, abre a porta, e dois homens colocam os discos de ouro e de platina sobre o sofá. “À vista, tudo aí à vista! ‘Tou só aqui a acabar uma entrevista, ya? Até já” Volta e diz: “Não vamos ser mais importunados”. Faz o check sound: “Um, dois. Um, dois, três, quatro, cinco, yeeeah…”] Oh, pá, significou… foi muitíssimo importante. Foi o fim da ditadura e o principio de tudo. O 25 de Abril ia mudar a configuração de Portugal e das ex-colónias. Mas também significou uma reflexão profunda. Nós, africanos residentes na Europa, reunimos nessa mesma noite e pusemo-nos a pensar. “O que é que vai acontecer agora?” E havia várias interrogações. A gente olhava para as caras uns dos outros e dizíamos: “Está a chegar a vez de nos pronunciarmos, no contexto do 25 de Abril, sobre o que é que nos vai acontecer.” Pessoalmente, tive medo do que iria acontecer. O 25 de Abril foi ótimo, maravilhoso, saltámos, bebemos champanhe, mas tive medo. E tinha razão.

A Angola de hoje e da outra senhora. “Onde é que a gente vai parar com este clima de medo? As pessoas têm que dizer a sua opinião.”

Nunca voltou a Angola. Não para ficar, viver, reconstruir. Falava de uma “falsa paz” [a Guerra Civil veio depois] que se sentia no país…
E continuo a falar [de uma falsa paz]. Não fui reconstruir porque muitos foram e não reconstruíram coisa nenhuma. Pelo contrário. Já não havia o colono, mas nós, africano com africano, não tivemos capacidade de dialogar como fazíamos no tempo da “outra senhora”. Na altura, tínhamos um inimigo único e convergíamos em quase tudo. Mas depois passou a ser difícil. E veio a Guerra [civil]. Não foi para isso que fomos independentes.

O Bonga é angolano. Apesar de tudo, da Guerra Civil, dos dias de hoje, nunca renegou isso. Mas sente que é de um sítio só? Ou é meio angolano, meio português, meio francês? Até meio holandês?
Primeiro que tudo, sou um cidadão angolano. Mas também sou de Portugal, pela vivência, pelos amigos, pelos discos de ouro de platina que Portugal me deu, pelo público que sempre me acarinhou e acarinha. Mas sou principalmente um cidadão do mundo, que se bate para que haja igualdade, menos preconceito. Essa é a minha luta quotidiana. Não sou individuo para estar calado, sossegado, cabisbaixo; não contem comigo para isso.

Quando, hoje, volta a Angola, o que é que sente? O que é que podia ter mudado e não mudou?
Falta sobretudo deixar de se fazer as asneiras que se fazem. Isso é que é fundamental. Nós estamos a ver que há uma classe privilegiada com quase tudo. E até se criam crises para complicar o “mexilhão”. Eu, que cantei, que reivindiquei a liberdade, fico um bocado desiludido com esta situação. É preciso diálogo, abraços fraternos, para que se enverede por um caminho certo, onde haja harmonia.

Por falar em asneiras. O Bonga, até pela idade que tem, pelo respeito que todos lhe têm, sempre disse o que pensava, o que pensa. Lembro-me de, aquando da prisão dos 15 ativistas angolanos – entre eles o Luaty Beirão –, dizer: “Não estou a gostar nada dessa brincadeira”. E falou em “vergonha”. Eles foram libertados, entretanto, mas o caso não terminou. O que é que pensou e pensa de tudo o que se passou?
Está a repetir-se o que aconteceu no tempo da “outra senhora”. E não tinha que ser assim. No tempo de hoje, ser-se preso por uma questão de ter falado? Então, mas quer dizer que as pessoas vão presas por terem expressão? Mas não podem falar de coisa nenhuma? Isto está errado, não pode ser assim. Estou solidário, estamos todos, com esses miúdos. E com outros. Há muitos que não falam. Há um clima de medo. Onde é que a gente vai parar com este clima de medo? As pessoas têm que viver tranquilas, dizer a sua opinião. E isto que aconteceu põe em causa o próprio sistema judicial. Está mal. Está errado. Mas temos que ser todos a dizer que está errado, os de lá e os de cá. Principalmente os de cá, que desfrutam de uma maior democracia. E não foi isso que se viu agora, com os partidos políticos a viajarem até Angola para endeusar o chefe africano [José Eduardo dos Santos]. Não pode ser assim. Mas isto acontece por causa do peso que Angola tem. Angola tem dinheiro. Mesmo em tempo de crise tem dinheiro. E o dinheiro serve para untar [faz o gesto de untar com as mãos] determinadas pessoas, determinadas famílias. Tanto lá como cá. O dinheiro de Angola, mais do que nunca – e cheguei a esta conclusão –, é algo que está a complicar o nosso futuro.

O Bonga conhece pessoalmente o presidente José Eduardo dos Santos. São da mesma geração. Acha que é tempo de mudar, de ele – e dos que com ele estão – abdicar do poder?
Na quero ficar-me só por Angola. Quero falar da África de expressão portuguesa. O único país que tem estado mais ou menos à altura da expectativa é Cabo Verde. Teve vários presidentes, teve vários primeiros-ministros, vários partidos. Aos outros eu digo: tomem Cabo Verde como exemplo. E ponto final.

Mas Angola é uma democracia?
O que aconteceu ontem é exatamente o que está a acontecer hoje. Igual. Não há diferença nenhuma. O indivíduo que é espancado, que foi espancado ontem e é espancado hoje, é igual. O terror é igual. Há que ter muita atenção. Sabes, essa coisa de conservar o status, isso é complicado. As coisas transformam-se, mente-se, há conveniências, jogadas, cambalachos, e isso é muito prejudicial. A gente está a viver uma fase muito complicada com esta teimosia, esta insistência de uma certa diretriz política – que não resulta e não vai resultar, não tenhamos ilusões. Nós somos uns andarilhos para satisfazer determinados interesses. Isso não é apanágio de uma vida decente. E digo ao jovens: “Não pode ser assim, temos que abrir horizontes, falar, e principalmente defender aquilo que é possível defender.” É o povo que sofre as consequências dessas situações.

Kotas são os trapos. “A gente afasta a mágoa [do esquecimento] com um copo de cerveja!”

No final de 2014, o Estado francês [a menção honrosa foi entregue pelo Ministério da Cultura de França] distinguiu-o “Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras”. O que é que isso significou para si?
Oh, pá! Isso foi um grande, grande estímulo. Não contava nada com isso. Aliás, não estou à espera de coisa nenhuma. Mas quando vem, conforta. Tentaram desacreditar o Bonga várias vezes. E como dizem os angolanos: “desconseguiram”. E vão “desconseguindo” sempre. Por isso, este prémio veio a calhar. Os meus filhos reagiram mais do que eu: “Oh pai, o pai sabe o que é esse prémio aí? Cuidado que isso e um prémio importante. Se calhar até da direito a passaporte diplomata.” [Risos] Aquelas brincadeiras deles. Mas também recebi prémios na Argentina. Na Alemanha. Prémios importantes. Por incrível que pareça, dos “patrícios” [Angola], fico à espera que aconteça e os políticos não reagem. E isso é triste.

Mas também disse, então: “Vou receber um dos maiores prémios da Cultura pelo Governo francês. Portugal nunca me deu nada”. Isso magoa-o?
Não é bem uma mágoa. A gente afasta isso com um copo de cerveja. [Risos] O carinho das pessoas, tão grande, compensa isso, compensa a falta do que deveria ser feito e não foi. Em Angola, em Portugal, na lusofonia. Mas quantos como eu é que não sofreram disso? Muitos. Há gente caduca, sem nível, que tenta abafar este e aquele. É triste, tão pobre e tão triste, que nem vale a pena a gente falar disso.

É muito acarinhado? Ainda hoje? Na rua, nos concertos…
Uuuuui, ainda sou. Sou acarinhado na rua. E sou muito solicitado para fazer espetáculos. E telefonam-me de todo o lado, de Paris, da Alemanha. O meu público tem fome de Bonga. E estou aqui para os satisfazer enquanto me quiserem.

Bonga, hoje, rodeado dos sucessos de "ontem" (Créditos: Hugo Amaral/Observador)

Bonga, hoje, rodeado dos sucessos de “ontem” (Créditos: Hugo Amaral/Observador)

O Bonga tem 74 anos. O primeiro disco gravou-o em 1972 – mas está na música desde sempre. Escreveu mais de 300 canções. Toda a gente trauteia, ainda hoje, “Mariquinha” ou “Olhos molhados”. Gravou mais de 30 discos. Fez bandas-sonoras de filmes. O que é que ainda lhe falta fazer? O que é que ainda quer fazer?
Não sei. A partir daqui, já não sei. Talvez algum empresário — verdadeiro, isento, profissional — me proporcione um concerto em Luanda, ao ar livre, um grande espetáculo. O regime cria os seus artistas e eu não sou um deles. Mas também não tenho nenhum inimigo em Angola. Pode ser que alguém me diga: “‘Kota’ Bonga, queremos fazer um espetáculo consigo, como fazem as grandes vedetas do ‘musicol’, sem conotações políticas, sem invejas!” Estou à espera disso.

As décadas de 1980 e 1990 foram boas para o Bonga: vendeu muitos discos, deu muitos concertos pelo mundo. Mas não ficou rico com a música…
Nunca fiquei rico com a música porque não vivo sozinho com ela. [Risos] Alargo os meus horizontes. Tenho muita família, muitos amigos, músicos que me acompanham há anos. Não foi possível ficar rico.

Tem saudades do passado?
Não. Não sou saudosista. Mas gostava de voltar a colaborar com este ou aquele e, infelizmente, deixaram de existir. Sinto falta dessa convivência fraterna que deixou de existir e hoje em dia é demasiado calculada. Não posso abrir a porta de minha casa como abria anteriormente. Tenho que saber com quem é que me sento à mesa. E isso é triste. Não é esse futuro que quero deixar para os meus filhos. Se tenho saudades do passado, é só disso.

Sábado, dia 17 de setembro, vai tocar no Porto. No Coliseu. Vai ouvir-se muita música africana: Kimi Djabaté, Selma Uamusse. Mas a verdade é que o NOS em d’Bandada é um festival… para “miúdos”. Alguns nem eram nascidos quando o Bonga gravou o primeiro disco. Ou o segundo, o terceiro… Surpreendeu-o, o convite?
Não me surpreendeu o convite. Olha aí para a minha ficha: tenho muitas participações nos discos dos miúdos. Os miúdos estão aí em força. E chamam-me: “’Kota’, dá aí uma dica!” E eu estou aí para dar dicas. E às vezes até vou gravar com eles. Sou uma referência de peso, principalmente para os meus angolanos. Mas só os que não tem influência de políticos ciumentos e caducos. Olha só: cantei aquele fado com a Ana Moura, um fadinho tão bonito – mas que só cantei por iniciativa da França. Mas faço música com mais miúdos. A Pérola é uma miúda que está com músicas lindas. A Patrícia Faria é outra. Eu faço periodicamente música para eles, para dar continuidade ao semba. Isso é uma coisa que os “kotas” africanos sempre fizeram. E aí eles agradecem do fundo do coração. Sempre.

Eu também agradeço.
OK.