Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.
“The efficient secret of the English Constitution may be described as the close union, the nearly complete fusion, of the executive and legislative powers. The connecting link is the cabinet.” (Bagehot, 1865)
O imaginário da democracia representativa é povoado pela Câmara dos Comuns do Reino Unido. A tenacidade dos debates, a troca acesa de argumentos e as votações disputadas fizeram de Westminster um farol de liberdade. Nos últimos meses, contudo, o mundo tem assistido atónito a um aparente caos no funcionamento do parlamento britânico. Maiorias instáveis e cíclicas debatem-se continuadamente em tentativas goradas de gerar um consenso que consiga cumprir o mandato popular conferido pelo referendo de Junho de 2016. De adiamento em adiamento, parece estar-se num beco sem saída, pondo em causa a percepção de vitalidade do sistema britânico.
Para além da preponderância que o desfecho do Brexit terá para o futuro da União Europeia, este processo encerra outro motivo de interesse: o Brexit está a testar a resistência dos pilares da democracia representativa britânica. Num momento em que o espectro dos extremismos políticos paira sobre a Europa, as consequências desse teste não devem ser menosprezadas.
Com a saída de Theresa May, abre-se um novo ciclo político. A mais do que provável chegada de Boris Johnson a primeiro-ministro, uma das figuras-chave da campanha de 2016, que, contudo, rapidamente, saiu de cena, a elite britânica pode encenar uma nova negociação com a União Europeia. Todavia, os problemas fundamentais mantêm-se. Grosso modo, existe um continuum de posições sobre o Brexit, que vão desde o hard Brexit (sair da UE sem qualquer acordo, ficando as relações entre a UE e o Reino Unido regidas pelas regras gerais da Organização Mundial do Comércio) à realização de um novo referendo, com toda a informação que hoje os britânicos têm em cima da mesa. Pelo meio, existem ainda vários grupos que advogam por um soft Brexit, geralmente exemplificado pelas várias possíveis variações aos acordos que o Canadá ou a Noruega têm com a União Europeia.
Será possível gerar uma visão maioritária entre as múltiplas visões, todas elas minoritárias, sobre o caminho a seguir? Como sabemos, tal tem sido extremamente difícil. Até agora, não foi possível votar para retirar uma das opções mais extremas da mesa (por exemplo, recentemente o Parlamento chumbou uma moção do Partido Trabalhista para tornar impossível a saída do Reino Unido sem acordo). Um deputado que tenha como preferência ideal sair com um acordo minimalista (do tipo FTA-Canadá) poderá preferir um hard Brexit do que sair com um acordo maximalista (do tipo EEA-Noruega), uma vez que considera que o último retiraria demasiado poder de decisão ao seu país, mas também poderá preferir o oposto, se quiser acima de tudo evitar o caos de uma saída sem acordo. De forma semelhante, um deputado que prefira um acordo maximalista poderá preferir a realização de um segundo referendo à saída com um acordo insatisfatório, mas também poderá preferir o oposto, se considerar que a realização de um segundo referendo seria uma enorme desvalorização de uma decisão democrática. Desta forma, e realizando-se as votações uma a uma, sequencialmente, e num formato sim-não a cada proposta, não foi possível eliminar à partida nenhuma das opções mais extremas. A acrescentar a isto, a possibilidade real destas opções mais extremas virem a acontecer também aumenta o poder negocial de várias facções, o que leva a que nenhuma maioria as queira retirar das discussões parlamentares. Como poderemos sair deste impasse?
Não parecem existir muitas soluções: ultimamente, parece que o Reino Unido está confrontado entre a saída já negociada por Theresa May ou um hard Brexit. No entanto, os novos actores, ajudados pelo cansaço visível que o tema provocou na população, e pelas crescentes divisões internas no país, poderão estar dispostos a arcar com os custos da segunda opção.
Como é que se chegou até aqui e quais os desafios que o próprio sistema britânico tem precisado enfrentar? Neste ensaio, pretendemos explicitar os fundamentos institucionais do parlamento britânico. Ao mesmo tempo, tentaremos demonstrar que a dificuldade fundamental do momento actual da política britânica prende-se com dois motivos. Por um lado, existe uma tensão entre a democracia directa e a democracia representativa – isto é, os deputados têm de tomar decisões com base em múltiplas exigências, as quais são contraditórias entre si. Por outro lado, os partidos políticos – enquanto instituições intermediárias que agregam preferências e simplificam o processo de tomada de decisões – estão com sérias dificuldades em transformar o mandato recebido num resultado que seja satisfatório para pelo menos metade do parlamento, gerando um bloqueio.
A origem: como chegámos aqui?
O processo de saída do Reino Unido da União Europeia tem na sua génese um pendor profundamente elitista. Apesar de ser apresentado como um exemplo acabado de populismo, o processo do Brexit é um movimento com origem nas lutas intestinas das elites políticas e sociais britânicas. Senão vejamos.
Em primeiro lugar, o processo de referendo teve origem numa tentativa vã de David Cameron em pôr termo a uma disputa intrapartidária sobre a posição do Reino Unido na União Europeia. De facto, desde a adesão ao projecto europeu que o Partido Conservador mantivera uma ala profundamente eurocéptica. Na sua ascensão à liderança do partido, em 2005, Cameron prometeu a realização de um referendo para manter a coesão dentro do partido, acomodando as pretensões dessa ala. Em 2010, a promessa do referendo constava já do programa eleitoral. Todavia, essa promessa eleitoral acabou por cair no contexto das negociações da coligação com os Liberal Democrats, partido com forte pendor europeísta.
Nas eleições seguintes, em 2015, Cameron encontrava-se sob imensa pressão interna dentro do partido para cumprir a promessa de referendo. Corre o rumor que Cameron verdadeiramente não esperava ter de cumprir a sua nova promessa, uma vez que contava necessitar de uma nova coligação com os Lib Dems, como em 2010. Inesperadamente, a 7 de Maio de 2015, os Conservadores ganharam as eleições legislativas com maioria absoluta – vitória que, paradoxalmente, ficou na origem da derrota de Cameron, na medida em que o forçou a satisfazer as reivindicações do seu partido e a lançar o referendo. A 20 de Fevereiro de 2016, Cameron anunciou a convocação do referendo à permanência do Reino Unido na União Europeia.
Em segundo lugar, o UKIP – partido eurocéptico e qualificado de populista – teve um papel relevante ao ameaçar eleitoralmente os Conservadores. Receosos da porosidade eleitoral à sua direita, os Conservadores tinham de agir, especialmente dada a votação que o UKIP lograva obter nas Eleições Europeias de 2014. Ajudado pelo sistema eleitoral proporcional utilizado nas Eleições Europeias no Reino Unido, o UKIP, tal como o Brexit Party há cerca de um mês, foi o partido mais votado em 2014, obtendo 27% dos votos.
Apesar de o referendo representar uma jogada arriscada, duas razões davam alento a Cameron. Por um lado, sabemos que em referendos o status quo tende a ser beneficiado, apesar de, no caso do Brexit, não existirem cláusulas de participação eleitoral mínima para tornar o referendo vinculativo. Por outro lado, sob a liderança de Cameron, o governo Conservador havia já vencido o referendo da independência da Escócia, em 2014. Curiosamente, um dos argumentos mais utilizados por Cameron e por outros agentes políticos ingleses para persuadir os escoceses a permanecerem no Reino Unido foi, precisamente, a pertença à União Europeia. Cameron tinha, pois, esperança em conseguir adormecer o assunto do eurocepticismo no Partido Conservador por uma ou duas gerações.
Esta pequena ilustração cronológica sobre o processo de convocação do referendo mostra-nos já as raízes do ‘caos’ reinante no parlamento britânico. A escolha de fazer um referendo foi, em parte, uma tentativa de resposta a uma clivagem fortíssima dentro do partido Conservador e a dificuldades de controlar os backbenchers mais eurocépticos. Ou seja, a origem do referendo tem muito maior ligação ao elitismo partidário entre os Conservadores do que ao populismo no Reino Unido. Como explicaremos em seguida, o caos pós-referendo decorre da dificuldade em conciliar o mandato popular do Brexit com o funcionamento eficiente tradicional do parlamento e do governo britânicos, alicerçados em partidos fortes e unívocos.
O problema: a tensão entre a democracia directa e a democracia representativa
Para compreendermos a tensão entre a democracia directa e a democracia representativa no caos no parlamento britânico importa olhar para dois pontos. Em primeiro lugar, 75% dos deputados da Câmara dos Comuns fizeram activamente campanha pela posição de permanecer na União Europeia. Mandatados pelo povo através de um mecanismo de democracia directa para fazerem precisamente o oposto, os deputados têm de responder a várias exigências contraditórias.
Façamos um exercício sobre o processo de negociação no Reino Unido ainda durante o mandato de Theresa May. Ponhamo-nos na pele do deputado fictício John Doe do Partido Conservador. Reunido com os seus assessores, o deputado tem de decidir se apoia o acordo da Primeira-Ministra Theresa May. Nessa decisão tem de ponderar vários pontos. O seu círculo eleitoral, do qual a sua reeleição depende, votou esmagadoramente contra o Brexit. Os seus eleitores directos, perante quem responde semanalmente ao fazer trabalho de círculo, querem ficar na União Europeia. Todavia, a liderança do seu partido pretende cumprir o mandato nacional e urge John Doe para apoiar o Brexit – o partido é uma instituição importante para o deputado, como veremos na próxima secção. Para complicar as coisas, o deputado tem ainda de considerar que, sendo eleito pela Escócia, que votou maioritariamente para ficar na União Europeia, existe uma contradição entre os desejos da sua nação e o sentido de voto geral do Reino Unido. Por último, o deputado tem ainda as suas preferências pessoais e a sua consciência.
Como tomar uma decisão? O deputado John Doe está perante a decisão política mais importante da sua vida. É muito difícil cristalizar num voto de sim ou não as múltiplas e contraditórias pressões que está a sofrer. O acordo sobre a saída do Reino Unido da União Europeu acontece a um nível demasiado macro para que o deputado possa negociar com o governo medidas que acomodem as necessidades específicas do seu círculo eleitoral. Nas próximas secções vamos olhar para as instituições políticas do Reino Unido para perceber como a decisão de John Doe é moldada e facilitada pelo ambiente onde se insere.
O sistema eleitoral
O comportamento dos deputados e as decisões que tomam são fortemente influenciados pela natureza do sistema eleitoral. O Reino Unido utiliza um sistema eleitoral maioritário, no qual cada círculo eleitoral elege apenas um único deputado. O candidato que obtiver uma maioria relativa de votos é eleito como representante daquele círculo eleitoral. Esta regra institucional promove uma fortíssima personalização da representação – todos os residentes de cada círculo eleitoral sabem quem é o seu representante político e é a ele que pedem contas.
Ao contrário de sistemas eleitorais de lista fechada, por exemplo, Portugal, no qual os eleitores votam apenas e só na sigla do partido, no Reino Unido a identidade pessoal do deputado têm um valor eleitoral intrínseco. Apesar de os deputados não poderem dispensar completamente os partidos, na medida em que estes são veículos de ascensão política para o Executivo e oferecem recursos financeiros e logísticos nas campanhas eleitorais, os custos inerentes à dissensão política são relativamente mais baixos. Para os deputados britânicos, o mais importante é terem o apoio do seu círculo eleitoral e, só secundariamente, do seu partido.
Este sistema eleitoral tem virtudes, mas é, porventura, o pior possível na actual conjuntura. Como vimos, os deputados têm de responder à tensão entre a democracia directa e a democracia representativa. Face ao sistema eleitoral existente, os deputados podem, assim, votar contra a linha oficial do seu partido na questão do Brexit, desde que continuem a ser apoiados pelos eleitores do seu círculo eleitoral, factor necessário para a sua reeleição. Ou seja, o sistema eleitoral explica, pelo menos parcialmente, o motivo pelo qual as lideranças partidárias têm muitas dificuldades em manter a unidade nas votações e, em última análise, o motivo pelo qual temos assistido em directo na televisão à demissão de deputados dos seus partidos. No caso britânico, ao contrário do caso português, os partidos não dispõem da arma fatal para obrigar os deputados a manter a disciplina: a ameaça de não inclusão nas listas eleitorais nas próximas eleições.
Muitos dirão que a componente de personalização do sistema político britânico é algo normativamente positivo, uma vez que conduz cada deputado a ter em consideração as prioridades dos seus eleitores. No entanto, é necessário considerarmos várias qualificações a esta asserção. Em primeiro lugar, existe uma tensão entre uma representação local e uma representação nacional – não é evidente que, em muitos assuntos (como o Brexit), seja “melhor” representar apenas a opinião maioritária do seu círculo eleitoral, não tendo em conta a opinião pública de todo o país ou medidas com potencial impacto nacional. Em segundo lugar, a existência de um único deputado por círculo apenas é conseguida à custa do sacrifício da representação de visões minoritárias, mas potencialmente importantes, de um determinado círculo eleitoral. Por exemplo, se um círculo eleitoral votou 52% a favor do Brexit e 48% contra o Brexit, eleger apenas um deputado por círculo e obriga-lo a seguir a visão da maioria do seu círculo (não existe tal obrigação no Reino Unido) implica que 48% da população do círculo não está a ser representada. A nível nacional este modus operandi pode criar graves falhas de representação política.
Finalmente, em terceiro lugar, surge a questão mais importante: por várias razões estruturais do sistema constitucional britânico, que analisaremos de seguida, os partidos políticos tornaram-se, desde o século XIX, os principais veículos de representação e de organização do parlamento e do governo. Isto é, apesar do sistema eleitoral, muitos eleitores votam num determinado candidato por este ser de um determinado partido e porque concordam, em termos agregados, com a plataforma política desse partido.
Os partidos e o “segredo eficiente” da Constituição britânica que o Brexit pôs em causa
No século XVIII, os partidos políticos eram apenas grupos legislativos de deputados que partilhavam ideias e objectivos. O sufrágio estava restrito a uma pequena elite. Os eleitores votavam em indivíduos, muitas vezes seus conhecidos, e não em partidos. Os direitos parlamentares de cada deputado da Câmara dos Comuns eram extensos. Qualquer deputado podia ter a palavra, sem qualquer limite ao tempo de debate, obstruindo, assim, uma proposta que fosse contra os seus interesses. Para além disso, não havia diferença hierárquica entre os deputados e os membros do governo. De facto, a única prerrogativa que estes últimos detinham consistia nas propostas de lei sobre novos impostos. Neste contexto, o parlamento predominava, sendo verdadeiramente independente do executivo, mas era extremamente difícil um governo passar um programa legislativo.
Para além disso, durante séculos, os círculos eleitorais britânicos não reflectiram as mudanças demográficas. Antes das reformas institucionais do século XIX, muitos círculos rurais correspondiam a grupos muito pequenos de população. Em 1831, por exemplo, o círculo de Dunwich elegia dois deputados, apesar de a maior parte do seu território estar submerso pelas águas do mar, que, entretanto, haviam inundado a pequena cidade. Dos 406 membros da Câmara dos Comuns em 1831, 152 foram eleitos por menos de 100 eleitores e 88 por menos de 50 pessoas. Ao mesmo tempo, círculos urbanos como Manchester, à época um dos centros industriais britânicos cuja área metropolitana tinha cerca de 700 mil habitantes, não tinha deputados próprios.
O First Reform Act de 1832 veio corrigir esta desproporcionalidade, redesenhando os círculos eleitorais. Esta mesma reforma promoveu a expansão gradual do sufrágio, iniciando a política de massas no Reino Unido. A expansão do sufrágio e a reconfiguração dos círculos trouxeram, no entanto, um problema que ninguém anteviu. Cada deputado passou a representar um número muito maior de eleitores (e interesses) e a enfrentar eleições mais competitivas, fazendo aumentar a procura por tempo no plenário e, para além disso, levou a uma necessidade crescente de apresentar propostas de lei (para satisfazer as várias necessidades dos eleitores do seu círculo).
Os extensos direitos individuais de cada deputado levaram ao caos no parlamento. Num ambiente com tempo limitado, todos queriam tomar a palavra, utilizando a nascente imprensa de massas para veicular as suas mensagens aos eleitores. Sem nenhuma instituição para organizar a agenda, todos os deputados pretendiam apresentar propostas de lei relativas ao seu círculo. A confusão era tal que, segundo consta, o governo esperava até às três da madrugada, quando muitos deputados já se tinham retirado para dormir, para poder passar as suas propostas de lei, sob pena do país parar. Durante uns tempos, o método de atribuição da palavra e de apresentação de propostas foi aleatório. Rapidamente, no entanto, se percebeu que se tinha tornado incomportável que todos os deputados pudessem apresentar, sem qualquer restrição, as suas próprias bills, ou pedir a palavra e obstruir sem restrições. Como escreveu o politólogo Gary W. Cox, autor da obra seminal sobre o tema na qual nos baseamos: “The Commons faced the tragedy of the commons”.
Inevitavelmente, procedeu-se a uma redução dos poderes individuais de cada membro do parlamento. O grande beneficiário das reformas legislativas foi o governo, que viu os seus poderes legislativos aumentar, uma vez que passou a ter um poder enorme e cada vez maior sobre a organização da agenda. Isto é, competia agora ao governo, que no Reino Unido tem assento parlamentar, decidir quais as propostas de lei a apresentar e qual a ordem da votação. Os deputados perderam o seu direito de iniciativa.
Com a fusão dos poderes legislativo e executivo, um lugar no governo passou a ser o grande objectivo de um deputado com ambições políticas nacionais. A mudança nas regras do jogo teve duas consequências fundamentais. Em primeiro lugar, conduziu ao alinhamento das votações em redor dos partidos, aumentando a coesão partidária. Os membros do parlamento perceberam que, para um dia se tornarem membros do executivo, tinham de subir dentro da estrutura partidária intraparlamentar, e, para tal, tinham de seguir as indicações de voto das suas lideranças partidárias, mesmo quando não estavam inteiramente de acordo – era como que um preço a pagar pela sua ambição de ter uma carreira no partido. Em segundo lugar, os cidadãos perceberam que a única maneira de conseguirem influenciar as políticas públicas de forma significativa era votando em partidos. Assim, surge e desenvolve-se o voto baseado no partido e não no indivíduo.
Desde então, a unidade partidária no parlamento britânico, principalmente no partido maioritário, tornou-se a regra e não a excepção. Como afirmou Bagehot em 1885, esse é o segredo do funcionamento eficiente do sistema político britânico: a quase completa fusão entre os poderes legislativo e executivo, através dos poderes do governo. Claro que a disciplina de voto não é absoluta. Alguns deputados sem ambições executivas futuras não estão tão constrangidos pela disciplina da liderança. Por outro lado, como vimos acima, as lideranças partidárias sabem que o sistema eleitoral impõe que os deputados individuais de cada partido tomem atenção aos desejos dos seus eleitores. Assim, ocasionalmente, as lideranças partidárias podem permitir a alguns deputados votar numa direcção oposta à do seu partido, até para fins tácticos – para sinalizar aos respectivos eleitores que têm as suas preferências em conta, especialmente quando o governo detém uma maioria parlamentar confortável. No entanto, esta permissão acontece com uma qualificação fundamental: as lideranças apenas autorizam um número suficiente de deputados a dissidir do partido, assegurando que os seus objectivos na votação não sejam postos em causa.
O Brexit veio romper com este funcionamento habitual do parlamento britânico e com o retrato que pintámos acima. No final de Março de 2019, antes das oito “votações indicativas” sobre a forma da saída do Reino Unido da União Europeia, os deputados votaram a favor de retirar o poder de definição da agenda ao governo, no que toca ao Brexit, e devolvê-lo ao parlamento. Como vimos, sem ninguém a organizar a agenda, as alternativas a voto somaram-se, as maiorias podem tornar-se cíclicas e fica difícil conseguir uma maioria estável a favor de alguma coisa. De qualquer forma, este é um precedente com potenciais consequências históricas.
Em suma, o Brexit teve um impacto muito forte na política representativa britânica porque veio romper com um parlamento dominado por partidos e pelo governo. A razão fundamental prende-se com o facto de a clivagem a favor e contra a saída do Reino Unido da União Europeia dividir os principais partidos e a sua unidade. Mais, o poder das lideranças partidárias para impor uma direcção enfraqueceu de forma extraordinária, dada a importância do tema, a tensão entre democracia representativa e democracia directa e as múltiplas exigências que cada deputado enfrenta.
O poder do Speaker
Ao longo dos últimos meses, o mundo assistiu entre o espanto e a surpresa aos debates parlamentares sobre o Brexit, em particular à condução dos trabalhos pelo Speaker (equivalente, em Portugal, a presidente da Assembleia da República). O poder de John Bercow – eleito Speaker em 2009 – pareceu inusitado. Importa sublinhar que, em Westminster, o Speaker é uma figura não partidária. Imediatamente após a sua eleição, o Speaker deve demitir-se do seu partido político, ao qual não poderá regressar nunca mais, mesmo após cessar funções à frente da Câmara. Para além disso, para garantir a total imparcialidade do Speaker, tradicionalmente, os partidos políticos não apresentam candidatos no círculo eleitoral do Speaker, garantindo, assim, que este consegue ser reeleito sem necessidade de combater politicamente os seus adversários.
Os poderes do Speaker são vastos, especialmente na capacidade em moldar a agenda. Em qualquer órgão colectivo, este poder é fundamental, na medida em que tem a capacidade de constranger as opções disponíveis. Imaginemos que, num restaurante, pretendemos escolher entre comer carne ou peixe. Se as duas opções forem apresentadas, temos o poder real de escolher. Contudo, se houver alguém que, antes de nos sentarmos no restaurante para escolher, tenha o poder de retirar a carne do menu, seremos obrigados a comer peixe e não teremos uma verdadeira escolha. No caso britânico, o Speaker tem o poder de seleccionar as propostas que são apresentadas a votação. Naturalmente, existem negociações com a bancada do governo e da oposição com vista a acomodar as propostas que serão debatidas no parlamento. No entanto, como vimos recentemente, John Bercow moldou o debate do Brexit ao não permitir que, após ter sido derrotado duas vezes, o acordo de Theresa May fosse votado uma terceira vez sem sofrer alterações substanciais.
Para além do seu poder nas votações, o Speaker tem um poder fundamental no acesso dos deputados Britânicos à palavra em plenário. Cada deputado tem o direito de expressar o seu interesse em tomar a palavra, decisão que cabe ao Speaker administrar – no jargão parlamentar britânico, ‘catching the Speaker’s eye’.
Para guiar os leitores na compreensão do debate no Reino Unido, permitam-nos usar como ponto de comparação o caso português, na medida em que é diametralmente oposto. Em Portugal, os partidos políticos são os detentores do tempo disponível para falar em plenário. Isto é, dependendo do tamanho do grupo parlamentar, cada partido tem um número pré-definido de minutos para falar. Assim, a decisão sobre quem toma a palavra é feita internamente pelo partido. Na medida em que as eleições são estruturadas pelas siglas partidárias, os partidos têm de manter a coesão e um discurso coerente no plenário. Ou seja, não podem arriscar que um membro individual faça um discurso que vá contra a linha oficial do partido.
Pelo contrário, no Reino Unido, nos últimos tempos, como já referimos, o poder de cada partido reduziu. Os deputados são agora muito mais livres de tomarem acções no Parlamento que vão de encontro às suas preferências pessoais ou às do seu círculo, independentemente do que as lideranças partidárias digam. Assim, as novas regras de acesso ao plenário no Reino Unido (para já apenas aplicáveis ao assunto “Brexit”) fazem com que os partidos tenham muito pouco controlo sobre quem fala. Deste modo, os deputados usam a sua prerrogativa de convencer o Speaker de os deixar tomar a palavra de modo a abordarem temas e matérias que sejam de relevância para o seu círculo eleitoral ou para si.
À laia de conclusão
Num livro recente, Daniel Ziblatt e Steve Levitsky discutem várias condições para o fortalecimento e florescimento dos regimes democráticos. Os autores sublinham a necessidade de existência de ‘institutional forbearance’, isto é, um conjunto de normas, regras e convenções não escritas que toda a elite política concorda serem necessárias para o funcionamento saudável da democracia. No fundo, a ideia de que existem consensos alargados partilhados pelos partidos políticos, que concordam com os fundamentos centrais da democracia representativa. De acordo com Ziblatt e Levitsky é do interesse de todos os partidos políticos que tais convenções tácitas existam. No longo prazo, quem está na oposição irá estar no governo, e vice-versa. Não pode valer tudo: tal não é do interesse de ninguém. No caso do Brexit, no entanto, a importância central do tema e a sua saliência enfraqueceu esse compromisso de longo prazo, tácito e alargado. E existe agora a clara necessidade de ser feita uma convergência por parte das elites partidárias, confluindo para um equilíbrio que seja aceitável para todas as partes.
Há momentos de bloqueio em que as negociações à porta fechada são a melhor solução. Theresa May errou no início do processo do Brexit ao não formar um comité com as lideranças dos outros partidos políticos, no qual as cúpulas dos partidos pudessem negociar e gerar consensos. Apesar de todos os seus erros, é justo reconhecer que o mandato de Theresa May foi minado internamente por facções dos Conservadores. Essas mesmas facções terão, agora, o ónus das condições de saída e da situação pós-Brexit do Reino Unido. Apesar da retórica do mais que provável novo Primeiro-Ministro – Boris Johnson – acerca da sua disposição de forçar um Brexit sem acordo, se subir à liderança do partido e do país este terá de pesar muitas facções e grupos que não aceitam tal resultado, independentemente das suas posições pessoais. Os próximos meses ditarão se novos actores no mesmo contexto, e com as mesmas regras, conseguirão fazer diferente.
Jorge M. Fernandes é doutorado em Ciência Política pelo Instituto Universitário Europeu de Florença, e é investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Mafalda Pratas Fernandes é doutoranda em Ciência Política na Universidade de Harvard.