Alexandre tem poucas memórias do dia em que entrou em estado de burnout. “Quando cheguei ao escritório, comecei a trabalhar e, a dada altura, alguém passou-me um trabalho e eu fiquei a olhar para o ecrã. Não me lembro de muito mais. Uma colega começou a abanar-me e eu sentia, mas não conseguia fazer nada. Outro colega perguntou-me se estava bem e eu respondi que não, mas não conseguia desviar a cara do computador”, conta o designer ao Observador.
O episódio deu-se há cerca de quatro anos e os primeiros sinais de que algo não estava bem começaram logo nessa manhã. “Acordei e doía-me imenso a cabeça. Tinha feito duas diretas e pensei que ia trabalhar normalmente, mas depois voltava para casa e ia dormir — não ia pegar nos projetos de freelancer. No comboio [a caminho de trabalho], mal me sentei adormeci e só acordei no Cais do Sodré, e isso não costumava acontecer.”
A quebra deu-se já perto da hora de almoço. “A partir da cena do ecrã, só tenho fragmentos. O meu colega levou-me para a farmácia e eu estava com tensão alta. De repente, do nada, aparece a minha mãe — tinham-lhe ligado porque não sabiam o que fazer e ela foi-me buscar — e lembro-me de entrar no carro dela. Isto aconteceu por volta do meio-dia e eu só acordei às nove da noite na cama dela com a minha namorada, que tinha ido lá ter e depois me levou para casa. Ainda pensou em levar-me ao hospital, mas a minha mãe achou que não valia a pena. Cheguei a casa, voltei a dormir e, quando acordei no dia seguinte, ainda estava pior: tinha uma dor de cabeça que nem consigo explicar”.
Foi nessa altura que a namorada o levou às urgências. “Vou ao hospital, passo pela triagem e depois só tenho memórias em fragmentos. Deram-me uma pastilha para baixar a tensão e lembro-me de fazer uns exames porque tive de tirar os piercings. A dada altura, estava no consultório do médico e ele perguntou: ‘Quantos dedos vê?’. E eu respondi: ‘Dois, não estou maluco’. A o que ele diz: ‘Não, mas podia estar’. Foi nesse momento que caí em mim.”
Deste episódio resultaram três meses de baixa e a consciência de que teria de fazer uma mudança na sua vida. “Tentei ir trabalhar ao fim de um mês. Estive lá um dia, senti logo uma pressão enorme e senti que não estava pronto para lidar com aquilo e que se voltasse àquele ritmo não iria aguentar. Foi um bom choque.”
“O burnout é um esgotamento físico e mental que está ligado ao exercício da profissão em condições físicas, emocionais, cognitivas e comportamentais desgastantes e acima da capacidade da pessoa lidar com elas”, explica a psiquiatra Maria Antónia Frasquilho ao Observador.
A especialista sublinha ainda a ligação entre o burnout, o stress e os riscos psicossociais, que surgem de “deficiências na conceção, organização e gestão do trabalho, bem como de um contexto social de trabalho problemático”, lê-se no site da Agência Europeia para a Segurança e Saúde no Trabalho. O excesso de carga de trabalho, exigências contraditórias, uma má gestão de mudanças organizacionais, falta de apoio da parte de chefias e colegas e assédio psicológico ou sexual são alguns exemplos destes riscos. Esta terça-feira, assinala-se o Dia Mundial da Saúde Mental, que tem como tema a saúde mental no trabalho.
“Visualize o burnout — esgotamento por exaustão — como o poço onde caem as vítimas dos riscos psicossociais no trabalho e do grave stresse crónico”, refere Maria António Frasquilho no editorial da revista “Factores de Risco“, de julho/setembro de 2015, dedicada ao burnout.
O termo surgiu nos anos 70 pela mão do médico norte-americano Herbert Freudenberger, associado a profissões em que é necessário lidar com pessoas, como por exemplo médicos, enfermeiros, professores, polícias e bombeiros. Atualmente, contudo, generalizou-se a todas as profissões.
Segundo dados da Associação Portuguesa de Psicologia da Saúde Ocupacional, 13,7% das pessoas ativas em Portugal estavam em estado de burnout em 2016. No mesmo ano, 82% estavam em risco elevado de entrar em estado burnout, 11% em risco moderado e 3% em risco médio.
Um estudo nacional sobre o “Burnout na classe médica”, divulgado no final do ano passado, revelou que dois terços dos médicos portugueses estão em elevado nível de exaustão emocional, uma das dimensões da síndrome de burnout. Um outro estudo da Universidade do Minho constatou ainda que um quinto dos enfermeiros tem sintomas de exaustão física e emocional.
A nível europeu, dos 31 países que participaram num inquérito de opinião sobre segurança e saúde ocupacional, da Agência Europeia para a Segurança e Saúde no Trabalho em maio de 2013, Portugal era o terceiro país com maior percentagem de trabalhadores a referir que o stress relacionado com a atividade profissional é muito comum (28%).
Burnout: da paixão ao desespero
O burnout tem três dimensões, refere o psicólogo David Pires Barreira. A exaustão emocional, em que há uma falta de energia e um sentimento de exaustão a nível emocional, em que a pessoa sente que esgotou todos os “recursos disponíveis para lidar com situações do dia a dia” e sente uma “incapacidade de envolvimento nas situações”.
Há ainda a perda de autorrealização, em que se tem “sentimentos de fracasso” e em que o trabalhador faz uma “avaliação negativa e exagerada” relativamente ao seu trabalho. Por último, o cinismo, em que se verifica um “distanciamento cognitivo” face aos outros, nomeadamente indiferença e frieza, e até “atitudes negativas” como responder mal.
Não existe, contudo, uma única visão sobre o que é o burnout. Há especialistas que acreditam não ser necessário ter estas três dimensões para considerar que uma pessoa está em burnout. Outros defendem que “para existir burnout têm de se cumprir três condições de forma conjugada: elevada exaustão, elevado cinismo e baixa realização”, tal como se lê no Relatório de Avaliação de Perfil de Riscos Psicossociais.
O psicólogo e diretor da Clínica ISPA, Daniel Sousa, defende que “o importante é as pessoas perceberem que se trata de uma perturbação psicológica que tem impactos a nível físico e psicológico”.
“Há uma característica que tem de existir para ser considerado burnout: a dedicação exagerada à profissão. É algo que surge a partir do encantamento, do estado de paixão pela profissão e em que a pessoa tem o desejo de ser o melhor e mostrar alto desempenho”, acrescenta Maria Antónia Frasquilho.
Além desta “paixão desenfreada”, o “modo como a pessoa se relaciona com o trabalho” e as condições de trabalho podem causar um estado de burnout. “As condições de trabalho estão longe de ser as ideais. Exigem muitas vezes que os profissionais sejam de ferro, não lhes dão ferramentas de trabalho e sujeitam os profissionais a riscos psicossociais que não deviam existir”, sublinha a psiquiatra.
“Por vezes não é o excesso de trabalho, é o controlo sobre as decisões.”, sugere o psiquiatra Jorge Câmara ao Observador. “É a pessoa não se sentir respeitada, achar que não tem mão na sua vida profissional, que salta de tarefa em tarefa sem ter controlo sobre isso. Sente-se um bode expiatório”.
Pessoas com “personalidades mais frágeis”, “mais narcísicas”, “muito presas à performance individual” e até “mais perfeccionistas” estão mais propensas a um burnout, acrescentam Jorge Câmara.
Alexandre assume ser um perfeccionista e uma pessoa que não gosta de “despachar trabalho”. Este tipo de personalidade, aliado ao excesso de trabalho a que se sujeitou durante cerca de 10 meses — além de ter abraçado vários projetos enquanto freelancer porque a namorada estava desempregada, passou de um departamento com quatro funcionários para ser a única pessoa –, ajudou a que entrasse em estado de burnout. “Stressava imenso porque levava tudo demasiado a peito. Era uma enorme pressão e eu colocava a mim próprio uma enorme exigência.”
João acredita que a sua personalidade mais “ansiosa” e “neurótica” teve um papel fulcral no burnout. Ainda assim, não tem dúvidas de que “o ambiente de trabalho completamente insalubre” que encontrou na clínica veterinária onde começou a trabalhar, dois meses antes do esgotamento, fez toda a diferença. “Sentia que a minha carreira não estava a progredir e mudei de trabalho para evoluir. Quando cheguei, deparei-me com a situação que despoletou a minha espiral depressiva”, diz o médico veterinário ao Observador.
O problema começou logo com os horários. O trabalho na clínica era assegurado por turnos, mas eram definidos apenas de semana para semana. “Não conseguíamos planear a nossa vida com mais de uma semana de antecedência. Tive dias em que trabalhava das 15h à meia-noite e no dia seguinte estava a entrar às oito da manhã“, recorda o médico veterinário ao Observador.
Para complicar ainda mais a situação, a relação com as chefias não era boa. Por várias vezes, conta o veterinário, foi-lhe pedido para “pôr um colega em xeque” perante os clientes: “Vivíamos entre a espada e a parede. Tínhamos de lidar com os donos dos animais, com os próprios animais e não podíamos contar com as chefias. Sabíamos que podíamos errar, mas, se isso acontecesse, não iríamos ser protegidos.”
A única coisa positiva, acrescenta, era o ambiente de entreajuda com os colegas, mas isso não foi suficiente para aguentar toda a situação. Além da relação complicada com as chefias e os turnos, o trabalho de João implicava diariamente um exigente envolvimento emocional. “Um bom médico ou veterinário que não tenha nenhum envolvimento emocional com o que faz não é um bom profissional. Estamos a lidar com a vida e com a saúde de um ser vivo. Além de que, em medicina veterinária, temos de lidar com as expectativas de seres humanos que dão muito valor àquele ser vivo. Tornou-se muito complicado gerir isto tudo.”
O desgaste emocional, a má relação com os seus superiores e os horários complexos de trabalho tornaram-se demasiado. O veterinário estava constantemente ansioso, começou a sentir-se um “mau profissional, que só fazia um mau trabalho”, estava a dormir e a comer cada vez menos e tinha “flutuações de humor brutais”.
Além de que começou a encarar certos casos que lhe passavam pela mão com indiferença. “Já os encarava como se fossem mais um. Sentia-me uma máquina a fazer um trabalho que eu sabia que não era o melhor que podia fazer. E depois chegava a casa e batia com a cabeça nas paredes. Só pensava: ‘Como é que pude não sentir nada?’“.
Acabou por marcar uma consulta de urgência com a psicóloga, que lhe disse que estava em burnout. João esteve de baixa cerca de dois meses e a ser medicado com anti-depressivos. “Duas semanas depois dessa consulta, a psicóloga disse-me que se eu tivesse tido ideação suicida ou se tivesse perdido as rotinas de higiene pessoal, ela tinha-me internado compulsivamente. Foi muito grave e eu só percebi o quão grave foi pelo tempo que demorei a recuperar.”
Sintomas: saiba quais são os sinais de alerta
A verdade é que tanto João como Alexandre apresentavam sintomas clássicos de burnout. Fadiga, dores de cabeça, tensão arterial alta, problemas metabólicos, problemas a nível da tiroide, alterações no padrão do sono e no padrão alimentar (dormir demais ou de menos), e irritabilidade são alguns dos sintomas físicos de um burnout. Mas também podem ser psicológicos, ou seja, uma pessoa ter um humor depressivo, estar mais isolada e mais triste, e ter ansiedade.
E há ainda os sintomas comportamentais, que vão desde alterações do desempenho profissional a problemas com os colegas e/ou chefias (ou reagir excessivamente a qualquer coisa ou isolar-se completamente), chegar atrasado ao emprego, entrar em depressão, abusar de substâncias, pôr baixa e até tentar o suicídio.
Além da dor de cabeça e da tensão arterial alta, Alexandre dormia muito poucas horas por dia, andava extremamente ansioso — “fumava dois maços de tabaco por dia” –, sentia uma maior irritabilidade, emocionava-se com facilidade e até teve uma tromboflebite, uma inflamação de um vaso provocado por um coágulo.
“A tromboflebite também foi um sintoma. Andava a dormir uma média de 10 horas por semana e, mesmo que quisesse dormir mais, havia dias em que acordava naturalmente ao fim de três horas”, recorda. “Houve também uma coisa que começou a acontecer muitas vezes: estava tranquilo a trabalhar e do nada começava a ouvir tudo muito alto e as coisas a mexerem-se muito rapidamente. Só acalmava quando agarrava na guitarra e me concentrava naquilo”.
O burnout não é fácil de identificar — a Organização Mundial de Saúde classifica-o como um problema ligado à dificuldade em gerir a vida e não como uma doença — e muitas vezes é confundido com uma depressão.
“O diagnóstico é feito posteriormente e sob a forma de outro tipo de doença”, realça o psicólogo David Pires Barreiras, acrescentando que, muitas vezes, as pessoas chegam aos consultórios dos psicólogos e/ou psiquiatras com uma uma depressão, por exemplo, que posteriormente chega-se à conclusão que teve início num burnout.
Foi precisamente isso que aconteceu com Inês. A psiquiatra a quem recorreu por estar com uma depressão, ao ouvir a descrição do que se tinha passado dois anos antes, disse-lhe que se tratava “claramente de um caso de burnout“.
A jovem, atualmente com cerca de 30 anos, trabalhava como jornalista quando teve o esgotamento. “Eu era muito apaixonada pelo que fazia. Durante o estágio, fui sempre respondendo muito bem ao que me era pedido e foram-me sendo pedidas cada vez mais coisas. E não me queixava propriamente, afinal estava em início de carreira”, conta Inês ao Observador.
Além do exigente estágio profissional, Inês estava envolvida em diversos projetos que a levavam a trabalhar em casa até de madrugada. “Entrava no trabalho entre as 9h30 e as 10h30 e estava lá até às 19h30/20h. Saía, jantava e continuava a trabalhar. Fazia várias coisas ao mesmo tempo, mas era isso que alimentava. A certa altura, impus a mim mesma as 2h da manhã como limite.”
Entre estar a terminar a faculdade, os vários projetos e depois começar o estágio, Inês esteve quase três anos sem férias. Passou o verão em que estava a fazer o estágio, há cerca de seis anos, a trabalhar intensamente. “Nem sequer tinha forças para ir à praia com os meus amigos. Os fins-de-semana eram passados a dormir e a ver emails”.
Quando o estágio terminou, em janeiro, aquilo que lhe foi apresentado ficava muito aquém das suas expectativas. “Estava à espera de qualquer coisa que soasse a promoção e é-me apresentado uma redução de ordenado e uma espécie de recibos verdes. Senti que me deixaram um pouco de lado e pedi logo para falar com alguém da administração porque estava à espera de algum reconhecimento do meu trabalho, mas a resposta foi sempre ‘depois falamos’. Houve uma enorme quebra de motivação, mas continuei a trabalhar.”
Inês começou a trabalhar a recibos verdes, mas rapidamente surgiram os primeiros sinais de que algo não estava bem. Prova disso foi a viagem de quatro dias que tinha marcada com os amigos e à qual acabou por não ir.”Na véspera, estava a chegar a casa e senti-me completamente exausta. No próprio dia mandei uma mensagem a dizer que não ia e eles ficaram um bocadinho aborrecidos comigo. Durante esses quatro dias só me lembro de dormir e tratar de algumas coisas, mas não tenho grande memória desses dias.”
Um mês depois, a situação foi mais complicada: desta vez, Inês nem sequer se conseguiu levantar da cama. “Era um domingo e a minha família ia toda almoçar e eu estava tão exausta que nem sequer me consegui levantar da cama. Quando a minha família regressou ao final da tarde, eu estava no mesmo lugar. Estava completamente paralisada e a ideia de me levantar da cama era assustadora. Era uma exaustão profunda.”
O pai quis que Inês dissesse à empresa que estava doente e que não poderia ir trabalhar naquela semana. Em vez disso, a jornalista acabou por ficar a trabalhar a partir de casa, mas nem assim conseguiu fazer o que quer que fosse. “Nessa semana percebi mesmo que as coisas não estavam bem porque caía um email e eu desatava a chorar porque tinha de ler o email. Não fiz nada durante a semana, o meu cérebro parecia confuso.”
Foi então que decidiu despedir-se. “Foi um bocadinho drástico: não expliquei os motivos, disse apenas que não me sentia motivada. Tentaram fazer-me mudar de ideias e, pela primeira vez, vi a administração a fazer um esforço, mas já era tarde. Ainda tive de dar um mês à casa. Foi violento, mas aí já comecei a dizer que não.” Quando finalmente saiu, passou “um a dois meses a dormir”. “Não tenho grandes memórias desse tempo. As únicas memórias que tenho é de dormir.”
Nos dois anos que se seguiram, Inês começou a fazer trabalhos como freelancer, mas não se sentia preenchida. O facto de achar que “não estava a atingir os objetivos” a que se tinha proposto e que “não estava a fazer carreira” levou-a a ficar com uma depressão.
Agora, olhando para trás, Inês considera que o grande erro que cometeu foi não ter recorrido a um especialista que lhe teria dito que estava em burnout e lhe teria dado “ferramentas” para lidar com a situação. Se o tivesse feito, quem sabe, não se teria despedido.
Estratégias individuais, sociais e organizacionais para evitar burnouts
Recorrer a especialistas, como psicólogos e psiquiatras, pode ser uma solução para evitar chegar ao estado de burnout, mas há mais coisas que se podem fazer. O psicólogo David Pires Barreira sublinha três níveis de “estratégias de intervenção”: individual, social e organizacional.
A nível individual, além de consultar um especialista, a pessoa pode tentar identificar o que lhe está a provocar stress e “arranjar estratégias para modificar o modo como se lida com o problema para que isso incomode o mínimo possível”. Encontrar “técnicas de gestão de tempo”, fazer “treinos de gestão de stress” e ainda “traçar objetivos exequíveis” para que a pessoa “se sinta satisfeita consigo própria” são outras hipóteses.
“Fomentar as relações interpessoais”, “fortalecer os vínculos entre os grupos de trabalho”, nomeadamente com as chefias, “facilitar a formação e informação dentro das equipas” são algumas das estratégias a nível social propostas pelo psicólogo.
Em termos da organização, é importante que as pessoas tenham boas condições físicas para desenvolverem o seu trabalho (cadeiras confortáveis, um local para almoçarem, não terem nem demasiado frio ou demasiado calor, por exemplo). É também importante “potenciar a comunicação” entre os vários elementos da empresa, “esclarecer o papel de cada pessoa na sua função”, criar um “sistema de recompensa” — desde palavras de reconhecimento pelo trabalho realizado até a uma promoção a nível financeiro –, “desenvolver programas de prevenção” dentro da organização “sobre o que é o burnout ou como lidar com pessoas difíceis” em contexto laboral.
“Isto sem contar com uma boa alimentação, cerca de oito horas de sono noturno, exercício físico e fomentar as relação sociais fora do trabalho. É importante que haja um equilíbrio entre a vida profissional e a vida pessoal“, sublinha David Pires Barreira.
“As empresas portuguesas estão a falar nesta questão, mas não estão a intervir”
A palavra burnout já entrou no vocabulário dos portugueses, mas será se está a assistir a um aumento do número de casos ou simplesmente as pessoas começaram a ter mais consciência do que é o burnout? Para a psiquiatra Maria Antónia Frasquilho, trata-se de um “problema emergente” não só porque há mais casos, mas também porque as pessoas estão mais sensíveis a esta questão.
“Em Portugal, temos a cultura de criar doenças. Ninguém presta atenção à primeira fase do burnout — a fase da paixão pela profissão — porque ela é bem vista. É um desrespeito pelas pessoas, que têm necessidade de comer, sair com os amigos, descansar, viver. Parte-se do princípio de que as pessoas não têm estas necessidades, que são máquinas que vivem para o trabalho e isso é erradíssimo”, afirma a especialista.
Maria Antónia Frasquilho defende ainda que é necessário “reinterpretar os valores do que é ser trabalhador e do que é ser cidadão”. “Se não, vamos continuar a ter pessoas com burnout e a gastar dinheiro com baixas e doenças. Nós não precisamos de mais tempo de trabalho, precisamos de melhor trabalho“, acrescenta a psiquiatra.
O psiquiatra Jorge Câmara lança outra sugestão: alterar a forma como avaliam os funcionários. O especialista defende que devia ser feita uma “avaliação qualitativa e não quantitativa”. “As empresas têm de pensar em tipos de avaliação diferentes, baseados antes nos objetivos comuns da empresa. Em vez de estar focada na performance individual, com critérios definidos por números, devia privilegiar a forma como aquele funcionário contribuiu para a empresa na sua globalidade.”
“Os sistemas de avaliação de desempenho são uma das coisas mais importantes: recompensar alguém, fazer com que a pessoa sinta que o trabalho que realizou foi visto de uma forma positiva”, acrescenta o psicólogo José Magalhães.
Vários especialistas sublinham a importância de as empresas fazerem uma avaliação psicológica dos seus funcionários, mas só isso não é suficiente. “Há três pilares essenciais relativamente aos riscos psicossociais nas empresas: avaliar, prevenir e intervir. Ou seja, perceber como estão as pessoas, pôr em prática programas de intervenção para informar as pessoas e intervir nos casos em que é necessário intervir“, afirma Daniel Sousa, diretor e psicólogo da Clínica ISPA, ao Observador.
“As empresas devem abrir-se ao exterior para haver sinergias com empresas de consultoria externa para apoiar os trabalhadores e as empresas na gestão dos riscos psicossociais. Esta consultoria externa pode diagnosticar o problema, dar ferramentas e apresentar um programa de redução de riscos”, refere ainda Maria Antónia Frasquilho.
Para o presidente da direção da Associação Portuguesa de Psicologia da Saúde Ocupacional, mais do que avaliar, é essencial intervir perante essas avaliações. “As empresas portuguesas estão a falar nesta questão, mas não estão a intervir. Há mais de dez anos que falamos em números e mesmo sabendo o que se deve ou pode fazer, tal não se está a fazer para os reduzir”, afirma João Paulo Pereira, ao Observador.
“É importante que haja boas e continuadas campanhas de informação e sensibilização”, acrescenta o psicólogo José Magalhães.
E os custos de as empresas investirem em programas de prevenção serão mais baixos do que ter um trabalhador de baixa ou a produzir pouco, garantem os especialistas. “O grande desafio hoje em Portugal é as empresas perceberem que o investimento nesta área é benéfico. Os custos ao implementar programas de prevenção de riscos são benéficos porque terão colaboradores em melhores condições para trabalhar”, defende Daniel Sousa.
“Cada trabalhador doente tem gastos para a empresa: tem perdas porque o trabalho não é bem feito, há perdas no que toca à imagem da empresas e poderá ter de recrutar pessoas novas. Cada euro investido na prevenção e e promoção da saúde mental tem potencial de reverter entre quatro a 13 euros em saúde, produtividade e eficiência”, acrescenta Maria Antónia Frasquilho.
“Não há nenhuma organização que queira reduzir os seus lucros e ter pessoas constantemente a entrar e a sair das empresas, isso tem um custo”, afirma o presidente da Associação Portuguesa de Psicologia da Saúde Ocupacional, destacando o facto de os “riscos psicossociais trazerem perdas acrescidas ao erário público”. “Por esta dupla influência negativa, pessoas e organizações, acaba por ser uma questão de saúde pública.”
Ainda assim, João Paulo Pereira destaca ainda o facto de haver uma “co-responsabilidade” por parte do trabalhador. “Os trabalhadores acabam por ser permissivos para manterem o posto de trabalho. Alimenta-se este medo e qualquer dia estamos numa situação limite“.
Tanto Alexandre, como Sofia e João mudaram as suas vidas depois do burnout. Alexandre passou a dedicar-se exclusivamente ao trabalho de freelancer e à pintura.”Ainda fui para outra empresa, onde era suposto ter uma equipa, mas acabei por fazer tudo sozinho e comecei a sentir algumas coisas familiares. Eram diretas atrás de diretas, horas e horas na empresa e, nessa altura, a minha sogra foi diagnosticada com um cancro e fez-me pensar se queria viver a vida assim. Despedi-me e há três anos que estou só como freelancer e dediquei-me à pintura, da qual fugia há anos. Tenho 60% da ansiedade que tinha antes e já imponho limites. Consegui lidar com isto e assumir o problema que tive. Era uma dependência do trabalho”, conta o designer.
Sofia deixou o jornalismo e trabalha na área de marketing em Nova Iorque, nos Estados Unidos. “Tratei a minha depressão com cuidado e a minha psiquiatra deu-me ferramentas para hoje ter outro cuidado a gerir a minha vida. A minha vida já não é só trabalho, agora tenho tempo para mim, para a minha família e amigos. Os fins de semana são sagrados, durmo cerca de oito horas por noite.”
Também João saiu do país. Decidiu ir procurar trabalho no Reino Unido, depois de a clínica ter denunciado o seu contrato enquanto estava de baixa. E não se arrepende da mudança: “Quando falei dos meus problemas à minha equipa no Reino Unido, eles disseram que a maior parte já tinha sentido o mesmo e que me iam ajudar a procurar ajuda. A clínica onde estou agora faz parte de um grupo com várias clínicas pelo mundo e um grupo de apoio para problemas psicológicos dos funcionários. Há um grande estigma no que toca à saúde mental em Portugal e saber que há apoio, saber que há compreensão, torna as coisas infinitamente mais fáceis.”
*Os nomes de Alexandre, Sofia e João são fictícios, para proteger a sua identidade.