Há deputados que entraram no Parlamento quando se via a preto e branco na RTP “O Passeio dos alegres” de Júlio Isidro. Nessa altura, Robert de Niro estava prestes a ganhar o Oscar de melhor ator com “Touro enraivecido” e Cristiano Ronaldo ainda nem sequer era nascido. Agora, dizem finalmente adeus a São Bento. Deputados históricos, como o centrista Ribeiro e Castro (entrou em 1976), os sociais-democratas Mota Amaral (1976), Hugo Velosa (1995) e Guilherme Silva (1987) ou o bloquista e fundador do partido Luís Fazenda (1999) preparam-se para “pendurar as botas” e abandonar os relvados da política portuguesa. Feito o balanço, o que fica? Sentimento de dever cumprido, claro, saudades, algumas, mas também críticas a um sistema que continua demasiado preso aos aparelhos partidários. “Esqueço tudo que é mau e recordo apenas as coisas boas”, desabafa um deles.
“Um dia acordamos e sentimos falta do stress, do debate e da troca de opiniões”
Anda nisto de ser deputado desde 1991. Largou o Parlamento para ser ministro nos Governos de Cavaco Silva e, depois, para se dedicar à vida profissional. Voltou a São Bento em 2009, depois de um hiato de quase 14 anos. Hoje, aos 66 anos, Couto dos Santos, deputado do PSD, deixa a vida de parlamentar sem intenções de voltar a vestir o fato de deputado. “A política vai ser sempre um bichinho”, mas a sua arena da intervenção passará a ser outra.
O deputado eleito pelo círculo eleitoral de Aveiro sai reconciliado com o sistema político-partidário português, embora defenda que a revisão do regimento da Assembleia. É preciso “reforçar o papel das comissões” e desviar “o centro do debate político” dos plenários. Retirando peso aos sempre acirrados plenários, talvez seja possível construir mais pontes e relações mais descomplexadas entre os partidos, acredita Couto dos Santos.
Couto dos Santos foi pela primeira vez eleito deputado em 1991
Mas mais do que reforçar o papel das comissões, Couto dos Santos acredita que a Assembleia deve dar um outro passo decisivo na aproximação entre eleitores e eleitos: criar um espaço próprio onde “sejam discutidas questões mais locais” pelos deputados eleitos por determinado círculo eleitoral. Trabalhar a partir de Lisboa, sem esquecer os interesses dos cidadãos do resto do país.
Um país que muitas vezes não reconhece o “trabalho de chapa” desenvolvido pelos deputados. Essa é talvez a maior mágoa que lhe fica, ainda que não chegue para ofuscar as vitórias que conquistou, por exemplo, na redução das despesas na Assembleia, na modernização das tecnologias de informação e comunicação e em matéria de sustentabilidade ambiental. Um legado construído em conjunto com deputados de outros partidos e que fica “para quem vier a seguir”.
A vida parlamentar e as amizades travadas nos corredores de São Bento vão deixar saudades, claro. “Foram muitos anos”, lembra. “Um dia acordamos e sentimos falta do stress, do debate e da troca de opiniões”. Um vazio na rotina, mas um vazio necessário, até porque este era o “momento certo” para deixar que “outras pessoas assumissem o lugar no Parlamento” e a linha da frente do combate político. Arrumado o fato de deputado, o seu turno agora é outro: “ajudar a sociedade civil a ter um papel mais ativo” no debate político.
Mas nem todos saem tão reconciliados com o sistema político português como Couto dos Santos. É isso que começa por dizer Ribeiro e Castro. “É preciso reformar o sistema eleitoral e dotá-lo de maior personalização”. Ele que, quando anunciou a decisão de deixar o Parlamento disse que o fazia para se sentir “livre como um passarinho” de um “sistema doente”. Só assim, diz o centrista, com uma verdadeira reforma do sistema – que passaria sempre por um “modelo de conjugação entre a eleição dos deputados em listas plurinominais e a introdução de uma componente de círculos uninominais” – é que os deputados passariam a ser “menos funcionários políticos” e “mais representantes do povo”.
Ribeiro e Castro está na vida política ativa desde 1976
Ribeiro e Castro sabe do que fala. Foi pela primeira vez eleito deputado em 1976 e pelo meio ainda integrou os governos da Aliança Democrática e depois de Cavaco Silva, como adjunto do ministro da Educação Roberto Carneiro. Sentava-se, desde 2009, na bancada centrista, mas nunca deixou de ser uma voz incómoda no CDS: em 2013, por exemplo, demitiu-se da presidência da Comissão Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura entre críticas à direção dos democratas-cristãos. Seguiram-se outras batalhas, como a reposição do feriado do 1º de dezembro e, mais recentemente, a ratificação controversa do Tratado para o Tribunal de Patentes – “Portugal não é bom aluno nenhum. É o péssimo aluno, o aluno cábula, o aluno marrão, mas burro; (…) o aluno sem alma, nem ambição, graxista e lambe-botas”, disse na altura.
Hoje, sai com a consciência de que muito foi feito e de que muito ficou por fazer. “Conseguimos cumprir o memorando” e “encontrar uma saída positiva”, apenas possível graças “a uma estratégia financeira determinada”. Por outro lado, a tão ambicionada reforma do Estado acabou por não sair do papel. “Chegamos ao fim da legislatura sem termos sequer inventariado o conjunto de problemas que existem [em setores como] a Administração Pública, o Sistema de Pensões e a Saúde”, lamenta. Uma reforma que chegou a ser bandeira de Paulo Portas.
Na hora de atribuir responsabilidades, não esquece a oposição, que manifestamente “boicotou” muitas das discussões políticas que deveriam ter sido travadas no Parlamento, como a inscrição do limite ao endividamento na Lei Fundamental (a chamada “regra de ouro), uma das grandes prioridades do CDS. Mas Ribeiro e Castro prefere falar do seu partido, em união de facto com o PSD desde 2011. “Acho que o sistema funciona bastante mal do ponto de vista da democracia representativa. Somos muitas vezes confrontados com decisões que foram tomadas noutras instâncias”, o que chega a ser “indigno” para os deputados, diz o centrista, antes de admitir que nem sempre teve um ambiente “propício ao desempenho do mandato”.
Então, o que mudar? Puxando dos galões de quem é deputado desde 1976, Ribeiro e Castro acredita que é preciso mudar a própria orgânica do partido (e dos outros partidos) antes de se ambicionar reformar profundamente o que quer que seja. “Devia haver reuniões sérias do grupo parlamentar. Era assim que as coisas funcionavam em 1976. As decisões eram tomadas em plenário do grupo. Havia um momento de discussão, que hoje não existe” porque se adotou “a moda de reunir de 15 em 15 dias ou nem isso. E são reuniões dirigidas”, critica, antes de acrescentar que voltar ao antigo hábito “já era um avanço considerável”.
Depois, sim, é preciso olhar para todo o sistema e dar passos para aproximar, de vez, os eleitos dos eleitores. É preciso libertar os deputados do peso excessivo das máquinas partidárias. É possível? Depende “daqueles que mandam”. E os que mandam não querem mudar um sistema que lhes garante “mais poder”, alerta Ribeiro e Castro.
Nos últimos 20 anos, assistiu-se a uma “perda real da qualidade dos deputados”
Foram 20 anos ininterruptos como deputado social-democrata. Duas décadas “a tentar defender sempre aqueles que eram os interesses da Madeira”. Aos 67 anos, Hugo Velosa decidiu arrumar o machado de guerra e deixar Parlamento. Olha para o currículo parlamentar “com satisfação pessoal” e com a consciência “tranquila” de ter pensado sempre primeiro na Madeira e depois no partido. Até porque a sua escola e fibra de que era feito era outra, garante. “Não fui daqueles, como agora é moda, que entrei na política vindo das Jotas”.
A independência dentro do partido valeu-lhe, pelo menos, três amargos de boca – três processos disciplinares, leia-se. O último, ainda bem recente, foi-lhe instaurado depois de ter votado contra o Orçamento do Estado para 2015 em conjunto com outros deputados do círculo do PSD-Madeira. O voto custou-lhe a saída de cena do cargo da coordenação do PSD na Comissão de Assuntos Constitucionais.
Mas não se arrepende de nada. Nem do que fez, nem do que ficou por fazer. “Saio sem nenhuma frustração”. Foi coordenador do PSD na Comissão Parlamentar de Economia, Finanças e Plano, orgulha-se da “participação muito ativa” que teve na reforma fiscal e na área da Justiça e foi um dos responsáveis sociais-democratas na comissão de inquérito ao caso BPN. É talvez a única ferida que ainda lateja, embora dormente. “Poderia ter feito mais, opondo-me a algumas decisões que foram ali tomadas”, admite. Mas é um mea culpa de quem admite ao mesmo tempo que estava condicionado à partida por um sistema demasiado fechado sobre si próprio. “É urgente fazer a revisão do regimento da Assembleia da República, que cria constrangimentos tremendos aos deputados. [Se não se alterar nada] a Assembleia perderá qualquer importância”, avisa Hugo Velosa.
Hugo Velosa, em 2013, no Parlamento
E para o deputado é preciso atacar o problema pela raiz e travar de vez a “excessiva preponderância dos partidos no recrutamento dos deputados”. A solução passa pela revisão do sistema eleitoral, com a introdução de listas uninominais, e por melhor o critério de escolha de candidatos a deputados. Trocar a “garantia de fidelidade” ao partido pelo fator “competência”, explica.
“Se não se arrepiar caminho” a qualidade do trabalho parlamentar vai continuar a cair até que a Assembleia “deixe de funcionar” como órgão representativo dos portugueses para passar a ser outra coisa qualquer. “Não tenho dúvidas nenhumas”, lamenta, antes de dizer que, nos últimos 20 anos, assistiu a uma “perda real da qualidade dos deputados”. Uma perda de qualidade que depois se reflete “no debate político, no funcionamento das comissões e no próprio processo legislativo”.
Não é uma crítica ao sangue novo que corre no Parlamento, nem tampouco uma generalização a todos os deputados que entraram no Parlamento nestas últimas duas décadas da democracia portuguesa. É a conclusão de quem calcorreia o chão de São Bento desde 1995 e que acredita que o modo de funcionamento do Parlamento e da política portuguesa tem de mudar a bem da democracia representativa. Mas já não será ele a travar essa batalha em São Bento. Trocou essas e outras batalhas pela “enorme liberdade” de voltar a ser cidadão e uma voz ativa na sociedade civil. “Mas é evidente que são 20 anos que deixam saudade”, reconhece o madeirense.
“As minhas recordações não são as paredes. São as pessoas”
É “a partida natural” de quem “sentiu na própria pele as pressões tremendas” da legislatura “mais complicada” de que tem memória. Aos 72 anos, o social-democrata Pedro Lynce despede-se da Assembleia da República com certeza de que fez tudo o que podia pelo distrito de Évora, mesmo que o memorando de entendimento lhe absorvesse grande parte da energia.
“Quase que diria que grande parte do meu tempo foi [usado] mais com preocupações nacionais do que locais”, lamenta o ex-ministro da Ciência e Ensino Superior de Durão Barroso. A herança socialista tinha deixado uma ferida aberta nas contas do país, com “números que não eram reais” e que deixaram os portugueses à beira do colapso. Orgulha-se, por isso, de ter pertencido a uma maioria “que teve a coragem de pôr um travão nisto” e que conseguiu evitar um destino semelhante ao da Grécia. “Foi uma legislatura extremamente positiva. O país está muito melhor agora do que quando saímos do ponto de partida. Deixámos um modelo de desenvolvimento económico muito mais sustentável do que o anterior”, sublinha.
Ainda assim, nem o conforto de ter ajudado a evitar a bancarrota e, muito provavelmente, um segundo resgate, o ajuda a esconder a “frustração” de não ter conseguido mais vitórias para Évora, como a construção do novo Hospital. “Sonhamos sempre com mais”, não esconde. Mas, no caso concreto do Hospital de Évora, faltaram os apoios comunitários – que o Governo anterior não tinha assegurado – para tirar o projeto do papel. “Não podíamos arriscar começar uma obra e depois não ter dinheiro para pagá-la. Era preciso ter consciência da realidade de um país que atravessava a maior crise de que há memória”, explica.
Mesmo assim, Pedro Lynce não esconde orgulho de ter ajudado a levar para a frente a construção do novo complexo desportivo de Évora, antigo hipódromo, que será transformado numa pista de atletismo e num campo de râguebi. “É fundamental passar a mensagem de que Évora tem qualidade de vida e é fundamental criar condições para os jovens se fixarem. Porque há jovens que se querem fixar em Évora”, garante.
Agora, e para lá dos limites de Évora, é preciso continuar o trabalho desenvolvido pelo atual Executivo e estancar “o problema do desemprego, a maior chaga do país”. Mas essa já não será uma batalha sua. De partida de São Bento, o deputado não esconde as saudades que ficam das “relações excelentes” que criou com colegas do partido e outros da oposição. “As minhas recordações não são as paredes. São as pessoas”, explica, para dizer que não está, nem nunca esteve agarrado ao lugar de deputado. Aliás, quando foi convidado para assumir o mandato de deputado, fez questão de avisar imediatamente que aquele seria o seu último. As “exigências” da última legislatura, o “entrar às 9h sem horas para sair” e o facto de ser o único deputado social-democrata eleito por Évora só reforçou o que já sabia antes: este era o momento certo para deixar a política ativa.
O balanço destes últimos seis anos? “Aprendi muita coisa, vou ter saudades das pessoas e dos amigos que fiz, das comissões onde discutia com os meus colegas sempre com extrema correção. [No fim], esqueço tudo o que é mau e recordo apenas as coisas boas. É esse o meu feitio”.
Apesar dos elogios que não se cansa de fazer aos colegas de partido e aos deputados da oposição, Lynce acredita que o debate político está a perder o norte. “Quando ouço alguém a chamar mentiroso ao primeiro-ministro no Parlamento, sinceramente, apetece-me logo gritar. É ofensivo e inaceitável”, critica. “Há plenários a mais”, o “tempo usado é excessivo” e os temas “repetem-se”, muitas vezes apenas para alimentar disputas partidárias. Usados assim, os plenários “retiram interesse ao debate político”. É preciso centrar o debate político naquilo que é fundamental, aconselha Pedro Lynce em jeito de despedida.
“Quero dar um novo rumo à minha vida”
74 anos, 35 ao serviço do país como deputado. Correia de Jesus, deputado do PSD eleito pelo círculo da Madeira é o último dos históricos a deixar o Parlamento. É presidente da Delegação Portuguesa à Assembleia Parlamentar da NATO, ocupou o cargo de presidente da comissão da Defesa Nacional e foi condecorado em cinco países diferentes – Portugal, Espanha, França, Luxemburgo e Alemanha. Tal como Lynce, assumiu o cargo em 2011 sabendo que seria o último mandato. “Quero dar um rumo à minha vida. Quero fazer outras coisas”.
Na calha, está um livro sobre “a longa carreira enquanto deputado”, que não será um exercício de nostalgia, garante. “A saudade não favorece a felicidade”. Passou quase metade da vida profissional no Parlamento mas deixa a vida a política ativa sem pretensiosismos: “Gostei muito do que fiz e sinto-me muito honrado por ter desempenhado o cargo durante muitos anos”, diz, sem mais.
Orgulha-se de ter estado na política, uma atividade tantas vezes mal compreendida pelos portugueses. “Uma atividade nobre. Nobre não, nobilíssima”, reforça. Agora é tempo de iniciar uma nova etapa da vida com o conforto de “saber que ao longo destes anos” deu o seu melhor para “proteger os interesses do país”.
Correia de Jesus (à direita) com Hugo Velosa, Claúdia Monteiro de Aguiar e Guilherme Silva (também de saída)
Além dos deputados ouvidos pelo Observador, há ouros históricos que vão deixar a Assembleia em 2015. Entre os que se despedem esta quarta-feira estão nomes como Mota Amaral, deputado social-democrata e antigo Presidente da Assembleia da República, Guilherme Silva, deputado do PSD eleito pela Madeira, Luís Fazenda, fundador do Bloco de Esquerda, e Helena Pinto, também ela deputada do BE.
Há, ainda, um nome incontornável: Maria de Belém Roseira Martins Coelho Henriques de Pina, ministra da Saúde de António Guterres e ex-presidente do Partido Socialista. É certo e público que não volta a São Bento no outono de 2015, mas o seu próximo destino pode muito bem ser o Palácio de Belém, assim decida participar na corrida às presidenciais.