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Jesús Marty é presidente da delegação em Moçambique da ONG espanhola Ajuda em Ação. Conhece bem o terreno: afinal, o espanhol chegou a Pemba há 21 anos, quando o país ainda lidava com as cicatrizes da guerra civil que opôs a RENAMO à FRELIMO, como as memórias “de ver um camião vindo de Pemba de onde os cadáveres que tinham sido baleados caíam”.
Quando a situação começou a melhorar e os indicadores começavam a entrar em “velocidade cruzeiro”, como o próprio define, surgiu o terrorismo em Cabo Delgado: desde outubro de 2017 que um grupo ataca as populações, queimando aldeias, pilhando tudo à sua passagem e deixando um rasto de violência marcado pelas decapitações. Em 2019, a situação agravou-se com o ataque a Palma — que levou finalmente a uma resposta mais musculada por parte das forças militares. Porém, a quantidade de pessoas que teve de abandonar as suas casas desde o início de 2017 e, com particular relevo, desde 2019, é impressionante: 745 mil pessoas numa população de 2,3 milhões, de acordo com os dados divulgados pela Ajuda em Ação num seminário aberto aos jornalistas nos últimos dias.
A maioria acumula-se em Pemba, onde Jesús Marty e a sua equipa tentam ajudar com o estabelecimento de abrigos e apoio alimentar e psicológico. Mas a fome é um problema cada vez mais agudo numa região onde quase metade das pessoas vivem abaixo do limiar da pobreza. “Se as pessoas não tiverem que comer, pouco mais podemos fazer. A região não está em condições nem de oferecer emprego para todos, nem alimento para todos”, garante o diretor da ONG em entrevista ao Observador.
A que se junta o drama psicológico da falta de objetivos. O regresso às suas aldeias é um cenário distante, seja pela falta de segurança que ainda se vive na região, seja pelo facto de que tudo está ainda destruído. O governo de Moçambique, com o apoio do Banco Mundial, anunciou um plano de reconstrução no valor de 300 milhões de dólares, mas quem está no local teme que tal não seja suficiente: “Os custos são muito grandes, até pelo isolamento geográfico da zona. O transporte de materiais para lá é muito caro, a mão-de-obra muitas vezes tem de ser trazida de fora. E isso aumenta muito os custos. O valor que está disponibilizado é importante, mas o esforço tem de ser muitíssimo maior”, afirma Marty.
Com fome e longe de casa, os milhares de deslocados que fugiram da violência em Cabo Delgado vivem uma situação precária, a que se juntam o trauma psicológico daquilo a que assistiram — como o facto de terem tido de deixar familiares mais velhos literalmente pelo caminho — e a falta de perspetivas. “A nova geração pode recuar 20 anos, seja em termos de educação, seja na alimentação e no acesso à saúde”, avisa o diretor da Ajuda em Ação no país. “E, last but not least, também na esperança de viver e de querer olhar para a frente.”
“Estes jovens vão ter os mesmos traumas da geração mais velha [com a guerra civil]”
A questão da insegurança alimentar é a mais preocupante no norte de Moçambique neste momento ou é um de vários problemas ainda por resolver?
É uma pergunta muito importante e que tem uma resposta difícil. As necessidades aqui são muitas. Estamos a falar de pessoas que estão a viver com a sacola às costas, que estão a chegar num contexto de violência — que é evidentemente o mais importante, por todas as questões psicológicas. Muitas destas pessoas chegam de aldeias de onde poucas vezes saíram antes e agora estão a lidar com um contexto parecido, mas novo. As tradições, as culturas, as práticas económicas e sociais, estão a ser transformadas. O problema a que chegámos é que estamos numa situação em que as carências são muitas: alimentares, de educação, acesso a saneamento, de prevalência de doenças endémicas como a malária e o HIV… E a fome enforma isto tudo. Não nos enganemos: até para se estar doente tem de se ter comido. Portanto é difícil estabelecer a prevalência de uma coisa sobre a outra, mas realmente a questão da alimentação está a ser um dos maiores problemas.
Tudo isto está associado a outro conjunto de questões como as violações de direitos e o trauma associado à violência por que se passou. Só para dar uma pincelada da minha experiência, do que oiço de pessoas com quem falo: chegaram aqui pessoas vindas de distâncias a 200 quilómetros, vindas de Palma a pé, e os mais velhos ficaram pelo caminho. Os grupos mais vulneráveis não conseguiram lidar com uma caminhada no meio da mata, depois de sofrer um ataque armado. São estas as histórias que ouvimos e que têm uma importância essencial para perceber qual é a experiência da violência que estas pessoas carregam às costas. E isto dificulta o olhar para a frente com esperança.
Muitas destas pessoas que fugiram e estão deslocadas são crianças. É uma população jovem, marcada pela violência a que assistiu, pela fuga e agora por ter de se estabelecer num sítio novo em condições precárias. A longo-prazo isso pode ter outros efeitos nesta nova geração? Ou seja, mesmo com o fim da insurgência armada, isto pode não acabar aqui?
Sim, evidentemente. É uma geração que fica marcada. Só para dar uma ideia, quando isto aconteceu em 2017, muitas pessoas da minha idade, na casa dos 40, 50, 60 anos não conseguiam compreender que esta violência tivesse acontecido. Quando cheguei a Moçambique, em 2000, a guerra civil tinha acabado há oito anos. E as gerações que viveram a guerra tinham essa memória, o que condicionou e fez com que não conseguissem perceber que se estivesse a regressar a isso. Para eles era absolutamente incompreensível, porque tinham a memória da guerra viva. As gerações novas — que são muitas tendo em conta a pirâmide demográfica de Moçambique —, que não têm a experiência da guerra, foram as que tomaram as armas. Estes jovens são os que vão ter os mesmos traumas que toda a gente acima dos 40. Esses são os que se lembram de ver um camião vindo de Pemba de onde os cadáveres que tinham sido baleados caíam. São os que se lembram das bombas. E isso exigiu um grande esforço coletivo a Moçambique para virar essa página. Agora, com este novo conflito, vão ser necessários mais 30 anos para virar esta nova página. A redução da taxa de alfabetismo, os indicadores de nutrição, tudo isso estava a chegar a uma velocidade cruzeiro, estava a melhorar. Para a região norte de Moçambique, e sobretudo em Cabo Delgado, isto pressupõe que a velocidade cruzeiro foi travada. A nova geração pode recuar 20 anos, seja em termos de educação, como na alimentação e acesso à saúde. E, last but not least, também na esperança de viver e de querer olhar para a frente.
Como é que vê a situação da radicalização dos jovens que se juntaram à insurgência armada? Têm sido apontados vários fatores, como a desigualdade económica, mas parece-me particularmente relevante a distância do Estado. O Norte de Moçambique sente-se muito isolado e esquecido…
Sim, isso é muito interessante. Podemos recuar cem anos para tentar responder a isto. A zona de Cabo Delgado historicamente é uma área que acabou de ser “colonizada” em 1918, quando se fez a conquista efetiva do território. Ao mesmo tempo, há uma consequência da penetração dos alemães, que faziam pressão sobre o território de Moçambique [dominavam o território a norte, na zona que corresponde hoje à Tanzânia]. Estamos a falar de uma colonização relativamente recente. O ponto número dois é que, quando os territórios foram distribuídos pelas companhias reais, a Companhia do Niassa era uma companhia descapitalizada, cujo investimento em relação a outras áreas de Moçambique foi muito menor. As estradas com condições são uma coisa recente aqui. As infraestruturas económicas são pouquíssimas, inclusivamente quando comparadas com o resto de Moçambique — nem falo quando comparadas com outros países. Toda esta herança tem peso.
O investimento necessário era muito e não foi feito, por diferentes questões, o que tem um peso na prestação dos serviços públicos, na capacidade de administração, na presença no território. Uma presença efetiva, que não seja apenas uma casa com uma bandeira e um senhor com uma viatura. Uma presença que sirva o cidadão. Os meios são limitadíssimos, já eram em 2017. E as populações, num contexto de comunicação global — porque é global, mesmo quando não havia energia aqui já havia internet, são paradoxos da modernidade — estão expostas a todo o tipo de informações. E já são capazes de comparar a sua situação, não apenas com a de alguém em Washington, Lisboa ou Berlim, mas também com outras regiões dentro do território de Moçambique. E é complicado gerir esse tipo de expectativas, creio que é um dos elementos que mais danos tem causado.
Os ataques de 2017: “Naquele dia 4 de outubro, toda a gente ficou de boca aberta”
Pode recordar o início dos ataques em 2017? Como é que receberam os primeiros relatos da violência em Pemba?
Ninguém esperava isto, ninguém. Com toda a sinceridade. Quando o carro já passou, toda a gente diz que sabia que o carro ia passar. Mas naquele dia de 4 de outubro de 2017, estávamos cada um sentado na sua casa tranquilamente. E quando começaram a chegar as mensagens e as chamadas, a resposta era sempre “O quê?!”. Toda a gente foi surpreendida. É verdade que havia elementos que podiam ajudar a antecipar algum tipo de situação desta natureza, mas julgo que estas são análises sobretudo feitas a posteriori. É claro que havia alguns alertas: quando estamos a falar de uma das províncias mais pobres que tem recursos minerais e onde há uma desigualdade tão grande, qualquer um pode pensar que algo assim pode acontecer. Mas naquele dia 4 de outubro, toda a gente ficou de boca aberta, não sabíamos se o nosso queixo não se tinha desencaixado. Ninguém esperava.
Quando é que em Pemba começaram a receber os primeiros deslocados?
Começaram a partir de 2018, mas foi um fluxo lento. Quando foi tomada Mocímboa da Praia, mais gente fugiu e as pessoas começaram a ficar mais preocupadas e a sair. Mas o grosso das deslocações foi a partir de abril de 2019. E desde aí foi uma escalada. Em menos de um ano tinham-se deslocado meio milhão de pessoas. Foi um fenómeno que começou devagar, mas que se tornou numa maré, foi um tsunami que apareceu. Os últimos dados, de setembro de 2021, são de 344 mil deslocados. Nos últimos meses os números têm descido bastante, mas por uma questão demográfica: em 2,5 milhões de habitantes, quando se movimentam 700 mil… Não sobram muitos. É um fator que acho que deve ser tido em conta, sobretudo na questão da resposta humanitária. É preciso perceber se os deslocados também se querem voltar a deslocar para outros sítios.
As pessoas não querem ficar onde estão? Querem voltar às suas aldeias?
Há um pouco de tudo, são 800 mil pessoas, cada uma tem a sua opinião. Mas, em termos gerais, uma coisa é a intenção de retornar e outra a realidade em redor. Neste momento, com a chegada das tropas estrangeiras houve alguma euforia inicial, mas não há condições para regressar. A situação não está tranquila, não se podem garantir as condições de segurança, o trânsito para essas áreas não é sequer seguro. Portanto, falar de um regresso é ainda complicado.
O regresso quase impossível: “Até os campos agrícolas, tudo foi destruído”
E mesmo que a situação de segurança venha a acalmar, sobra uma questão: regressar para o quê? Não há infraestruturas neste momento.
É um regresso a lugar nenhum… As casas foram queimadas. A memória daquilo que as pessoas deixaram pouco tem a ver com o que existe agora. E esse regresso, o encontrar o que já não se tem, pode ser pior do que ficar onde se está. É um dilema. Há muito trabalho a fazer e a reconstrução tem de fazer parte dos planos. Mas o regresso efetivo das pessoas aos locais de origem ainda é complicado.
O governo de Moçambique diz que está a preparar um fundo, com apoio do Banco Mundial, para investir nessa reconstrução. Tem esperança que esse fundo tenha capacidade para pelo menos permitir alguma habitabilidade à zona?
As necessidades são muito grandes. Temos de dar um pouco de contexto, as infraestruturas que existiam não eram assim tantas e a destruição foi muito grande. Em termos de hospitais, administração pública, escolas, habitação… Até os campos agrícolas, tudo isto foi destruído. Os custos são muito grandes, até pelo isolamento geográfico da zona. O transporte de materiais para lá é muito caro, a mão-de-obra muitas vezes tem de ser trazida de fora. E isso aumenta muito os custos. O valor que está disponibilizado é importante, mas o esforço tem de ser muitíssimo maior.
Dizia há pouco que houve alguma euforia com a chegada das tropas estrangeiras. Um relatório da Amnistia Internacional de 2020 falava na chegada das tropas moçambicanas e dizia que houve uma má relação inicial com as populações. Ouve relatos que confirmam isso?
É difícil responder a essa questão. A relação destas tropas com a população agora está reduzida às áreas geográficas de difícil acesso. Para ser sincero, não tenho elementos que permitam avaliar isso com critério. Evidentemente acredito que tenha melhorado, até pela formação que eles receberam. Mas, com toda a sinceridade, não sei dizer.
Os recursos e a “gestão de expectativas” mal feita. “Muita gente achava que ia cair ouro do céu”
Em termos da resposta em Pemba, está a haver apoio alimentar e de abrigo. Mas, com poucas perspetivas de regresso, é possível fazer mais alguma coisa?
A resposta é muito complicada. O contexto social e económico existente já era de grandes carências, e quando se sobrepõe a isso uma chegada maciça de pessoas… A população de Pemba tinha cerca de 300 mil pessoas e chegaram quase mais 150 mil. O distrito vizinho de Metuge tinha em 2015 75 mil habitantes, entretanto chegaram 125 mil. Estamos a falar de números enormes. Assistir a mais do que as necessidades básicas é difícil. É difícil chegar a todos e da forma que se deve chegar. E estamos a construir sobre alicerces que já têm problemas, o que complica muito as coisas.
O que estamos a tentar fazer é trabalhar a duas velocidades: por um lado, tentar cobrir as necessidades mais urgentes das pessoas, como o saneamento, a alimentação e o abrigo; mas achamos que é preciso começar a mudar um pouco esta dinâmica. A nossa experiência em termos de segurança alimentar aqui é que a produtividade agrária é essencial. Não vão todos encontrar um emprego, estamos a falar de uma população rural, cerca de 80%. Se não conseguimos introduzir fatores de melhoria na produção alimentar, não só para o auto-consumo, mas para permitir a venda… Um dos eixos de trabalho tem de ser esse. Se as pessoas não tiverem que comer, pouco mais podemos fazer. A região não está em condições nem de oferecer emprego para todos, nem alimento para todos. Nem de aproveitar as capacidades da população e melhorar a sua vida.
Dizia há pouco como as pessoas comparam a sua situação neste mundo global. Acha que a população se sente injustiçada por estar numa situação tão frágil quando vivia numa região tão rica, que é explorada sobretudo por empresas estrangeiras?
Evidentemente. Temos de pensar que todo o trabalho que se fez ao longo de anos, sobretudo relativamente à descoberta de hidrocarbonetos, criou expectativas na população. Já cá estou há 21 anos e noto que muita gente achava que ia cair ouro do céu. Sempre que há este tipo de recursos em Estados frágeis surgem este tipo de questões. As pessoas criam expectativas em relação ao emprego, recursos económicos, melhoria das condições de vida. E estes são processos a longo-prazo, a integração com as comunidades locais demora anos.
Quando se inicia uma indústria desta natureza numa região com 67% de analfabetismo, até que os engenheiros sejam locais demora décadas. E esta gestão das expectativas não foi bem feita. Pode ter-se ouro a sair da terra, mas se não se tem capacidade para aproveitar esse ouro, é o mesmo que não haver ouro nenhum. A quebra dessas expectativas foi terrível, sobretudo entre a juventude. Os jovens pensam: “Vejo viaturas de 50 mil dólares cheias de estrangeiros a passar. A mim disseram-me que ia ter emprego, mas continuo só sentado a ver se consigo apanhar um peixinho para o jantar”. É claro que não foi o único fator — mas este foi um dos fatores que contribuíram para o que se está a passar em Cabo Delgado.