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JEFF PACHOUD/AFP/Getty Images

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Cancro. As últimas descobertas valem mesmo tanta euforia?

Os resultados promissores de um ensaio clínico com células T e a cura de uma menina com leucemia deixaram a comunicação social em alvoroço. É caso para tanto? Como reagem os cientistas portugueses?

Qualquer avanço na área do tratamento do cancro é recebido como uma boa notícia. Os resultados do ensaio clínico conduzido por Stanley Ridel, investigador no Centro Fred Hutchinson de Investigação em Cancro (Estados Unidos), não foram exceção. Embora considerem que esta investigação vem reforçar a importância da imunoterapia, os cientistas portugueses entrevistados pelo Observador referem que a técnica não é nova. Os investigadores não duvidam que os resultados sejam promissores, mas lembram que esta ainda é uma fase inicial dos ensaios clínicos.

“Do ponto de vista da eficácia terapêutica em leucemia linfoblástica aguda [LLA] avançada pode dizer-se que [a técnica] é revolucionária: 94% de remissões completas seriam impossíveis com qualquer outro tratamento disponível”, disse ao Observador Bruno Silva Santos, vice-diretor do Instituto de Medicina Molecular (IMM) da Universidade de Lisboa. Mas o investigador, que também faz investigação em imunoterapia, disse que, em termos conceptuais, a técnica não é novidade e já se sabia que podia “ser aplicável a tumores de linfócitos B [células B do sistema imunitário], como é o caso dos doentes de LLA ou de certos casos de linfoma”.

Stanley Ridel conduziu um ensaio clínico com 35 doentes com leucemia linfoblástica aguda, que receberam um tratamento com células do sistema imunitário geneticamente manipuladas. 94% destes doentes viu os sintomas desaparecerem completamente e, ao fim de 18 meses, não apresentavam sinais de que o tumor tivesse voltado, segundo o Independent. Os resultados destes ensaios clínicos iniciais foram apresentados na conferência anual da Associação Americana para os Avanços na Ciência (American Association for the Advancement for Science, AAS). “Há poucos resultados de ensaios clínicos e poucos assim tão bons. É uma vitória para a imunoterapia”, disse ao Observador Filipe Pereira, investigador no Centro de Neurociências e Biologia Celular, Universidade de Coimbra.

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A quimioterapia continua a ser o método mais comum de tratamento do cancro. Mas apesar de ser eficaz em muitos casos, mostra-se completamente inútil noutros.

A imunoterapia pretende potenciar o sistema imunitário e trazer uma resposta para os casos em que a terapia convencional não funciona.

“É um passo importante e altamente promissor”, confirmou também João Barata, líder da Unidade de Biologia do Cancro do IMM. Mas como lembrou ao Observador, a técnica não é nova. “Os primeiros estudos terão tido início há uns três anos.” João Barata reforça a importância que estes resultados têm para pessoas que já perderam a esperança. Os doentes que foram sujeitos a este ensaio clínico estavam numa fase terminal da doença: com menos de cinco meses de esperança de vida e depois de as terapias convencionais terem falhado. Apesar dos riscos associados a este tipo de terapia, estes doentes não tinham outra alternativa de tratamento.

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Manipular células T. Que técnica é esta?

À partida o nosso sistema imunitário deveria estar preparado para combater todas as células e agentes estranhos que atacam o nosso organismo. O problema é que os tumores partem de células do nosso organismo e o sistema imunitário pode ter dificuldade em distinguir as células malignas das células normais que lhe deram origem. Além disso, as células tumorais encontram estratégicas para evitarem ser atacadas pelo sistema imunitário. No caso da leucemia linfoblástica aguda, as células T (células do sistema imunitário) não conseguem ou têm capacidade reduzida de atacar as células tumorais.

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A técnica apresentada na conferência consiste em recolher células T (ou linfócitos T) do doente, manipulá-las geneticamente, replicá-las e voltar a introduzi-las no mesmo corpo. As células T modificadas vão expressar à superfície um “recetor quimérico de antigénios”, que consiste em duas partes fundamentais. A parte virada para o exterior assemelha-se a um anticorpo que se vai ligar à molécula-alvo (antigénio) na célula cancerígena. A parte que fica virada para o interior da célula T é a que consegue desencadear o processo de destruição da célula maligna.

Este processo permite ter células que reconhecem o antigénio (a molécula-alvo na célula cancerígena) e ter muitas células com esta capacidade de resposta. Adicionalmente, é provável que estas células se transformem em células de memória do sistema imunitário, permitindo responder imediatamente caso o mesmo tipo de cancro reaparecer. Além disso, como as células são do próprio, a probabilidade de rejeição da “vacina” é muito reduzida.

Contudo, as grandes vantagens do tratamento dão também origem aos maiores problemas: a molécula-alvo CD19 existe nas células deste cancro específico – leucemia linfoblástica aguda -, mas também existe nas células normais de onde as malignas se originaram, as células B – responsáveis por produzir anticorpos. Destruir todas as células que têm CD19 à superfície significa não só matar o cancro, mas também células importantes do sistema imunitário.

Um outro problema é que a quantidade de células T modificadas na “vacina” é tão grande que pode provocar uma resposta exagerada do sistema imunitário. “Existem várias alternativas em estudo, incluindo colocação de ‘interruptores moleculares’ capazes de desativar as células caso os efeitos secundários pareçam graves”, referiu Bruno Silva Santos. “Mas será sempre difícil obter um equilíbrio entre a ativação necessária para destruir o tumor e a segurança de não causar danos no hospedeiro destas células tão potentes.”

“As respostas fulminantes podem levar a efeitos secundários fatais.”
Bruno Silva Santos, Instituto de Medicina Molecular, Universidade de Lisboa

Por enquanto, a terapia está a ser estudada em doentes num estado avançado da doença, mas, “a continuar com estes bons resultados, pode vir a ser testado noutras fases da doença”, afirmou João Barata. Ainda assim, é preciso lembrar que tal como outros tratamentos, o doente pode desenvolver resistência, as células cancerígenas podem deixar de expressar o antigénio ou aquele doente em particular pode não expressar essas moléculas-alvo.

Outra limitação do tratamento é que, por enquanto, se restringe ao tratamento de leucemia linfoblástica aguda, porque se identificou a molécula-alvo CD19. Enquanto não se conseguir encontrar moléculas específicas para os tumores sólidos, sejam os do pulmão, do pâncreas ou da mama, a terapia não poderá ser usada nestes casos.

O trabalho da equipa de Paula Videira, investigadora principal do grupo de Glicoimunologia na unidade de investigação Ucibio-Requimte da Universidade Nova de Lisboa, pretende comparar o que existe na superfície das células tumorais com o que existe nas células normais. O trabalho, que teve início no no Centro de Estudos de Doenças Crónicas (Cedoc), pretende identificar moléculas-alvo que possam ser usadas na imunoterapia. E, quem sabe, contribuir no futuro para a medicina personalizada.

Layla, a criança que se livrou da leucemia

Paula Videira explicou ao Observador que esta utilização e manipulação dos linfócitos T para combater o cancro já teve várias fases. Na primeira fase selecionavam-se apenas as células T do sangue do doente e depois passaram a selecionar-se as células T que se mostravam mais eficazes para tratar o cancro.

Numa fase posterior, deu-se início à manipulação genética dos linfócitos T, e aqui podemos ter duas situações: ou são usadas células do doente ou são usadas células de um dador saudável. A vantagem de usar células do próprio é diminuir a probabilidade de rejeição, como a que pode acontecer nos casos de transplante. A vantagem de usar células de um dador é que, como este não foi sujeito a quimioterapias nem tem o sistema imunitário debilitado, é mais fácil encontrar linfócitos T viáveis para manipular e replicar, referiu Paula Videira.

Outra das vantagens do uso de células de um dador é que o processo é muito mais rápido, porque as células manipuladas podem já estar “pré-preparadas”. E, como a célula T já vai ser manipulada de qualquer maneira, é possível retirar as moléculas que poderiam provocar a rejeição do recetor. E usar as células de um dador foi o que salvou Layla.

A menina tinha apenas três meses quando foi diagnosticada com leucemia linfoblástica aguda e com um ano já tinha tentado todos os métodos convencionais – quimioterapia e transplante de medula – sem sucesso, referiu a New Scientist. Os pais estavam dispostos a tentar qualquer coisa, mas depois de tantos tratamentos a menina já não tinha células T suficientes para poderem ser manipuladas e reutilizadas.

“É assustador pensar que o tratamento nunca tinha sido usado em humanos antes”, disse o pai da Layla, citado pela NewScientist. “Mas não tivemos dúvidas que queríamos testar o medicamento. Ela estava doente e com muitas dores, tínhamos de fazer alguma coisa.”

A equipa de Waseem Qasim, investigador na University College London, tinha estado a tentar desenvolver metodologias diferentes, como linfócitos T modificados de um dador saudável (UCART19) que poderia, potencialmente, servir vários doentes. Os investigadores não só tornaram a UCART19 capaz de atacar o cancro, como a tornaram invisível ao sistema imunitário para não ser reconhecida como estranha pelo organismo da menina.

Em poucas semanas foi possível ver Layla a recuperar, mas havia o risco de as UCART19 terem algum defeito genético que as pudesse tornar células cancerígenas no futuro. Um novo transplante de medula óssea ao fim de três meses fez com que a menina recuperasse um sistema imunitário viável, que reconheceu as células UCART19 como estranhas e as destruísse.

Outros caminhos da imunoterapia

Mas esta manipulação dos linfócitos T não é a única forma de imunoterapia. Em julho, Bruno Silva Santos explicou ao Observador que passámos dezenas de anos a tentar estimular o sistema imunitário contra o cancro, mas que o verdadeiro problema é que as células cancerígenas conseguem esconder-se das células imunitárias ou travá-las.

existem medicamentos que pretendem “desbloquear” este travão, alguns deles em ensaios clínicos em Portugal. As células têm à superfície uma proteína que funciona como “travão” e as células tumorais têm à superfície uma proteína que funciona como um “pé”, o pé que vai carregar no travão e impedir a resposta imunitária. Estes medicamentos atuam como bloqueadores – ora do travão, ora do “pé” -, funcionando como uma espécie de escudo que permite às células T aproximarem-se das células tumorais e matarem-nas.

Ana Castro, assistente hospitalar de oncologia médica do Centro Hospitalar do Porto, participa nos ensaios clínicos deste tipo de medicamentos – anti-PD1 para os recetores dos linfócitos T e anti-PDL1 para os recetores nas células tumorais. A médica lembrou ao Observador que, em Portugal, apenas os doentes que já foram submetidos a pelo menos uma fase de tratamento com quimioterapia podem participar nestes ensaios.

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Outros ensaios clínicos também em curso usam vacinas que vão sinalizar o tumor para que as células T o possam identificar e destruir, porque, às vezes, o tumor passa despercebido ao sistema imunitário. Com estas vacinas, explicou Ana Castro, injeta-se um vírus atenuado diretamente no tumor, que vai desencadear uma reação inflamatória. A resposta do sistema imunitário torna o tumor visível e este acaba por ser destruído.

Contamos com o sistema imunitário para combater as células malignas, mas pode acontecer que as células imunitárias já estejam tão debilitadas que não conseguem dar uma resposta conveniente. A equipa de Filipe Pereira pretende estudar se é possível transformar células da pele em células do sistema imunitário (ou em células estaminais hematopoiéticas, que vão originar as células do sistema imune e do sangue). Mais, os investigadores querem perceber se depois de as “novas” células de defesa serem instruídas para combater o cancro, são realmente eficazes a fazê-lo.

Como? Todas as células do organismo têm o mesmo genoma, mas consoante a especificidade da célula terão uns genes ativos e outros desligados. Introduzindo fatores de transcrição das células que se querem criar, ou seja, os fatores que vão ligar os genes específicos das células que serão originadas, uma célula da pele pode ser transformada em linfócito T. Pelo menos, é isso que espera Filipe Pereira.

"A imunoterapia é o futuro dos tratamentos em oncologia."
Ana Castro, Centro Hospitalar do Porto

As células tumorais têm origem em células normais que, por algum motivo, começaram a replicar-se descontroladamente e a invadir outros tecidos. Estas células malignas usam o mesmo tipo de mecanismos para viver que uma célula normal, mas nalguns casos podem tornar-se muito dependentes de uma única molécula (ou de um processo). Tão dependentes que, sem esta molécula, acabam por morrer. Conhecer que moléculas são estas, para poder atacar o tumor diretamente, atacando um mecanismo vital, é o objetivo da equipa de João Barata (como demonstrado aqui).

Para Ana Castro, a “imunoterapia é o futuro dos tratamentos em oncologia”: o perfil de segurança é melhor, com menos efeitos secundários agudos (imediatos ou manifestados em pouco tempo). Só não se sabe ainda, como referiu a médica, quais os efeitos secundários a longo prazo (crónicos), como o desenvolvimento de doenças autoimunes.

João Barata concordou com o potencial da imunoterapia e acrescentou que “muito provavelmente, no futuro, o tratamento vai depender de conhecer muito bem o tumor.” Até pode significar identificar mais do que uma molécula-alvo e combinar várias terapias, até a quimioterapia, concluiu Paula Videira.

Mas até lá, há ainda muito trabalho a fazer.

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