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“Num partido republicano fraturado, que luta para se definir, ele nunca conseguiria satisfazer todos os instintos e fações ideológicas. Por isso, no final, acabou a ser atacado por moderados e conservadores e não foi sequer defendido ferozmente por alguns daqueles a quem tinha ajudado a arrecadar centenas de milhares de dólares em donativos para as suas campanhas.”
Este excerto faz parte de uma espécie de obituário político publicado no The New York Times sobre um republicano e presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos que acabou afastado do cargo. Poderia ter sido escrito a 3 de outubro de 2023 sobre Kevin McCarthy, o líder da câmara baixa do Congresso que já ficou na História, ao tornar-se esta terça-feira no primeiro speaker norte-americano a ser oficialmente destituído do cargo.
Mas o texto não foi escrito a propósito de McCarthy; foi escrito há quinze anos e referia-se a um homem chamado Newt Gingrich, figura marcante da política norte-americana, que não foi sujeito a uma votação tão humilhante como McCarthy, mas que também ele saiu do cargo por pressão interna de membros do seu próprio Partido Republicano.
Esta seria uma boa oportunidade para invocar o velho adágio atribuído a Mark Twain de que “a História não se repete, mas rima”. Mas para Geoffrey Kabaservice, diretor de estudos políticos no think tank moderado Niskanen Center, é antes uma oportunidade para apontar a ironia da História: “Aquilo que vemos hoje em dia no Congresso norte-americano é, em grande medida, uma consequência das dinâmicas promovidas pelo próprio Gingrich”, analisa ao Observador a partir de Washington D.C., poucas horas depois da destituição de McCarthy.
“Gingrich é a pessoa dentro do partido que, mais do que qualquer outra, foi responsável por demonizar a oposição e encorajou os republicanos a classificar os adversários como inimigos e parasitas. E foi a figura que começou a minar os procedimentos habituais de funcionamento do Congresso. Tudo isso pôs em marcha um movimento que está vivo ainda hoje”, acrescenta o historiador especialista no Partido Republicano.
Em 1998, depois de uma tentativa falhada de um processo de impeachment contra Bill Clinton, de uma derrota para os republicanos nas eleições intercalares e de muitas críticas vindas dos seus colegas na Câmara dos Representantes, Newt Gingrich atirou a toalha ao chão e demitiu-se. “Não estou disposto a presidir a canibais”, declarou. Dezassete anos mais tarde, seria a vez de outro speaker republicano, John Boehner, se demitir do cargo na sequência da pressão por parte da fação mais radical do partido na câmara baixa.
Agora, em 2023, a pressão não foi suficiente. Kevin McCarthy já estava longe de ser uma figura que agradasse ao chamado Freedom Caucus (o grupo mais à direita na Câmara dos Representantes), tendo precisado de 15 rondas de votação para obter os votos suficientes dessa fação que lhe permitiram tornar-se presidente do órgão, em janeiro deste ano. Mas, ao contrário do que aconteceu com Gingrich e Boehner, a corda esticou ainda mais desta vez e McCarthy foi sujeito a uma votação que deixou oficialmente vazia a cadeira de presidente da câmara baixa. E que foi colocada em marcha não pela oposição, mas por um membro do próprio Partido Republicano, deixando clara “a guerra entre as bases do partido e a sua liderança”, como aponta Kabaservice.
McCarthy negociou com os democratas para evitar o shutdown — e assinou a sua sentença
“O cargo de speaker da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos é agora declarado como estando vazio“, anunciou no final da votação desta terça-feira o congressista Patrick McHenry, que ocupará nos próximos tempos a presidência interina do hemiciclo.
A moção para destituir Kevin McCarthy foi aprovada com 216 votos a favor e 210 contra, nos quais se incluem não apenas todos os representantes da oposição, mas também oito representantes republicanos — Andy Biggs, Ken Buck, Tim Burchett, Eli Crane, Bob Good, Nancy Mace, Matt Rosendale e Matt Gaetz. Foi este último quem colocou precisamente em marcha o processo de destituição do atual presidente.
Tudo se precipitou na sequência do compromisso alcançado entre McCarthy e a liderança democrata para evitar um shutdown (encerramento de algumas agências federais), a propósito do acordo sobre o aumento do teto da dívida, com o líder dos republicanos na Câmara a recuar na exigência de alguns cortes orçamentais defendidos por vários congressistas do seu partido.
Uma posição que Geoffrey Kabaservice explica pelo facto de McCarthy ser um republicano “tradicional”, que considera que um shutdown — que levaria à suspensão de salários de funcionários públicos, por exemplo — prejudicaria mais a imagem do partido do que a perspetiva de ceder nalguns pontos aos adversários políticos.
Por isso, quando Gaetz decidiu desafiar McCarthy, o speaker não recuou: “Bring it on”, respondeu no X (antiga rede social Twitter”, numa expressão inglesa próxima da ideia “Venham eles”.
Bring it on.
— Kevin McCarthy (@SpeakerMcCarthy) October 2, 2023
Ao longo desta terça-feira, garantiu várias vezes aos microfones dos jornalistas que estava pronto para enfrentar a votação e declarou que não iria desistir — deixando que o desfecho fosse uma destituição transmitida pela televisão, em direto.
Sem coesão, sem programa, sem candidato. Aliança de democratas e republicanos mais radicais não tem alternativa para o futuro
Pelo meio, ainda surgiu a hipótese de que McCarthy pudesse continuar no cargo graças aos democratas da oposição. Numa Câmara dos Representantes onde os republicanos gozam de uma maioria com apenas nove mandatos de vantagem, matematicamente bastaria que alguns dos democratas mais moderados votassem “presente” (uma espécie de abstenção prevista nos regulamentos da Câmara) para que McCarthy conseguisse sobreviver à moção.
A meio da tarde, porém, o líder da minoria democrata na Câmara, Hakeem Jeffries, desfez o tabu e sinalizou ao partido que essa não deveria ser a posição a tomar: “Tendo em conta a falta de vontade deles de se distanciarem do extremismo MAGA [sigla ‘Make America Great Again’, lema da campanha de 2016 de Donald Trump] de forma autêntica e abrangente, a liderança democrata da Câmara vai votar a favor da moção republicana”, anunciou.
No final, foi a tempestade perfeita, consequência de dois fatores, diz Kabaservice: por um lado, “a perda de controlo da liderança republicana sobre os seus membros mais radicais”; por outro, “o falhanço de McCarthy na criação de uma relação de confiança com os democratas”. Estes poderiam, em teoria, ter salvado o presidente da Câmara dos Representantes — até porque nada garante que o substituto venha a ser mais favorável aos democratas —, mas decidiram não o fazer, depois de meses de tensão e diferendos, como a abertura de um processo formal de impeachment ao Presidente Joe Biden por McCarthy.
“Este é um sinal do estado de caos da política norte-americana neste momento”, resume Geoffrey Kabaservice, autor do livro Rule and Ruin: The Downfall of Moderation and the Destruction of the Republican Party. “Entre estes que se aliaram para afastar McCarthy não há nada a uni-los verdadeiramente: não há coesão, não há um programa, não há sequer um candidato viável para vir a ocupar o cargo.”
O atual número dois do Partido Republicano na Câmara, Steve Scalise, está doente com cancro e a submeter-se a tratamentos de quimioterapia. Já o número três, Tom Emmer, não é visto pela fação mais à direita do partido como suficientemente apto para o cargo, aponta o New York Times, razão pela qual podem vir boicotar a sua nomeação.
Em teoria, existia ainda a possibilidade de os outros representantes do partido voltarem a apresentar o nome de McCarthy para o cargo, promovendo uma provável reedição da ronda de mais de uma dezena de votações de janeiro. Mas, poucas horas após a destituição, Kevin McCarthy pôs fim à especulação: “Não vou voltar a candidatar-me à presidência da Câmara dos Representantes”, anunciou numa conferência de imprensa onde disse ter sido “o homem mais sortudo à face da Terra” por ter ocupado aquele cargo. “Posso ter perdido uma votação hoje, mas lutei por aquilo em que acredito”, afirmou.
I will not seek to run again for Speaker of the House. I may have lost a vote today, but I fought for what I believe in—and I believe in America. It has been an honor to serve. https://t.co/4EMpOuwtzy
— Kevin McCarthy (@SpeakerMcCarthy) October 3, 2023
Eleitores têm tendência a culpar paralisação do Congresso nos políticos em geral. E quem ganha com isso? “Donald Trump, é claro”
Na noite de terça-feira, à saída da sessão de destituição de McCarthy, o ambiente era de total confusão entre as fileiras dos republicanos. Numa situação sem precedente histórico e sem um substituto claro, muitos dos representantes assumiam aos seus eleitores que não sabem o que vai acontecer daqui para a frente.
Muitos também lamentavam a situação atual do seu partido. “Os americanos estão a ver que precisamos de um terapeuta conjugal para acalmar esta família e voltarmos a ter comunicação e confiança nesta relação”, tinha já desabafado durante a tarde Mark Alford, representante republicano eleito pelo estado do Missouri, numa entrevista à CNN.
A guerra aberta entre as fileiras do Partido Republicano e o facto de esta votação se traduzir numa provável paralisação da Câmara dos Representantes nos próximos tempos irão certamente prejudicar a imagem do partido — mas podem não se vir a traduzir diretamente em consequências políticas.
Em janeiro, aquando das 15 rondas de votação para eleger McCarthy, as sondagens mostravam que a maioria dos inquiridos consideravam que aquele era um sinal de que os republicanos não estavam capazes de se unir para governar de forma eficaz. Os números, porém, não eram muito superiores aos registados pelos democratas, como apontou ao site especializado The Hill o consultor político Dan Judy: “Aquilo que os eleitores vêem é uma disfunção total e constante em Washington e isso prejudica a marca do Partido Republicano”, reconheceu. “Mas este tipo de desafios tem-se tornado tão habitual que a ideia da responsabilização é irrelevante para a maioria dos eleitores.”
A sensação de inoperância e paralisação cíclicas por parte do sistema político norte-americano — com particular ênfase no Congresso — não é nova para os norte-americanos. Uma vez mais, no artigo publicado pelo New York Times a propósito do afastamento de Newt Gingrich da liderança da Câmara em 1998, encontram-se outros sinais de que, à primeira vista, nada mudou desde então: “Não foi um problema de quem lidera. Foi um problema dos seguidores”, disse para o artigo o representante republicano Mike Parker. Nesta terça-feira, 15 anos depois, a revista conservadora National Review publicava um artigo onde se dizia que Matt Gaetz acredita que há um problema “com a qualidade da liderança” no Partido Republicano, quando na verdade “o problema é mais a qualidade dos seguidores”.
Mas Mark Twain tinha razão ao apontar que a História rima, mas não se repete exatamente. Nos últimos 15 anos, a política norte-americana no Congresso pode ter mantido muito do estilo aguerrido que Newt Gingrich promoveu, mas lida também com desafios nunca vistos que, argumentam alguns, são precisamente fruto dessa radicalização — o maior deles uma disputa pela presidência em que um dos principais candidatos é Donald Trump, acusado judicialmente de ter tentado interferir com o processo eleitoral e de ter promovido uma tentativa de invasão do Capitólio.
Geoffrey Kabaservice, que passou a vida a estudar o Partido Republicano, considera que o “caos” vivido na Câmara dos Representantes esta terça-feira é responsabilidade desse mesmo partido. Mas também acha que a radicalização das ações da fação mais à direita do Grand Old Party, herdeiras do estilo do velho Newt Gingrich, têm o dom de descredibilizar os políticos todos por igual, não prejudicando nenhum em particular.
“George W. Bush cunhou em tempos a expressão ‘a intolerância suave das baixas expectativas’”, diz, referindo-se a uma frase invocada pelo antigo Presidente num discurso para descrever uma forma de preconceito contra as minorias e a classe baixa, quando estas são desculpabilizadas por já não se esperar muito delas à partida. “Isso resume bem a situação no nosso país agora. Os republicanos podem ser os responsáveis pelo shutdown, pela demissão de McCarthy, etc., mas todos os políticos acabam por ser culpabilizados por isso.”
E, no final, um novo padrão vai surgindo. O de que, sejam quais foram as guerras fratricidas dentro do Partido Republicano, o vencedor que emerge do caos é aquele que repete a mensagem de que “o Congresso é sempre a mesma coisa, os políticos são sempre a mesma coisa, não se pode esperar nada de diferente deles”, resume Geoffrey Kabaservice. E quem repete essa mensagem? O homem que habitualmente comenta cada detalhe da vida interna do Partido Republicano, mas que, esta terça-feira, não disse uma palavra sobre o destino de McCarthy: “Donald Trump, é claro.”