892kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

i

Carl Zimmer

Carl Zimmer

Carl Zimmer sobre a Covid-19: "As pessoas sabiam que isto ia acontecer e não fizeram nada para impedir"

Carl Zimmer diz que era possível ter prevenido a pandemia e explica que os vírus são o maior motor da evolução. Sem eles, nem os embriões existiam e lutar contra o SARS-CoV-2 seria ainda mais difícil.

Os vírus são uma parte tão inevitável da vida que até no ADN humano se encontram sinais da nossa coexistência com eles. É uma história longa, provavelmente tão longa quanto a da própria vida na Terra, e que agora conhece um novo capítulo com a pandemia de Covid-19. É sobre esta relação com os vírus — às vezes simbiótica, outras vezes competitiva — que o escritor e cientista Carl Zimmer se debruça no livro “Um Planeta do Vírus”, editado em Portugal pela Desassossego.

Quando foi lançada a primeira edição deste livro, Carl Zimmer cruzou-se com as evidências que demonstravam que uma pandemia como a provocada pelo SARS-CoV-2 estava na iminência de acontecer. Dez anos depois, essa pandemia chegou e o especialista não compreende como é que isso foi surpreendente para tanta gente. “As pessoas sabiam que isto ia acontecer e não fizeram nada para impedir”, acusa. Se tivessem feito, o investimento teria sido 1.000 vezes inferior aos danos que a pandemia já fez à economia mundial.

Em entrevista ao Observador, Carl Zimmer desmonta os receios em torno das vacinas contra a Covid-19 — ele, que a tomou, teve dores e febre, mas ficou contente com isso —, apresenta-nos aos vírus bons, aos vírus maus e àqueles que podem ser ambas as coisas; e revela aquilo que se sabe, e que nunca se vai saber, sobre o SARS-CoV-2. No fim, deixa um aviso: enquanto o mundo enfrenta esta pandemia, algum vírus está a evoluir dentro de um animal para, um dia, saltar para os humanos. E a doença que causa pode ser ainda pior que a Covid-19.

A questão é que nós corremos riscos maiores todos os dias, quando vamos para a estrada conduzir — mas fazemo-lo à mesma porque é uma coisa que precisamos de fazer. Sabemos que há um risco inerente, mas fazemo-lo de qualquer modo. E às vezes pomo-nos na estrada, correndo esse risco, para ir às compras, enquanto esta vacinação pode salvar-nos da morte por Covid-19.
Carl Zimmer, autor de Um Planeta de Vírus

Tomou a vacina contra a Covid-19 recentemente, certo?
Sim. Tomei a vacina da Pfizer/BioNTech. Senti uma dor no ombro e tive um pouco de febre, mas isso só me provou que a vacina estava a funcionar.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Não teve nenhum receio de a tomar?
Não, estava ansioso para tomar a vacina. Estou muito contente por tê-la tomado e espero que toda a gente a tome o mais depressa possível.

Comprende as pessoas que têm receio de ser vacinadas contra a Covid-19?
E importante que os fabricantes de vacinas e os governos investiguem aprofundadamente as vacinas e partilhem todos os dados que têm com o público. E é importante que o público olhe para essa informação. Se olharmos para essa informação e se pensarmos sobre a pandemia, percebemos que os prós da vacinação são esmagadores. Se houver pequenos riscos em certas vacinas então, os reguladores devem pensar na melhor forma de gerir os riscos e os benefícios. A questão é que nós corremos riscos maiores todos os dias, quando vamos para a estrada conduzir — mas fazemo-lo à mesma porque é uma coisa que precisamos de fazer. Sabemos que há um risco inerente, mas fazemo-lo de qualquer modo. E às vezes pomo-nos na estrada, correndo esse risco, para ir às compras, enquanto esta vacinação pode salvar-nos da morte por Covid-19. Na Europa, nos Estados Unidos, no Brasil, estamos muito longe do fim desta pandemia. Prova disso é que os casos estão a subir. Por isso, é extremamente importante que as pessoas sejam vacinadas, não apenas por elas mesmas, mas também pelas outras. Porque, quando se é vacinado, não só diminui dramaticamente o risco de ficar doente com Covid-19, mas também porque há cada vez mais evidência — começa agora e emergir — de que também não se transmite às outras pessoas. Ou seja, vamos estar a ajudar as pessoas que não podem ser vacinadas já.

Pensemos na associação entre algumas vacinas e o surgimento de coágulos sanguíneos. É uma reação adversa muito rara, mas pode acontecer a qualquer um. Não será mais fácil aceitar o risco quando simplesmente se pensa que não vai acontecer connosco?
Não é completamente claro até que ponto as vacinas são realmente responsáveis por estes coágulos sanguíneos muito raros. Mas, mesmo que seja assim, há milhões de pessoas a serem vacinadas e apenas algumas estão a desenvolver coágulos sanguíneos, alguns dos quais podem não ter nada a ver com a vacina, de resto. Pode ser que faça sentido que as pessoas mais novas não tomem a vacina da AstraZeneca para gerir o risco e o benefício. Mas também há outros medicamentos para tratar outras complicações que também têm um pequeno risco de efeitos adversos como os coágulos sanguíneos. E nós tomamo-los à mesma porque nos salvam as vidas. É assim que devemos pensar também para as vacinas. É assim que vejo as coisas.

Mas na maioria das vezes, quando se compram esses medicamentos, não somos avisados dessas reações adversas por serem tão raras. Com as vacinas, ouvimos falar dessas reações adversas todos os dias, mesmo sendo elas raras também. Estamos perante um problema de comunicação?
Acho que o grande problema de comunicação com esta pandemia é que não estamos a pensar o suficiente. É difícil comunicar o verdadeiro horror do impacto que a Covid-9 está a ter. Sabe, se pudéssemos ter uma fotografia de cada pessoa que está ligada a um ventilador neste momento… As milhares e milhares e milhares de pessoas que estão num ventilador… Se pudéssemos ter uma fotografia de cada pessoa que morreu de Covid-19… Acho que isso ajudaria as pessoas a colocar esses riscos em perspetiva. É complicado fazermos esse exercício porque temos regras muito sensíveis sobre a privacidade nos hospitais, por isso é difícil para os jornalistas mostrarem sequer uma parte desta catástrofe em Nova Iorque, por exemplo. Conseguimos fazê-lo um pouco — por exemplo, quando a pandemia atingiu mais fortemente a cidade, havia uma fotografia aérea de uma pequena ilha perto de Manhattan com trabalhadores a escavar covas. Havia tantos cadáveres que precisavam de ser enterrados que teve de haver um enterro a grande escala de emergência. Isso chocou verdadeiramente as pessoas, porque lhes mostrou que as pessoas estava a morrer em números muito elevados. Mas depois ficámos insensíveis a isto, pelo menos nos Estados Unidos. As pessoas estão a fingir que ainda não estamos em emergência, estão a convencer-se de que, de alguma forma, a pandemia já terminou. Mas há parte do país — Michigan, por exemplo — onde os casos estão a crescer exponencialmente outra vez. Isto faz-me sentir que a verdadeira falha de comunicação é que não estamos a explicar às pessoas que… milhões e milhões de pessoas já morreram e milhões de pessoas ainda podem morrer. Precisamos de enfrentar este problema e uma parte disso envolve a vacinação.

Desses biliões de vírus, só uma fração muito, muito pequena tem a capacidade de infetar pessoas. As espécies de vírus que infetam regularmente os humanos rondam as centenas. Há definitivamente milhares de outras espécies em animais com a possibilidade de virem a atingir a nossa espécie, só ainda não o fizeram (...). Os vírus são provavelmente a força evolucionária mais poderosa a configurar a nossa linhagem.
Carl Zimmer, autor de Um Planeta de Vírus

No livro “Um Planeta dos Vírus” debruça-se sobre a relação dos humanos com os vírus. Como é que eles foram descobertos?
Foi com estudos em tabaco. Havia um vírus que causava uma doença nas folhas de tabaco. Então, pega-se numas folhas doentes e trituram-se com água, passando depois tudo por um filtro. Este filtro tinha uns poros muito, muito pequenos, por isso as bactérias não conseguiriam passar. Tudo o que restava quando se passava o material pelo filtro era um fluido claro. Esse fluido, se o injetássemos noutra planta de tabaco, ela ficaria doente à mesma. Mas como, se as bactérias já não estavam lá? Foi com este sistema de filtragem que os cientistas identificaram vários tipos diferentes de vírus — repararam que certos tipos de vírus causaram certas doenças em certas espécies. Mas só mais tarde é que foi possível ver realmente os vírus, só depois da invenção de microscópios muito, muito poderosos.

A capa do livro Um Planeta de Vírus, de Carl Zimmer, editado pela Desassossego

Desassossego

E o primeiro vírus em humanos, como foi descoberto?
É uma boa pergunta, não tenho a certeza. Acho que foi o vírus da raiva, mas não tenho a certeza.

Sabemos quantos tipos de vírus existem no mundo?
Os cientistas já identificaram vários milhares de espécies de vírus e dentro de cada espécie há também diferentes variantes. Mas isto são só os vírus que têm uma espécie nomeada, com uma descrição formal, porque, de cada vez que os cientistas vão escavar algum pedaço de terra ou recolher alguma água marinha, acabam por encontrar mais vírus. Há uma grande diversidade viral e o facto de os cientistas continuarem a encontrar novos vírus diz-nos que não estamos nem sequer perto de os ter encontrado a todos. Alguns deles estimam que pode haver biliões de espécies de vírus. A maioria da diversidade da vida vem dos vírus.

Como é que a espécie humana conseguiu fintar tantos vírus e sobreviver até hoje?
Bem, desses biliões de vírus, só uma fração muito, muito pequena tem a capacidade de infetar pessoas. As espécies de vírus que infetam regularmente os humanos rondam as centenas. Há definitivamente milhares de outras espécies em animais com a possibilidade de virem a atingir a nossa espécie, só ainda não o fizeram. Mas a verdade é que os vírus são uma presença constante na vida dos nossos antepassados — tanto assim que os vírus são provavelmente a força evolucionária mais poderosa a configurar a nossa linhagem.

Os cientistas estimam que há 100 mil peças de ADN no genoma humano que vem dos vírus, mas podem ser mais. É complicado perceber se uma peça de ADN vem de um vírus ou não, especialmente se isso aconteceu há muitos milhões de pessoas. Mas cerca de 8% do genoma humano tem claramente origem viral. É muito!
Carl Zimmer, autor de Um Planeta de Vírus

Como assim?
Os vírus têm sido uma ameaça à sobrevivência dos nossos antepassados há milhões de anos. Por isso, sempre que havia uma mutação que pudesse ajudar esses antepassados a sobreviver a infeções virais, essa mutação era favorecida por seleção natural. Ao longo de milhões de anos, temos o surgimento de adaptações muito complexas para combater os vírus.  Por exemplo, o nosso genoma mudou ao longo de milhões de anos para produzir defesas contra os vírus — se não tivéssemos essas defesas, morreríamos muito rapidamente pelas infeções virais. Devo acrescentar que, claro, as pessoas continuam a morrer por causa dos vírus. Muitas pessoas continuam a perder a vida em pandemias como esta. Mas as nossas defesas impedem que morramos ainda mais.

Mas que adaptações são essas?
Bem, quando estamos saudáveis, somos o lar de biliões de vírus. Alguns deles infetam células humanas, mas não provocam doenças graves. Ou seja, somos capazes de destruir vírus perigosos e de manter aqueles que nos interessam. E podemos sobreviver a alguns deles.

Então, há vírus bons para nós, úteis para a nossa sobrevivência. Que vírus são esses?
Há vírus que infetam as bactérias no nosso corpo e impedem que as bactérias de espécies perigosas se tornem numerosas. Ajudam-nos a mantermo-nos saudáveis. E também temos alguns vírus que inseriram os seus genes no nosso genoma. Depois, a evolução domesticou alguns desses genes para os utilizarmos para nosso próprio benefício. São, portanto, genes virais que usamos para uma série de coisas importantes: fazem parte do nosso sistema imunitário, por isso estamos a usar genes virais para combater outros vírus. A placenta tem genes virais que são essenciais para a sua formação, de modo que não teríamos embriões sem eles.

Que quantidade do nosso genoma vem dos vírus?
Os cientistas estimam que há 100 mil peças de ADN no genoma humano que vêm dos vírus, mas podem ser mais. É complicado perceber se uma peça de ADN vem de um vírus ou não, especialmente se isso aconteceu há muitos milhões de pessoas. Mas cerca de 8% do genoma humano tem claramente origem viral. É muito!

E sobre os vírus que atacam bactérias, porque é que não usamos medicamentos com base neles para combater infeções bacterianas? Não seria útil nos casos de super-bactérias, resistentes a antibióticos?
A ideia de usar vírus para tratar infeções bacterianas é antiga. Há mais de um século, um médico chamado Félix d’Hérelle começou a desenvolver a ideia de usar vírus para matar bactérias. Chamou à técnica “terapia com fagos” porque os fagos [bacteriófagos] são vírus que matam bactérias. E ela tornou-se bastante popular há 100 anos, podia-se entrar numa drogaria e comprar um pó feito de fagos para tratar infeções da mesma forma que hoje em dia as pessoas vão à farmácia comprar antibióticos. Mas quando os antibióticos foram descobertos, nos anos 30 e 40, os médicos começaram a preferi-los. Os antibióticos eram apenas químicos, por isso eram mais fiáveis, podiam produzir-se de modo mais fiável, eram mais fáceis de testar para ter a certeza de que funcionavam. Os vírus eram mais complexos: eles evoluem. Ou seja, um fago que funcionava contra uma espécie de bactéria podia não funcionar contra outra. Por isso, a terapia com fagos tornou-se impopular na Europa, nos Estados Unidos e no resto do mundo.

Há várias maneiras de os vírus se terem desenvolvido. É possível que um pedaço de ADN de uma bactéria ou de outra espécie se tenha soltado e tenha sido capaz de se copiar ao utilizar uma célula como hospedeiro. (...). Podem ter-se formado logo na origem da própria vida, quer dizer, ainda antes de a vida ser como a conhecemos.
Carl Zimmer, autor de Um Planeta de Vírus

Mas na União Soviética, continuou a ser muito usada. Depois da Guerra Fria, alguns cientistas soviéticos levaram as suas investigações para o Ocidente, agora a terapia com fagos está lentamente a ganhar popularidade noutros países. Alguns ensaios clínicos na Europa e nos Estados Unidos estão a tentar usar esta terapia como uma forma fiável de tratar infeções. Os antibióticos funcionam bem até deixarem de funcionar… Eles rapidamente levaram as bactérias a desenvolver resistências. E quando as pessoas têm uma infeção que nenhum antibiótico pode curar, é preciso olhar para outros lados. A terapia com fagos pode ser usada quando outros tratamentos falham.

Se a nossa saúde depende tantos dos vírus, a vida humana existiria se os vírus não existissem?
Bem, as bactérias podem existir sem os vírus. Por isso, a vida pode existir — quero dizer, a vida celular pode existir sem os vírus. Mas… parece-me que os vírus desenvolveram-se muito cedo na evolução da vida. Não diria que os vírus são muito centrais, mas são definitivamente inevitáveis.

E como é que eles se desenvolveram?
Há várias maneiras de os vírus se terem desenvolvido. É possível que um pedaço de ADN de uma bactéria ou de outra espécie se tenha soltado e tenha sido capaz de se copiar ao utilizar uma célula como hospedeiro. Ou seja, é possível que alguns vírus sejam genes párias que escaparam dos genomas e tornaram-se parasitas, mas algumas pessoas já sugeriram que outros vírus tenham… Podem ter-se formado logo na origem da própria vida, quer dizer, ainda antes de a vida ser como a conhecemos. Toda a vida celular usa ADN nos seus genes, depois fazem cópias desses genes em ARN, que só tem uma cadeia, para fazer proteínas. Mas há vírus que só usam o ARN, tanto que a Covid-19 é causada por um vírus de ARN, não tem ADN. Por isso, alguns cientistas sugeriram que toda a vida começou com o ARN e que essa foi a primeira molécula genética. Chamam-lhe um mundo de ARN e essas podem ser as primeiras moléculas viventes — apenas pequenas cadeias de ARN, talvez concentradas em algum lado dentro de um vulcão. Hoje ainda existem partículas dessas — chamamos-lhes viroides e são apenas pequenos pedaços de ARN muito simples que infetam batatas e outras plantas, mexem-se de planta para planta e essas plantas podem fazem mais partículas de ARN. Por isso, algumas pessoas sugeriram que esses viroides são sobreviventes do mundo de ARN, que se formaram há quatro mil milhões de anos.

Sabe, eu não acho que esta questão possa ser resolvida brevemente porque ninguém consegue chegar a um acordo sobre o que a vida é. Mas certamento é claro que os vírus são uma parte incrivelmente importante do mundo vivente. A maior parte dos genes na Terra estão em vírus. A diversidade genética dos vírus é muito maior que qualquer outra coisa.
Carl Zimmer, autor de Um Planeta de Vírus

Reparei que por vezes se refere à existência dos vírus como “vida”. Um vírus vive?
Depende da definição de vida que usarmos, porque não há uma definição universalmente aceite do que é a vida. Eu tenho um novo livro chamado “Life’s Edge” onde falo sobre o problema de compreender o que é a vida. Se decidirmos que a vida tem de incluir um metabolismo, os vírus não vivem. Mas se acharmos que o que é importante na vida é a evolução e a adaptação e a replicação, os vírus fazem isso tudo e algumas pessoas dizem que, por isso, os vírus estão vivos. Mas também há algumas pessoas no meio que dizem que, quando os vírus são apenas cápsulas que contêm genes que flutuam por aí sozinhas, não estão vivas. Mas qaundo entram numa célula, transformam-se em algo inteiramente novo, que às vezes é chamado “virocell” [uma mistura entre a palavra “vírus” e “cell”, que significa “célula” em inglês] e está vivo. Nesse sentido, os vírus cruzam a linha entre estar vivo e não estar vivo uma e outra vez. Sabe, eu não acho que esta questão possa ser resolvida brevemente porque ninguém consegue chegar a um acordo sobre o que a vida é. Mas é, certamente, claro que os vírus são uma parte incrivelmente importante do mundo vivente. A maior parte dos genes na Terra estão em vírus. A diversidade genética dos vírus é muito maior que qualquer outra coisa.

Carl Zimmer também escreveu Life's Edge, publicado este ano

Penguin Random House Speakers Bureau

Escreveu “Um Planeta de Vírus” há dez anos. Nas suas investigações, deparou-se com alguma pista que indicasse que uma pandemia como esta estava tão perto de acontecer?
Numa das primeiras edições do livro, escrevi sobre o surto de outro coronavírus que causava o SARS [Síndrome Respiratória Aguda Grave]; e expliquei como ele teve origem em morcegos. Falei sobre como um número de vírus emergentes vieram de morcegos e de outros animais e escrevi que os cientistas estava preocupados que outros vírus, talvez um coronavírus, também passasse para nós e como isso podia provocar uma pandemia muito mais perigosa. Quero dizer, não fiz a previsão por minha própria iniciativa: estava a descrever o que os cientistas estavam a dizer há tantos anos e agora aconteceu. Por isso, para a terceira edição que agora foi publicada, escrevi sobre a Covid-19. E digo que esta é uma pandemia que não devia ter surpreendido ninguém. Quando ouvir alguém dizer: “Ninguém podia ter previsto que isto ia acontecer”, pode mostrar-lhe o meu livro e explicar-lhe que estavam errados. As pessoas sabiam que isto ia acontecer e não fizeram nada para impedir.

Esta nova estirpe de coronavírus já custou muito à economia mundial. Talvez uns 10 ou 20 biliões de dólares, as estimativas continuam a aumentar. Mas investir 10 mil milhões de dólares em investigação numa vacina contra os coronavírus custaria 1.000 vezes menos. Imagine gastar algum dinheiro num projeto científico e depois ganhar 1.000 vezes o seu investimento. Foi o que podíamos ter visto e não fizemos.
Carl Zimmer, autor de Um Planeta de Vírus

Quem devia estar a ouvir e porque é que não ouviu?
Quer dizer, toda a gente devia estar a ouvir os cientistas e certamente que os governos precisam de levar a sério o que dizem os cientistas, mas os cientistas costumam dizer aos governos sobre descobertas inconvenientes e ser geralmente ignorados. No que toca à pandemia, os governos ouviram um pouco, investiram um pouco de dinheiro a preparar para a próxima pandemia. Mas foi uma quantidade mesmo pequena e, por isso, o progresso foi muito lento. Por exemplo, depois da epidemia de SARS, alguns cientistas foram capazes de arranjar algum dinheiro para tentar descobrir como fazer uma vacina contra o SARS. Mas isso aconteceu muito devagar, em parte porque o SARS desapareceu e não parecia haver um problema. Depois, em 2015, outro coronavírus passou dos morcegos para os camelos no Médio Oriente, o que deu origem ao MERS. As pessoas começaram a trabalhar mais numa vacina para os coronavírus, mas o MERS causou menos de 1.000 mortes e, mais uma vez, quem tinha estes projetos recebia pouco dinheiro e ele esgotou-se. Os trabalhos ficavam guardados na gaveta. Ou seja, havia pessoas que há anos já diziam que, com investigação suficiente, podia-se criar uma vacina que podia proteger contra todos os coronavírus. Todos, até mesmo aqueles que ainda não vimos. Mas não tiveram muito apoio. A questão é que as pessoas podem pensar que gastar milhões e milhões de dólares em vacinas é mesmo muito dinheiro e que era melhor gasto se o gastássemos com outras boas causas, como alimentar as crianças. Quer dizer, não tenho nada contra alimentar crianças, mas também devíamos arranjar o dinheiro para nos prepararmos contra estas pandemias. Esta nova estirpe de coronavírus já custou muito à economia mundial. Talvez uns 10 ou 20 biliões de dólares, as estimativas continuam a aumentar. Mas investir 10 mil milhões de dólares em investigação numa vacina contra os coronavírus custaria 1.000 vezes menos. Imagine gastar algum dinheiro num projeto científico e depois ganhar 1.000 vezes o seu investimento. Foi o que podíamos ter visto e não fizemos.

É aceite que este coronavírus veio de um morcego. É mesmo essa a melhor explicação para a origem do vírus?
Muitas doenças ao longo de milhares de anos passaram de animais para humanos — aliás, é algo sobre o qual os cientistas têm especulado ser a origem de vermes parasitas como as ténias. Talvez viessem das carcaças dos animais que os primeiros humanos esgravatavam na savana, depois colonizaram-nos e tornaram-se parasitas humanos. Quando domesticámos animais como as galinhas e as vacas, fomos expostos às suas doenças, como a tuberculose, os ratos começaram a morar ao nosso lado, a comer da nossa comida nos estaleiros e passaram as doenças que eles tinham. Há muitas investigações a mostrar que este processo está a ser acelerado porque não só estamos expostos a estes animais com quem convivemos mais proximamente, como também estamos a ser expostos a novos vírus de animais selvagens — em parte porque estamos a caçar mais animais e mais intensamente, mas também porque estamos a destruir ecossistemas e os animais ficam mais próximos de nós; e porque há um grande tráfico de animais selvagens como comida. É por isso que estamos a ver cada vez mais destas coisas. E se queremos desacelerar isto e não termos tantos vírus a passarem para nós, então precisamos de parar de nos pôr no caminho de todos estes vírus dos animais.

Com o VIH, só sabemos que ele passou em vários momentos em África dos chimpanzés e macacos, mas não sabemos que chimpanzé morreu às mãos de que caçador, que depois transmitiu o vírus. Nem nunca saberemos. Mesmo assim, continuamos a conseguir descobrir muito sobre a sua origem. Portanto, acho que vamos descobrir mais sobre a origem do SARS-CoV-2 nos próximos anos. Mas não acho que vamos descobrir quem foi a primeira pessoa a apanhá-lo.
Carl Zimmer, autor de Um Planeta de Vírus

E a teoria de que o vírus pode ter vindo de um laboratório, há argumentos razoáveis que a sustentam?
A ideia de que o vírus foi criado artificialmente… Eu não vejo nenhuma boa evidência para isso, de todo. Isso implicaria que as pessoas saberiam produzir algo como o SARS-CoV-2 quando ainda hoje os cientistas estão a tentar perceber como é que ele funciona. Há muita coisa sobre o SARS-CoV-2 que os cientistas ainda estão a tentar compreender, então como seria possível que eles o tenham produzido? É por isso que, por muitas razões, não acho que estas afirmações de um vírus criado contenham algum mérito. Quanto à fuga de um laboratório, sabemos que às vezes os vírus escapam de laboratórios. Acontece de vez em quando na história da ciência. As fugas de laboratórios acontecem, eu só não vi evidências convincentes de que foi isso o que aconteceu com o SARS-CoV-2.

Que fugas de laboratório já ocorreram na história da ciência?
Acredita-se que uma estirpe do vírus da gripe nos anos 70 escapou de um laboratório da União Soviética e provou um certo número de infeções. É um exemplo. Ou seja, é concebível que isso aconteceu, mas, por outro lado, o instituto na China de que toda a gente fala estava a tomar várias precauções para que isso não acontecesse. E não é que estas coisas só aconteçam na China. Deixe-me colocar as coisas desta maneira: é uma possibilidade teórica. Mas isso não é suficiente para dizer que há argumentos convincentes… Os vírus que fugiram de laboratórios no passado, sabemos que o fizeram porque há evidências de que isso aconteceu. Ainda não há evidências de que isso tenha acontecido com o SARS-CoV-2.

Alguma vez vamos descobrir a origem do coronavírus?
Nós só temos uma ideia geral de como muitos dos vírus emergiram. Com o VIH, só sabemos que ele passou em vários momentos em África dos chimpanzés e macacos, mas não sabemos que chimpanzé morreu às mãos de que caçador, que depois transmitiu o vírus. Nem nunca saberemos. Mesmo assim, continuamos a conseguir descobrir muito sobre a sua origem. Portanto, acho que vamos descobrir mais sobre a origem do SARS-CoV-2 nos próximos anos. Mas não acho que vamos descobrir quem foi a primeira pessoa a apanhá-lo.

E vamos habituar-nos à Covid-19, lidar com ela como lidamos com a gripe?
Havemos de lá chegar, mas a questão é quantas pessoas terão de morrer até isso acontecer. A gripe também já foi uma pandemia como esta, tanto que um grande número de pessoas morreu por todo o mundo de gripe em 1918. Muito menos pessoas morrem agora com a gripe sazonal e muitos dos vírus da gripe que infetam as pessoas são descendentes diretos da gripe de 1918. Ela continua connosco, só há mais imunidade contra ela e há menos oportunidade de causar danos severos. Mas ainda podemos ter pandemias de gripe também! Quando dizemos “só a gripe”, temos de ser cuidadosos porque, a qualquer momento, pode surgir um novo vírus influenza num pássaro qualquer que pode causar algo bem pior que a Covid-19 em termos de perdas de vida. Temos de nos preparar para isso.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.