Qualquer pessoa que se atire à obra de Dostoiévski para a partir dela fazer um espectáculo só pode ter medo. Carla Maciel reservou esse risco para a sua primeira encenação a solo, “Confissões de Um Coração Ardente”, que está no CCB de 14 a 17 de fevereiro e resulta de um mergulho de três anos na natureza humana sugerida pelo autor russo. Ao mesmo tempo, na televisão, é a jornalista de investigação que tem em mãos um caso de corrupção ligado ao primeiro-ministro. A série é “Teorias da Conspiração” e passa às sextas-feiras na RTP.
Carla Maciel nasceu no Porto, cresceu à volta da mesa, em constantes conversas demoradas que os seus pais faziam com amigos, mais comes e bebes. Por falar nisso: a mãe da atriz/encenadora fazia os melhores bolinhos de bacalhau com feijão frade da Festa do Avante. E sim, isso significa que durante a infância e consequente adolescência ajudou a montar o evento e assistiu a reuniões na sede do PCP. À boleia do pai, esteve numa banda de música popular portuguesa e tocou em vários pontos do país. Saltou para o teatro através de um curso de três meses na Seiva Trupe, companhia com a qual começou a trabalhar. Veio para Lisboa, esteve sem trabalho, voltou ao Porto, retornou a Lisboa. Hoje é uma atriz distinta, com um currículo difícil de igualar. É ainda mulher de Gonçalo Waddington, com quem tem dois filhos, os mesmos de quem muito se falou nesta entrevista. Deles e da escola, de educação, da falta de mundo nas salas de aula. Tudo para explicar que se o medo existe é preciso dizer-lhe quem manda.
A série da RTP “Teorias da Conspiração” tem um slogan que diz “A culpa é do primeiro-ministro”. Parece-lhe um bom ponto de partida?
Isso vai fazer-me falar… mas sim, acho que sim, é um bom ponto de partida para se falar do que se está a passar no país. As pessoas estão já esgotadas e há sempre culpas para apontar. Mas acho que nos devemos responsabilizar, há uma grande facilidade em culpar os outros pelo que está a acontecer, temos que tomar consciência que não podemos estar sempre a apontar o dedo porque nós também somos políticos. Nós também fazemos política, na sociedade.
E muitas vezes fugimos disso.
Claro. No civismo, na ecologia, e de repente parece que apontamos sempre para os órgãos e pessoas que estão destinadas a fazer, mas essas pessoas também não podem fazer tudo sozinhas, além disso, somos nós que as colocamos lá. Acho que é sempre um bom ponto de partida, sim, mas não para culpar os outros. Claro que me apetecia agora começar a dissertar sobre a Caixa Geral de Depósitos, os Cristianos Ronaldos, todos esses escândalos de corrupção…
Temos tempo.
Os escândalos sucedem-se e é normal que as pessoas se sintam injustiçadas no meio de tanta pobreza e tanto défice e de má distribuição de dinheiro na educação, na cultura e na saúde. Mas nós também temos que tomar uma posição ativa.
Posso perguntar-lhe o que acha do atual primeiro-ministro?
Simpatizo com o António Costa, sim, mas acho que há muita coisa por fazer. Não falo só da cultura, vejo – através dos amigos dos meus filhos que frequentam a minha casa – como é que algumas crianças estão a ser educadas. Se fores um bocadinho político e observador percebes que ainda há tanto por fazer. Há um histórico que devia já ter sido corrigido e não foi. Relativamente à cultura e àquilo que faço, confesso que estou bastante preocupada, não só comigo, mas também com os jovens que estão a ser formados nesta altura, para onde é que vão trabalhar estas pessoas? E as pessoas mais velhas que estão sem trabalho? Não há dinheiro, não há salas disponíveis para ensaiar, sinto que andamos a pagar para trabalhar. Há muita gente nesta condição, continuamos a ganhar o mesmo e o nível de vida não para de aumentar.
Não é proporcional.
De forma nenhuma. Se quiseres ter uma vida familiar e uma casa com algum conforto é preocupante. E não falo apenas de gente com a minha profissão, falo de todas, é impossível viver com o salário mínimo, as casas estão caríssimas, é muito preocupante.
Voltando ao primeiro-ministro ficcionado, ao das “Teorias da Conspiração”, o que é que ele fez? Porque é que a culpa é dele?
Isto foi o Paulo Pena e o Artur Ribeiro que se inspiraram no caso do Sócrates, “Operação Marquês”, para ficcionar esta série. Supostamente, este primeiro-ministro tem algo que ver com o Sócrates. Acho um ato interessante e corajoso da parte da RTP fazer algo deste género e não ter problemas com isso, o guião não ficar na gaveta só porque foi inspirado nesta história. Quando li o artigo que resumia tudo isto, na “Visão”, fiquei tão deprimida, talvez durante uma semana. O que é que vai ser o futuro? De repente é tudo mau, eu que sou uma utopista e alguém muito positiva e solar, fiquei bastante em baixo, não queria ouvir falar mais daquilo.
Portanto é um escândalo de corrupção. Num plano mais aberto: a política parece-lhe um bom objeto de trabalho?
Pano para mangas.
E não é a primeira vez que está neste universo dos corredores do poder, já havia feito “Os Boys”.
N’“Os Boys” era uma assessora. É interessante na medida em que é um mundo que nos ultrapassa. Não fazemos ideia, é uma máquina, não faço ideia nem quero fazer, acho que é um sítio onde não ia saber estar.
Nunca seria candidata a uma carreira política, então.
Acho que não. Não tenho essa pretensão, enquanto que, por exemplo, Direito já era algo que me interessa, já podia ser uma juíza, faço bons juízos de valor, gosto de avaliar os outros, sou uma pessoa de relações e na política isso não existe. Quer “Os Boys”, quer agora as “Teorias da Conspiração” são duas produções que me levam para sítios onde nunca irei estar e isso para mim é um miminho.
“Gosto de conhecer gente e de falar, de coração aberto”
Faz de jornalista de investigação. Costumamos dizer que é uma espécie complexa, o desafio também foi complexo?
Bastante. Para já, não é uma jornalista apenas de produção diária, tinha responsabilidade, era-lhe dado um caso sério, que levava meses, que tinha de descobrir e resolver, quase como nos policiais. Descobri que esta é uma mulher séria, que só vive para o trabalho, que não tem relações, está embrenhada na vida de jornalista e quando recebe este caso agarra-se com tudo. Senti que esta jornalista tinha que ter um discurso muito fluente, um raciocínio muito rápido, a linguagem não me era familiar, então senti que ela não podia engatar, que aquela velocidade tinha que ser a forma como ela fala, o pensamento é muito fluído.
Falamos de jornalismo de investigação, um exemplo de contra-poder. Gosta desse lugar? Podemos dizer que a Carla Maciel é da oposição?
Da oposição não. Tenho os meus ideais e as minhas lutas, como todos, a minha luta é para continuar integrada nesta sociedade sem deixar de ser eu própria, quando isso acontece como é que se lida com os outros? Gosto de conhecer gente e de falar, de coração aberto. Portanto, não diria propriamente que sou da oposição, mas sim, se tiver que contrariar alguém porque isso vai contra a forma como penso, não tenho qualquer problema, tendo sempre como base o respeito.
E a conversa?
Sim, gosto muito de conversar, sou curiosa e interessada, gosto de ouvir, pessoas que me estimulam. Gosto muito de observar os comportamentos, o meu pai dizia-me que em pequena, nas festas, filmava as pessoas e depois chegava a casa e ia ver.
O nome desta série é bastante sugestivo. E apesar de nos remeter para uma ideia de política e corrupção, sabemos que isto nos pode levar também para outro tipo de universo, sobretudo ao cosmos e à eventual possibilidade de vida alienígena. Interessa-se por isso?
Sim, até porque o Gonçalo [Waddington] gosta muito dessas coisas. É um mundo curioso, sem dúvida. O Huxley e o Houellebecq falam muito sobre isso e eu li os livros deles e é algo intrigante e fascinante. Se acredito ou não… não sei, mas possivelmente, daqui a uns milhares de anos, pode ser que se descubra qualquer coisa mais séria.
Mas não tem nenhuma teoria sobre a criação da Terra?
Não sou católica, portanto acredito na teoria normal. Respeito os criacionistas, mas não fui educada assim. Mas intriga-me o facto de irem buscar essa história para justificar a criação do universo.
Portanto também acredita que o homem chegou à Lua e que não foi uma aldrabice?
Acredito… isto agora parece assim uma conversa de loucos… mas sim, acho que sim, se bem que aquela coisa da bandeira, não sei como é que se explica aquilo. Bom, mas é por isso que é fascinante, porque são assuntos que não se concretizam, que ficam em aberto.
Bons objetos para fazer espectáculos.
Claro, o Dostoiévski é sobre isso, a fé acompanhou-o a vida toda, ele tornou-se um cristão ortodoxo a meio da vida, porque quando ia ser executado, estavam quase a cortar-lhe a cabeça, muda o czar e afinal ele é enviado para um campo de trabalhos forçados. E torna-se um cristão ortodoxo porque acha que aquilo foi um milagre.
Quase como se ele sentisse que tivesse que fazer essa conversão como uma espécie de agradecimento.
Provavelmente.
Como é que chegou a Dostoiévski?
Li o Crime e Castigo há muitos anos e sempre gostei muito do autor, é alguém que fala da natureza humana de uma maneira que penetra na alma, identifico-me com ele, e sim, é preciso ter uma certa maturidade para perceber aquilo, porque é denso e profundo. Em 2015 comecei a reler a obra dele, li Os Irmãos Karamazov, o seu último livro, e quando surgiu a ideia tinha só três ou quatro livros como ponto de partida, há três anos começou tudo a fazer sentido, apeteceu-me mergulhar na obra e li tudo. Fui-me deixando levar pela narrativa e pelas personagens, o facto de ele entrar em casa e na alma porque fala dos sentimentos e das emoções como ninguém, o que é que tu estás a pensar agora, que estou aqui a falar contigo? Ele fala em polifonia… e é engraçado, à medida que vais lendo, desde o primeiro livro “Gente Pobre” até aos “Irmãos Karamazov”, o primeiro com 20 e tal e o último com 60, tu aí percebes o amadurecimento de um autor, os ideais, as ideias que foram ficando para trás. É fixe e desafiante atirares-te assim a uma obra inteira, também estava a precisar de algo que me estimulasse artisticamente, não gosto muito de ficar estagnada, e como surgiu a ideia de encenar pela primeira vez sozinha teria que ser algo de risco…
…de investimento.
Isso. Dostoiévski é o autor ideal para esta altura da minha vida enquanto mulher, mãe, artista, cidadã.
É efetivamente a sua primeira encenação a solo. Tem um elenco maravilhoso…
Tenho sim, acho que tive sorte e que ao mesmo tempo escolhi bem, estive assim a agarrá-los, embora não seja possível agarrar um ator durante dois anos, não há dinheiro para isso, voltamos sempre ao dinheiro, mas tenho pessoas fiéis comigo, que acreditaram no projeto e que guardaram o seu tempo para nesta altura poderem estar comigo.
Sente-se mais apreensiva para este projeto por ser uma encenação sua?
É um risco sempre. Mas pior é não fazer.
Mais é mais pesado que um trabalho de atriz onde é dirigida?
É, muito mais, tenho a responsabilidade toda, tenho mais ou menos o espectáculo na cabeça, mas dou toda a liberdade para criar, gosto de convidar pessoas para entrarem neste universo comigo e fazerem as suas propostas. Não tenho nada de definido, luz e cenário, nada, acho que a criação é esta partilha, mas é uma grande responsabilidade. E estaria a mentir se dissesse que não estou com medo, mas o medo faz parte do risco e do jogo, o medo é uma coisa boa de sentir. E também é algo que gosto de passar aos meus filhos.
Como assim?
Dizer-lhes para irem em frente, para enfrentarem as coisas. O medo é um boicote à auto-estima, não contem comigo para isso. Parece que está ali qualquer coisa, que somos nós que criamos.
Isso faz-me voltar a algo que disse há pouco, que é muito positiva. Isso não lhe faz mal?
Não. Tenho as minhas desilusões, normais, todos temos, mas estou sempre a acreditar, nos amigos, na família, em situações que me colocam em causa, faz parte, aceito. Desde que fui mãe que relativizei mais as coisas, também não tive um percurso rápido, trabalho há 27 anos, mas foi tudo com calma, comecei com 17, no Porto, depois vim para Lisboa, tive que me mostrar porque ninguém me conhecia. Gosto de viver um dia de cada vez, acho que vivemos tudo muito rápido, podemos vivê-lo intensamente, mas isso não significa velocidade. Por exemplo, estou a dar esta entrevista e sei que o meu filho hoje vai ficar na escola até às 18h30, algo que não é normal.
A gente acaba já isto então.
Não, não, já está tudo controlado, mas isto é uma coisa minha, quero fazer tudo perfeito, às vezes até demais, até me auto-mutilo, sou muito intensa nas coisas que faço. E às vezes sinto que a gente se esquece de olhar para os outros, de perguntar apenas: “Estás bem?”. Sou muito observador e vejo pessoas muito tristes… também sei que não é fácil viver, mas podemos viver com um bocadinho de alegria caramba, isto vai acabar depressa.
Portanto nega o direito à tristeza.
Não nego, também tenho esses momentos, mas tento negar, sim. Acho que temos pouco poder de transformação, se estás triste há que dar a volta.
Não é que saiba bem a tristeza, não é isso, mas não pode também a tristeza ser um ato político?
Isso é interessante, e agora que penso nisso pode até haver quem já o faça, o problema é que as pessoas que andam tristes andam só tristes, não se manifestam tristes e se não olhamos não há forma da tristeza ser um ato político. E a verdade é que também não me posso dar ao luxo de estar sempre triste, tenho dois filhos.
“As pessoas do Norte não são brutas, são frontais”
Que idades têm os seus filhos?
14 e 9.
Deduzo que já percebam o que é isto de ter pais artistas com atenção mediática. Como é que fazem essa gestão?
Desde muito cedo que fizemos questão de os implicar – sem que eles percam as rotinas e os momentos deles – na nossa vida, o que é que fazemos, como é que são os nossos horários, isto sem interferir com a educação deles. Eles lidaram sempre muito bem, acompanham-nos muito, “o que é que agora estás a ler, mamã?”, esta coisa do Dostoiévski… o Mário teve uma atenção de me oferecer um livro dele que ainda não tinha lido, há uns dois meses, e isso é interessante, eles sabem o trabalho que estou a fazer, aquilo que o Gonçalo faz, é muito importante este diálogo. Nisso sinto que estou a fazer um bom trabalho, não é para me elogiar, não preciso de uma medalha porque é mais do meu dever, ter filhos continua a ser uma opção, eles lidam muito bem com uma maior ausência porque se está a aproximar a estreia, e sempre fizemos questão de os compensar por algum momento em que não possamos estar, temos sempre uma rotina diária familiar e isso é muito importante.
Já viram espectáculos vossos?
Sim.
E o que é que dizem?
Dão a opinião deles, também os levamos a ver espectáculos de amigos, e a opinião é sempre muito pura e sincera, e nós dizemos “não há mal nenhum se não gostarem”. Já chegaram a dizer “não gostei muito daquela parte, acho que não estava muito bem”.
É difícil para uma mãe ouvir isso?
Não, de todo, lido bem com isso, é aliás essa sinceridade e frontalidade que as crianças têm, que se está a perder. Eu também sou um bocado assim, deve ser por ser do Norte, até se costuma dizer que as pessoas do Norte são brutas. As pessoas do Norte não são brutas, são frontais. Acho que é muito importante existir essa sinceridade entre as pessoas, e sobretudo na família. Foi algo que sempre vivi muito em miúda, os meus pais faziam sempre jantares lá em casa e conversavam muito e eu estava à mesa, para ali, miúda.
A forma como educa os seus filhos é muito diferente da forma como foi educada?
Tento seguir um padrão de diálogo. Sempre falámos muito à volta da mesa, o “como é que correu o teu dia” era obrigatório, todos falávamos e ouvíamos os meus pais a conversar, muitas vezes até de problemas e assuntos mais sérios. E depois claro, eles lá ficavam a conversar e nós íamos para os quartos. Tento seguir esse padrão, a coisa da organização, de conquistar as coisas, de seres tu próprio. Venho de uma família de classe média, nunca foram uns pais muito de ler, o meu pai sempre foi mais ligado à música.
Pois. A Carla vai para teatro, mas os seus pais não tinham grande relação, certo?
A minha mãe era funcionária pública. O meu pai era vendedor, só que tinha a paixão da música. Fiz o 12.º ano e era para entrar para advocacia, de repente apareceu-me um curso de teatro na Seiva Trupe e eu concorri, desde pequena que ia para a música com o meu pai, que tinha um grupo de música popular portuguesa, foi o meu pai que me ensinou a cantar, a tocar guitarra, cavaquinho, passávamos muitos serões a tocar e a cantar em casa. Depois tinha um grupo de dança, era uma miúda muito ativa. E então aquilo foi natural, disse “olhem, vou fazer um curso de teatro”, o meu pai também fazia teatro amador, também ia com ele para as freguesias, fazia casamentos.
Chegavam a fazer digressões com essa banda?
Sim, íamos cantar à Festa do Avante, entre outras coisas.
Carla Maciel já atuou na Festa do Avante… Ninguém sabe disto.
É verdade, no Palco 1º de Maio e o grupo chamava-se 1º de Maio.
Se estou a perceber, foi para o teatro um bocado assim como uma outra acividade, mas acabou por ficar, certo?
Sim, os meus pais depois disseram “OK, se gostas disso continua”. Tinha 17 anos, comecei logo a trabalhar na Seiva Trupe, foi muito fixe, fiquei lá cinco anos, só que de repente começas a crescer e a querer novos mundos, precisei da ajuda monetária dos meus pais para vir para Lisboa porque não tinha onde ficar, não conhecia ninguém.
Como é que foi isso?
Essa foi uma fase dura, mas onde amadureci bastante, vim para aqui tentar a minha sorte, bati às portas de todos os teatros, Teatro Aberto, A Comuna, Cornucópia, tinha 21 anos e ainda fiquei um ano sem trabalho, a viver aqui e a fazer só umas coisinhas, e de repente surgiu uma bolsa para a Gulbenkian de um curso de Commedia Dell’Arte, e eu concorri, depois comecei a fazer uma novela, mas era só uma vez por semana. Estive quinze dias a fazer o curso e foi quando o Teatro Meridional soube disso e me chamaram a mim e ao João Ricardo. Nessa altura estava quase a desistir, voltei duas vezes para o Porto porque não tinha dinheiro para estar aqui. Comecei a trabalhar com o Meridional e lá fiquei por cinco anos.
Grande escola.
Sem dúvida, deu-me muita coisa. Aprendi a improvisar que era algo que desconhecia porque vinha de uma escola um bocado mais clássica, foi um grande upgrade no meu crescimento como atriz trabalhar com o Miguel [Seabra] e com a Natália [Luiza], claro que depois vamos crescendo e desejando outras linguagens. Eles tinham uma frontalidade incrível enquanto encenadores, “epá isso não é bom”, quando tu aceitas isso reinventas-te, vais fazer de outra maneira, não há egos.
Por que altura é que se deu essa transição para Lisboa?
Em 1999.
É nessa altura que entra no “Jaime”, correto?
Exatamente. Foi o meu primeiro filme, até então só tinha feito umas coisas pequeninas em televisão. E é curioso, agora, passando tantos anos, voltei a trabalhar com o António-Pedro Vasconcelos, no “Parque Mayer”.
O que é que se lembra dessas rodagens?
Era muito nova, não tinha noção nenhuma do que era cinema e ainda hoje sinto que é no cinema que estou menos à vontade.
E o que fez menos.
Sim.
Mas tem feito nos últimos anos.
Tenho, o cinema é fascinante, é uma linguagem em que parece que é tudo falso. Estamos para ali sentados numa posição estranhíssima, e depois no ecrã fica maravilhoso, mas eu sei que não estava nada bem naquele momento. Há uma magia que transforma o cinema. Os atores às vezes estão em cima de coisas, cheios de microfones, não se pode fazer barulho com os talheres e ninguém faz ideia, ninguém vê. No cinema é tudo muito mais contido. E isso é uma linguagem interessante para talhar.
A contenção?
Sim, claro, porque de repente parece que não estou a dar nada. Mas não é bem assim.
“A minha mãe fazia bolinhos de bacalhau na Festa do Avante”
Estava a contar que se reencontrou com o António-Pedro Vasconcelos passados estes anos todos.
Sim. Nunca mais nos vimos depois do “Jaime”, seguíamos o trabalho um do outro, mas foi isso. E foi, de novo, a Patrícia Vasconcelos que falou comigo, porque quando vim para Lisboa, bati a tantas portas, inclusive à da revista, porque tinha feito comédia no Porto, na Seiva Trupe, tinha esse lado, sabia. Então fui à revista e o primeiro trabalho que tive foi no Teatro ABC, foi a coisa mais surreal que me aconteceu na vida. Prova de que tanto podes estar em cima como em baixo. O ambiente de revista é muito curioso.
Fale-me disso.
Há as piadas, quem tem que dizer as piadas, quem tem que ficar com a última deixa, há hierarquias, que é uma coisa que hoje em dia não há tanto no teatro, somos uma equipa, está tudo a trabalhar para o mesmo. É uma experiência, é uma aprendizagem. Cortaram-me a roupa, rasgaram-me a roupa, não me pagaram.
Isso tudo?
São aquelas coisas que acontecem na revista, há pessoas que têm essas histórias, e também me aconteceram a mim.
Mas cortaram-lhe a roupa por travessia, foi isso?
Não sei. Mas nunca mais me esqueço que ia para me vestir em cena e a minha saia estava rasgada e eu tive que transformar aquilo para entrar em cena num espectáculo.
Nasceu no Porto, em 1974. Isso tem algum simbolismo para si?
Apanhei muitas manifestações, acompanhei a vida política muito de perto, por isso é que disse que não era um sítio para mim. Desde pequena que os meus pais tinham uma vida política ativa, faziam parte de um partido, de uma equipa que trabalhava, a minha mãe fazia bolinhos de bacalhau na Festa do Avante, bons bolinhos de bacalhau com feijão frade, acompanhei toda esta luta política. Segui muitas manifestações…
Jornadas de trabalho…
Sim, todas as sextas eles iam à sede, estive sempre presente nas reuniões dos partidos, aquilo que eles discutiam, depois a própria preparação da Festa do Avante, tudo isso fez parte da minha infância e juventude, talvez por isso seja uma pessoa muito pragmática, quando há um mas para mim a gente resolve, o que importa é fazer.
Que mais coisas fazia, que hobbies tinha?
Tinha tempo para tudo, ainda hoje faço muita coisa, leio, faço comida, tenho tempo para os filhos, para os amigos, divido muito bem o meu tempo, gosto de distribuir o meu amor e a minha amizade por muita gente, gosto de me distribuir.
Parece-me que não é só pragmática, é muito organizada.
Sou, isso sou e vem da minha mãe. É claro que convém não sermos obsessivos, às vezes até sou, mas aí até culpo a minha mãe. Mas a verdade é que a organização permite fazer muita coisa. E só não faço mais porque não tenho tempo. E porque às vezes também preciso de descansar.
Pois, ia perguntar-lhe se não se cansa.
Canso, claro, e gosto muito de dormir, mas também leio muito e vejo muitas séries. Sempre fiz muita coisa: dança, correr, ir para a discoteca, ajudar uma grande amiga no Porto cujo pai era agricultor, então ia com ela ajudar para o campo para ela não se sentir sozinha.
Como é que esta organização toda e este pragmatismo lidam com Dostoiévski?
É claro que a sua densidade nada tem que ver com pragmatismo, mas também tenho esse lado utópico, sonhador, que me leva para estes autores do romantismo, o Goethe, o Proust. E o Dostoiévski fala-te das emoções de uma forma muito dura, fala-te da humilhação, da vergonha, da sinceridade, da honestidade, de um ponto de vista um bocado mais russo, são viscerais, são intensos.
O que é que se prevê que possa acontecer em cena?
Há um ponto de partida, que é o amor. Fui agarrar no Dostoiévski partindo do amor, claro que há um bocadinho de tudo da natureza humana, mas aqui ele está de forma transversal, porque de facto fui à obra toda. No fundo, em Dostoiévski, quando um homem ama uma mulher, há uma mulher em palco que representa todas as mulheres dostoiévskianas e de repente há cinco homens que são as cinco fases que o marcaram mais. Cinco homens a incidir sobre uma mulher, eles estão ali todos por amor, o passado não interessa porque Dostoiévski é um momento.
A Carla também está aqui por amor.
Claro… quem não tem amor… se não tiver amor sinto-me pobre. É o meu ponto de vista. Sempre tive muito amor dos meus pais. Os humanos vêm da infância, são o que apreendem em bebés, daquele amor que recebem. Por exemplo, hoje há muitos mais que metem os filhos em terapia, a terapia é simplesmente falar, é ter alguém que está a ouvir, de repente estamos aqui há uma hora a conversar, mas houve qualquer coisa… não sei, sinto que não há grande espaço para conversar em família, atualmente. E as escolas não ajudam. Não deixam os jovens falar. A matéria? A matéria eles sabem, basta irem ao Google. Preocupa-me muito. Vejo muitas crianças com falta de atenção e de partilha. Deixou de haver debate.
Pais, professores, se estiverem a ler esta entrevista…
Exato. É que fazerem seis testes numa semana é ilegal. Quero que a minha filha tenha aulas de piano e que vá à natação. Os miúdos precisam de mundo, não é de trabalhos de casa.
E a escola ainda não dá mundo.
Pois não. Para mim isto é fazer política, explicar aos professores que há coisas que têm que mudar. Eu daqui a nada pareço o Gustavo Santos a falar, “falta falar, olhar para o outro”, parece uma cena mística, mas não é nada disso, há coisas que fazem falta. Faz falta ter tempo para um café com um amigo e esse amigo estar a falar e eu saberes estar calada e não estar só a querer falar de mim. Mas atenção, isto sou eu a falar numa entrevista.
Foi esse o negócio, sim.
Podemos desligar o gravador e começar a falar do entrevistador.
Eu dispenso, mas obrigado pela atenção. E pela entrevista.
Obrigada eu.