Naquele verão de 2009 António Carvalho pisava as uvas de Castelão no lagar de granito como já vinha sendo hábito em época de vindima. A adega emprestada era de um amigo, que também o ajudava no processo. Uma pausa de dez minutos foi o suficiente para tudo mudar: o amigo saiu para beber um café e quando voltou encontrou o corpo de António caído sobre o mosto de uvas tintas. O enólogo de 41 anos sofrera um ataque cardíaco fulminante e morreu a fazer o que mais gostava: vinho.
O António não é só um vinho branco nascido do Vital, casta autóctone da região de Lisboa conhecida pela raridade com que surge nos rótulos. O António foi também o homem, o enólogo, o marido e o pai que, de certa forma, continua a viver através do projeto que criou. Dez anos após a sua morte, o Casal Figueira persiste e a homenagem também. O António ainda vive no que sempre foi dele: na família e nos vinhos.
De António a Marta, mas sempre Vital
São 11h35 de uma sexta-feira. Não há escadas para aceder à velha adega edificada nos anos 40, situada na freguesia da Vermelha, no concelho do Cadaval. Entre a rua e a porta há um pequeno fosso. É preciso esticar uma das pernas, manter o equilíbrio, e impulsionar o corpo para passar para o lado de lá. Um exercício nem sempre fácil, antes ou depois de provar os vinhos Casal Figueira. Marta Soares, a mulher à frente dos destinos do projeto, não tem por hábito receber pessoas à exceção de clientes e, ocasionalmente, jornalistas. Não é falta de vontade, mas falta de tempo. Lá dentro, multiplicam-se os espelhos de água pelo chão. Ao Observador, explica que tem duas corujas de “estimação”, que já moravam na adega antes de ela chegar. Por isso, o ritual repete-se todos os dias, pela manhã, com Marta a limpar o espaço com uma pistola de pressão de água. É só mais uma das tarefas que faz praticamente sozinha desde que António, o marido e o enólogo, faleceu num repente, caindo sobre as uvas que estava a pisar na adega do amigo. Marta Soares ficou viúva aos 36 anos, com dois filhos pequenos debaixo da asa, e uma marca de vinhos inteiramente dependente de si.
Falar do Casal Figueira é falar da história de amor que uniu duas pessoas de universos tão distintos. Marta Soares e António Carvalho conheceram-se em 1999, ela tinha 26 e ele 32. Ela era uma artista plástica à procura de um atelier no campo e ele um vigneron, isto é, um produtor de vinhos com grande afinco pela terra que contrariara a tendência da família em produzir milhares, senão milhões, de litros de vinho. Aconteceu na quinta de António existir espaço para a arte de Marta e aconteceu Marta apaixonar-se num instante. “Tenho a certeza que se tivesse sido outra pessoa qualquer eu não me teria fascinado. Apaixonei-me por tudo. Pelo homem e pelo que fazia. Foi imediato”, conta enquanto vagueia pela adega que pertenceu ao avó de António: a traça original está toda lá, bem como os antigos tanques de armazenamento em cimento que crescem em altura.
A curiosidade mútua deu tréguas ao choque que a pouco e pouco se foi dissipando. E as duas pessoas aparentemente incompatíveis tornaram-se uma da outra. Não demorou muito para que Marta começasse a ajudar António nos trabalhos da adega. O gosto inesperado pelos desígnios do vinho fê-la mudar de rumo quando recusou uma bolsa para estudar artes plásticas em Nova Iorque, na School of Visual Arts. Com o produtor aprendeu as manhas do vinho e hoje, depois de uma década sem António, garante que foi a sua melhor aprendiz. “O António não era um enólogo de laboratório, era mesmo um fazedor de vinho na vinha. Eu colaborava muito com ele em todas as fases do processo, sobretudo no trabalho de adega que fazíamos muitas vezes ao final do dia, quando ele vinha das vinhas.”
O primeiro vinho de António Carvalho enquanto produtor autónomo, depois de estudar enologia em Bordéus e de apostar em castas francesas ainda hoje de pronúncia difícil, data de 1995. Junto à entrada da adega, no parapeito de uma estrutura envidraça e emoldurada por madeira tingida a vermelho, está uma garrafa desse mesmo ano. “Entre 1995 e 2008, o António produziu, no meu entender, os melhores vinhos brancos que esta região conheceu, embora com características diferentes daquilo que eu estou a fazer agora. Quando ele veio de França decidiu não seguir o negócio familiar e criar uma coisa nova a partir de uma propriedade da família em A-dos-Cunhados, em Torres Vedras, onde plantou 50% castas autóctones e 50% castas francesas com as quais já tinha trabalhado. Ele não pensou em usar uvas comerciais, já na altura tinha uma visão de terroir.” Marta descreve estes anos como sendo de trabalho solitário e comercialmente difíceis, apesar de terem oferecido prestígio ao fazedor de vinhos de nicho.
No ano em que o produtor morreu o Casal Figueira renascia das cinzas e preparava-se para um second round. A quinta Casal Figueira foi vendida em 2007 por motivos alheios à vontade do casal e o novo projeto arrancou com a compra das vinhas de Vital, na Serra de Montejunto, região dos Vinhos de Lisboa. A primeira experiência vínica surgiu em 2008, sendo que apenas foram feitos 1.500 litros daquele vinho. 2009 foi o ano decisivo. António vindimou as uvas de Vital para fazer um vinho por si muito acarinhado. Morreu antes de o ver concluído. Coube a Marta Soares vinificá-lo. “É quase uma epifania da nossa relação. Ele ocupava-se muito mais das vinhas e eu da adega. Parece que tudo ali se cumpriu numa razão de ser.” Desde 2009 que o vinho se chama António.
“As paixões não são constantes”, assegura Marta, referindo-se aos solavancos que o projeto, continuado a solo, sofreu. A viagem não foi sempre a direito e se por vezes houve momentos heroicos, também o desespero bateu à porta. “Durante este percurso de 10 anos houve de tudo em termos de sentimentos. Uma coisa nunca houve: indiferença…” Argumentamos que a indiferença é o oposto do amor. “Ora bem”, acompanha Marta.
A adega onde hoje trabalha era para ter sido herdada por António, e era onde o projeto iria continuar. À produtora hoje com 46 anos valeu-lhe a ajuda de quem ficou: da família e dos amigos, seus e dele, e também da comunidade. “As coisas podiam ter ficado por ali, bastava eu ter medo de continuar.” Nas redondezas encontrou pessoas que se ofereceram para tomar conta dos dois filhos pequenos enquanto ela trabalhava, encontrou quem a ajudasse a descarregar material, encontrou quem não soubesse ou não quisesse dizer “não” quando ajuda era pedida. “Toda a gente sente que este não é um projeto individual.”
“O momento em que receei não conseguir continuar foi quando achei que não ia conseguir ter condições para manter o nível qualitativo do vinho, foi só por isso, nunca foi por falta de vontade”, conta. “Este edifício já tinha sido combinado entre o António e a família dele, mas não estava nada preparado. Um amigo vigneron fracês enviou-me esta prensa porque sabia das dificuldades pelas quais estava a passar”, diz, apontando para a prensa colocada em cima de dois toros de madeira. “Os depósitos eram do António”, continua. “As barricas são feitas por um tanoeiro que conheço pessoalmente, que as faz a pensar no monocasta Vital. As publicidades antigas [referentes a adubos e leveduras] já cá estavam. O piano é antigo, dos meus avós. É a minha mãe que ainda toca nele.”
Um legado e não uma herança
Aos 11 anos, a filha Salomé vai ajudando no que pode — como medir a temperatura de barricas durante a fermentação ou carregar no botão certo de cada vez que a mãe bombeia os vinhos –, o irmão Vicente, três anos mais velho, está a tirar um curso de permacultura. Ambos são fisicamente parecidos com o António, tal como se comprova em fotografias antigas ainda hoje em exposição no escritório da adega, as quais a produtora prefere não tornar públicas. Marta insiste que não os força a nada. Ao longo das pouco mais de duas horas que passamos na adega, garante que o Casal Figueira não é uma herança, é um legado. Durante a entrevista e a visita guiada, Salomé não sai de perto da mãe.
Quando António morreu as decisões penderam sobre Marta Soares. A primeira foi mandar para o lixo todas as uvas de Castelão sobre as quais o enólogo caiu sem vida. A segunda foi vinificar o famoso Vital, que já teve direito a nove colheitas — a de 2018 começou a ser engarrafada há poucos dias. Atualmente, o Casal Figueira tem três referências de vinho. Se o branco (Vital) é reflexo de uma história de amor, os dois tintos (monocastas Castelão e Tinta Miúda) são símbolo da amizade: continuam a ser feitos com o amigo de António, aquele que não chegou a tempo de o “salvar”. “As uvas são dele, ele é o viticultor desde o início. Ao fazer estes vinhos estou, de certa forma, a amenizar aquela terrível memória — porque para ele foi muito difícil não ter conseguido chegar a tempo — e estou a celebrar essa amizade… Quero manter esta colaboração a todo o custo.” Todas as vinhas associadas ao projeto estão na Serra de Montejunto. As de uvas tintas têm entre 40 e 50 anos e estão na encosta sul da serra, e as brancas entre 70 e 120, viradas a norte, no sentido do mar que, em linha reta, nem a 20 quilómetros de distância fica.
Os vinhos mais recentes do Casal Figueira continuam a usufruir do conhecimento biodinâmico, com Marta Soares a assegurar que estão próximos daquilo que poderá ser considerado “vinhos naturais”. Todos os anos faz 4.650 garrafas de branco e 4.000 garrafas de tinto, o que dá sensivelmente 8 mil a 9 mil garrafas de produção anual. Sobre o Vital, o ex-líbris da casa, a produtora diz que é uma casta muito própria, fresca e mineral. Cítrica também, com salinidade proeminente, que geralmente dá graus alcoólicos baixos e não se apresenta muito aromática. Estas uvas não são pisadas — as uvas de Vital são transportadas em frio, em câmara frigorífica, da vinha até à adega e são diretamente colocadas dentro da prensa; posteriormente vão à barrica.
“É uma casta muito sensível à oxidação. Nunca foi considerada uma casta para fazer vinhos de guarda. Era antes usada para fazer a aguardente da Lourinhã”, diz, enquanto beberica um pouco da colheita de 2018, a qual também nos dá a provar vinda diretamente da cuba de inox. No piso inferior da adega, o qual estava até há uns anos inundado com água de uma nascente próxima, sendo por isso apenas acedido de canoa, encontram-se, entre outros vinhos, garrafas de Vital de 2009. Marta pega numa delas, limpa-lhe o pó com uma passagem de mão e mostra-nos a rolha: “Estes vinhos não têm ano… Mas têm a Estrela de David na rolha, é a sua identificação”.
A Estrela de David, explica Marta, é o símbolo do ritual secular “Bons Reis Magos” que todos os anos, de 5 para 6 de janeiro, acontece nas aldeias do Pereiro e Avenal, junto à Serra de Montejunto. Na noite que antecede o dia de Reis um conjunto de pessoas pinta vários desenhos nas paredes de casas locais — os desenhos mudam todos os anos e, nem de propósito, têm sido usados nos rótulos do vinho Vital, mas a Estrela de David é constante. A variedade dos desenhos representa, para a produtora, a variedade dos vinhos que, a cada colheita, exprimem anos diferentes.
As garrafas de 2009 estão numa pilha ordenada nesse piso inferior, em tempos submerso, e fazem parte de uma coleção privada, a ser partilhada com amigos e familiares. Sobretudo com Salomé e com Vicente. Não já, mas um dia. A garrafeira improvisada só foi possível depois de instalado um poço para drenar toda a água, obras que fazem parte de um processo demorado que Marta Soares não sabe quando terminará. O investimento na adega onde António nunca chegou a trabalhar, apesar de a família acordar em ceder-lhe o espaço para os seus vinhos, tem de ser feito pouco a pouco, um ritmo que Marta conhece bem.
Abrir ao público não está nos planos de Marta Soares, ainda que não corte as asas aos filhos se um dia o quiserem fazer. Há falta de tempo: além de carregar caixas, conduzir a camionete frigorífica e o trator, entre outras tarefas associadas ao vinho, é mãe de dois pré-adolescentes, dá aulas de Artes Plásticas na Escola Superior de Arte e Design das Caldas da Rainha e tem ainda um vínculo laboral com uma galeria em Lisboa que expõe os seus trabalhos. Essa é outra conversa e é também outra adega.
O espaço da década de 40 onde Marta atualmente trabalha foi descontinuado pela família de António que, anos depois, abriu instalações mais modernas e bastante maiores (capazes de uma produção vinícola em larga escala) na rua acima. Também essa está, hoje em dia, inutilizada, sendo aproveitada para servir de estúdio artístico. Ultrapassados os tanques de cimento já corroídos pelo tempo e o cenário magnânimo de uma adega caída em esquecimento, entramos por uma porta que dá acesso aos quadros da artista e onde tudo parece estar caoticamente organizado. Perguntamos como é que Marta tem tempo para tudo. Nem ela sabe, mas reconhece que são a arte e o vinho que a fazem continuar. Dez anos depois. Com e sem o António.
*Fotografias de Melissa Vieira/Observador