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Certamente que ouviu falar muito nos últimos dias de siglas herméticas como CMEC, CAE ou DPH a propósito dos contratos de fornecimento de eletricidade da EDP e é muito provável que pense que tais siglas são algo abstrato que não lhe dizem respeito.
Façamos, desde já, um ponto prévio: acredite que tem tudo a ver consigo. É o caro leitor quem paga os contratos de fornecimento de eletricidade que foram negociados pelos sucessivos governos e que costumam ser descritos por essas siglas herméticas, como os contratos CMEC, como são também os consumidores de eletricidade quem financia os alegados benefícios recebidos pela EDP — as tão faladas “rendas excessivas”.
Quer um número concreto? 1.246.556.000 euros — isso, mais de mil milhões — é o valor total do alegado benefício que diversas entidades como a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE), a Autoridade da Concorrência (AdC) e a empresa Redes Energéticas Nacionais (REN) calcularam como tendo sido concedido à EDP pelo Governo de José Sócrates.
Desse valor, cerca de 339,5 milhões de euros correspondem a uma sobrevalorização do valor inicial das rendas fixas dos contratos CMEC calculada pelo Ministério Público, com recurso à ERSE, AdC e REN — que, repete-se, é paga por todos os consumidores de eletricidade.
É este o grande número, cujo valor arredondado foi revelado pelo Expresso, que está em causa na investigação criminal que o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) abriu em 2012. O inquérito saltou para a praça pública com as buscas realizadas a 2 de junho na EDP e na REN e a constituição de arguido de António Mexia, presidente executivo da EDP, e de João Manso Neto, administrador da EDP e líder da EDP Renováveis por suspeitas de corrupção e de participação económica em negócio. Entretanto, já foram constituídos mais cinco arguidos, entre ex-assessores do Ministério da Economia no tempo em que Manuel Pinho era o ministro e ex-administradores da EDP e responsáveis da REN.
Contudo, o valor de 1.246.556.000 euros ainda não é definitivo. Tudo porque ainda falta apurar mais dois alegados benefícios que terão sido concedidos à EDP:
- uma licença alegadamente ilimitada para o funcionamento da Central de Sines;
- e a sobrevalorização dos ajustamentos anuais dos já famosos contratos Custos para a Manutenção do Equilíbrio Contratual (CMEC). Além das rendas fixas, os contratos CMEC têm também uma componente variável que é ajustada anualmente.
A EDP sempre desmentiu a ideia de que foi beneficiada pelos contratos CMEC — como António Mexia voltou a fazer no dia 6 de Junho. Os argumentos da empresa estão expressos nesta peça:
Rendas, barragens e suspeitas. As explicações dadas por Mexia
De acordo com a documentação a que o Observador teve acesso, a investigação não se vai ficar por aqui. Manuel Pinho, por exemplo, só ainda não foi chamado pelo MP por ter estado ausente do país. Além de Pinho ser um alvo óbvio da investigação do DCIAP, coadjuvado pela Polícia Judiciária (PJ), há outros elementos dos dois governos de José Sócrates e do Executivo de Passos Coelho que poderão vir a ser chamados a prestar contas no inquérito titulado pelo procurador Carlos Casimiro.
O Observador tem tentado contactar Manuel Pinho desde as buscas realizadas à sede da EDP mas ainda não teve sucesso até ao momento.
O alargamento a outros responsáveis políticos, nomeadamente dos governos de Durão Barroso e de Santana Lopes, só não se concretiza por que o procedimento criminal para factos anteriores a julho de 2007 já prescreveu.
Mas já lá vamos.
Comecemos pelas sete novidades que mais dizem respeito aos consumidores — ou seja, a si –, devidamente contextualizadas com o histórico de um dossiê (muito) complexo e cujas origens remontam a 1995, quando o Governo de Cavaco Silva criou os Contratos de Aquisição de Energia (CAE) — que vieram a ser substituídos em 2004 pelos CMEC.
Como tudo começou: a Operação Ciclone
Não são duas nem três as denúncias que constam do inquérito à investigação. Para ser exacto: são seis. Surgiram entre janeiro de 2012 e julho de 2015, cinco delas são anónimas, têm em comum o facto de visarem os contratos CMEC e os alegados benefícios que terão sido concedidos à EDP de forma alegadamente ilícita e são muito concretas na descrição dos valores e da forma como tais alegados benefícios foram atribuídos.
A primeira, que chegou à Procuradoria-Geral da República (PGR) a 19 de janeiro de 2012, não só propõe um nome de código para a investigação (“Operação Ciclone”), como descreve uma alegada subida da taxa de rentabilidade anual da EDP fomentada pelos contratos CMEC: de 8% para 15%. Para tal, teria sido decisiva a intervenção de Manuel Pinho e de dois assessores do ex-ministro (mais tarde promovidos a administradores da REN). A denúncia foi reencaminhada, como é normal na PGR, para o DCIAP — o departamento que combate a criminalidade económico-financeira mais complexa.
A segunda denúncia, que tem um papel importante no processo, é a única que não é anónima. Foi enviada por email às 18h55m de 1 de fevereiro de 2012 para Cândida Almeida, então diretora do DCIAP, e o remetente é a procuradora Maria Amélia Cordeiro, então chefe de gabinete do procurador-Geral Pinto Monteiro. No email, Cordeiro relata uma conversa que tinha tido ao almoço com o chefe de gabinete do então secretário de Estado da Energia, Henrique Gomes, que já estava então em rota de colisão com a EDP e diversos membros do Governo.
Tiago Andrade e Sousa terá confirmado que os contratos CMEC assinados com a EDP eram muito gravosos para o Estado, mencionando também o prolongamento da concessão da exploração das barragens como um negócio duvidoso: o Estado teria recebido cerca de 750 milhões de euros da EDP quando as avaliações técnicas indicavam montantes entre os 1,5 mil milhões e os 2 mil milhões de euros como os valores justos que deviam ser pagos pela elétrica liderada por António Mexia.
Ainda em fevereiro de 2012, o gabinete de Henrique Gomes reencaminhou para a PGR uma terceira denúncia, sem autor identificado, em que são repetidos os valores dos alegados benefícios das anteriores denúncias e os nomes dos protagonistas dessas negociações: Manuel Pinho, António Mexia e dois assessores do ex-ministro da Economia, entre os quais Rui Cartaxo (também arguido neste caso) é o único nome identificado.
Essa denúncia acrescenta informação muito pormenorizada sobre a forma como a EDP terá sido alegadamente beneficiada na prorrogação das licenças de exploração das barragens e de como a fatura dos contratos CMEC estava e continuaria a ser paga pelos consumidores.
O DCIAP reage seis meses depois da primeira denúncia, com a abertura a 4 de julho de 2012 de uma Averiguação Preventiva. Trata-se da chamada fase de pré-inquérito onde o MP avalia os primeiros indícios recolhidos e decide se abre ou não uma investigação formal.
Em outubro de 2012, a procuradora Carla Dias produz um extenso relatório sobre a evolução da legislação do setor elétrico e propõe a abertura de um inquérito criminal por suspeitas de corrupção, tráfico de influência e prevaricação. O objeto da investigação ficou logo ali definido:
- a transição dos contratos CAE para os contratos CMEC e os alegados benefícios ilícitos concedidos em 2007 pelo Governo de José Sócrates à EDP.
Contratos de venda de energia. O que querem dizer os “palavrões” CAE e CMEC?
Os decisores
Os autos só chegarão às mãos do atual titular, o procurador Carlos Casimiro, em janeiro de 2013. Casimiro começou por pedir um relatório sobre os CMEC a dois técnicos da ERSE, tendo mais tarde solicitado à unidade policial no DCIAP (a PJ só entra no processo em maio de 2016) a identificação de todos os decisores políticos e titulares de cargos públicos que participaram na elaboração da legislação dos CMEC nos Governos de Santana Lopes e Sócrates — sete dos quais foram agora constituídos arguidos:
- António Mexia – ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações do XVI Governo – constituído arguido a 2 de junho de 2017
- Luís Nobre Guedes – ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território do XVI Governo
- Álvaro Barreto – ministro das Actividades Económicas e do Trabalho do XVI Governo
- Manuel Pinho – ministro da Economia e da Inovação do XVII Governo
- Francisco Nunes Correia – ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território do XVII Governo
- João Conceição – assessor de Manuel Pinho no XVII Governo e atual administrador da REN – constituído arguido a 2 de junho de 2017
- Miguel Barreto – Diretor-Geral de Energia e de Geologia entre 2004 e 2008
- Pedro Cabral – Diretor-Geral de Energia e Gelogia entre 2012 e 2014
- Ricardo Ferreira – Assessor do Ministério da Economia (2003/2005)
Casimiro não solicitou informação por considerar estes nomes como suspeitos. Apenas queria saber o percurso profissional de todos estes elementos desde 2004 e as ligação pessoais e empresariais entre si. Mais tarde, juntou mais nomes para ser feita o mesmo tipo de pesquisa:
- José Penedos – presidente da REN entre 2001 e 2009
- Rui Cartaxo – assessor do ministro Manuel Pinho, administrador da REN e sucessor de Penedos como presidente da REN – constituído arguido a 6 de junho de 2017
- Carlos Tavares – ministro da Economia do XV Governo Constitucional
- Vitor Baptista – administrador da REN entre 2001 e 2010
- Manuel Barros de Lencastre – secretário de Estado do ministro Álvaro Barreto
- Pedro Rezende – administrador da EDP entre – constituído arguido a 6 de junho de 2017
- Jorge Ribeirinho Machado – ex-diretor-geral da EDP – constituído arguido a 6 de junho de 2017
Todos estes nomes tinham tido um papel direto ou indireto na elaboração da legislação dos CMEC em 2004 ou na aplicação desse enquadramento legislativo mais tarde em 2007. Também estes nomes não eram encarados em 2012 como suspeitos.
Os benefícios e as subalineas
Com o relatório entregue por dois peritos da ERSE em 2013 e, acima de tudo, com um relatório do Núcleo de Assessoria Técnica (NAT) da Procuradoria-Geral da República entregue a 25 de junho de 2015, o procurador Carlos Casimiro ficou na posse de toda a informação documental sobre os alegados benefícios concedidos à EDP.
O relatório do NAT, parcialmente divulgado pelo Expresso, é particularmente relevante porque reúne todos os alertas sobre a legislação dos contratos CMEC que foram sendo feitos desde 2004 por diferentes autoridades públicas, como a ERSE, a Autoridade da Concorrência e a empresa REN — que apesar de ser hoje uma empresa privada zelou pelo interesse do sistema energético nacional na qualidade de gestora da rede de transportes.
O relatório do NAT não poupa críticas ao enquadramento legislativo CMEC aprovado em 2004 mas, sobretudo, à sua aplicação durante o Governo Sócrates em 2007.
O que está em causa no relatório? Duas questões:
- a análise da tranformação de 32 contratos de aquisição de energia (CAE), celebrados em 1996 entre a Companhia Portuguesa de Produção de Eletricidade (posição herdada pela EDP) e a REN sobre 27 centrais hidroelétricas (barragens) e 5 centrais térmicas, em contratos com o regime CMEC.
- e o processo de extensão da concessão do Domínio Público Hídrico (DPH) pelas 27 barragens desde o fim da vigência dos CAE até ao fim da vida útil dessas barragens – uma nova questão que não fazia parte dos contratos CAE.
De acordo com a análise do NAT, que cita dados da ERSE recolhidos em maio de 2004 e de julho de 2012, um relatório da Autoridade da Concorrência de 25 de novembro de 2013 e diversos relatórios da REN produzidos entre 2004 e 2012, existirão claros benefícios para a EDP nessas duas questões através de decisões dos governos de Santana Lopes (a legislação dos CMEC foi preparada no Governo de Durão Barroso, mas aprovada no Executivo de Santana) e Sócrates.
A saber:
- é pacífica a ideia de que a liberalização do setor energético imposta por uma diretiva da Comissão Europeia de 2003 e a criação do Mercado Ibérico de Energia impunham o fim dos contratos CAE criados em 1995. Estes eram contratos de fornecimento de energia que asseguram os rendimentos dos produtores e anulavam o risco comercial para o dono da central produtora. Logo, a EDP (dona da maioria das centrais produtoras) tinha de ser indemnizada face aos lucros cessantes com o regime CMEC. O problema é que essa indemnização terá sido sobrevalorizada, enquanto que as obrigações da EDP foram subvalorizadas;
- a ERSE e a REN começaram por avisar os governos de Durão Barroso e Santana Lopes logo em 2004 que o projeto do diploma asseguravam à EDP “ganhos superiores aos previstos nos CAE a cessar, através de utilização de taxas de juro inapropriadas, da inclusão de custos não previstos nos CAE, da omissão de regras de verificação da disponibilidade e da prestação de serviços de sistema das centrais e das previsão da possibilidade da EDP continuar a explorar as 27 centrais hidroelétricas, entre o termos dos CAE e o fim da sua vida útil, sem concurso público”. Nenhuma das recomendações foi seguida pelos dois executivos do PSD/CDS;
- os acordos de cessação foram assinados em 2005 mas continham cláusulas suspensivas de produção de efeitos;
- só em 2006 e em 2007, já com o Governo Sócrates, é que os contratos foram fechados na sua versão definitiva. O ministro Manuel Pinho, que tutelava a área energética, ignorou novamente as recomendações da ERSE e da REN e terá alargado ainda mais os benefícios da EDP através de um “processo muito pouco transparente”, lê-se no relatório do NAT.
Como foram concedidos esse alegados benefícios?
- voltemos à tal questão que não fazia parte dos contratos CAE: o Domínio Público Hídrico (DPH). A lei de 2004 permitia que a EDP pudesse manter a exploração das barragens até ao termo da concessão do domínio hídrico. Qual a importância disso? É que o final dos contratos CAE para as barragens (que iriam verificar-se nos anos seguintes) obrigava a REN a abrir um concurso público para concessionar a respetiva exploração. Com a criação do DPH e a concessão do mesmo à EDP por um período de 15 ou 20 anos, a empresa de Mexia ficava automaticamente habilitada a continuar a exploração das suas 27 barragens, evitando assim o concurso público. Logo em 2004, a REN manifestou a sua oposição por escrito a esta decisão por que beneficiava a EDP, segundo afirmou no DCIAP o ex-administrador Vítor Batista.
- ora, o art. 4.º, n.º1, alíena a, subalínea vii do Decreto-Lei 240/2004 de 27 de dezembro determinou que se a EDP “pretender manter a exploração até ao termo da concessão do domínio hídrico, ao valor do [contrato] CAE é deduzido o valor residual dos bens (…)”. Tal como Maria Lurdes Baía, coordenadorda da REN, afirmou no DCIAP, era suposto no final do contrato CAE todos os equipamentos reverterem “gratuitamente a favor do Estado” que, por seu lado, “poderia colocar em leilão para a continuidade de exploração desses centros electroprodutores”. Mas o Governo Sócrates não só manteve a norma aprovada em 2004, como terá ignorado os avisos da REN de que a fórmula de cálculo não incluia (mas devia incluir) as “receitas expectáveis que essa exploração poderia trazer ao longo do período em estudo até ao final da concessão”, tal como afirmou Maria Lurdes Baía. Como se lê no relatório do NAT, “os contratos produzidos” pelo Governo Sócrates “não corrigiram os benefícios acrescidos da EDP face ao previstos nos CAE; antes pelo contrário, aumentaram-nos”.
- assim, o Governo Sócrates aprovou a Resolução do Conselho de Ministros n.º 50/2007 de 15 de fevereiro e Decreto-Lei n.º 226-A/2007 de 31 de maio que consagrou a concessão do DPH a favor da EDP e em troca de uma compensação financeira correspondente ao valor do equilibrio económico e financeiro. Tal valor seria fixado com base na avaliação de duas instituições financeiras”: Caixa Geral de Depósitos (CGD) e Credit Suisse.
- o problema é que essas avaliações atingiram metade do valor que a EDP teria de pagar na avaliação que a REN fazia e que a própria EDP também terá feito através de duas avaliações. Pior: as avaliações da CGD e do Credit Suisse terão sido produzidas quatro meses antes do processo legislativo liderado por Manuel Pinho ter sido concluído. Isto é, antes da lei ser aprovada, os responsáveis do Ministério da Economia já sabiam que os estudos que tinham ordenado determinavam valores mais favoráveis à EDP.
O 1% que faz toda a diferença
O problema da compensação pela concessão do DPH residiu na determinação da taxa que se aplicava ao valor residual dos equipamentos. A REN defendia uma taxa de 6,6% na actualização de todos os fluxos monetários (maximizando assim o valor que a EDP teria de pagar), a empresa de António Mexia queria uma taxa mais baixa: 4,13%. Esta diferença de 2,47% pode parecer ínfima mas corresponde a uma diferença monetária de mais de 830 milhões de euros.
Na prática, a REN defendia que a EDP teria de pagar cerca de 1,6 mil milhões de euros, enquanto a elétrica defendia metade desse valor. Adivinhe quem ganhou? Pelo despacho n.º 16.982/2007 de 15 de junho, assinado por Nunes Correia (Ministro do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional que tutelava o setor da água) e de Manuel Pinho, foi fixado em 759 milhões de euros o valor do equilíbrio económico e financeiro a pagar pela EDP, em contrapartida da extensão da concessão do DPH. Era esse o valor que o Credit Suisse e a CGD tinham calculado.
Outra grande disputa de taxas entre a REN e a EDP diz respeito à taxa de custo do capital — determinante para o valor que a EDP teria a receber dos consumidores de eletricidade no âmbito das rendas anuais fixas dos contratos CMEC.
Enquanto a REN defendia uma taxa de 6,6%, a EDP queria uma taxa de 7,55%. Desta vez, e ao contrário da concessão do DPH, a EDP queria uma taxa mais elevada para maximizar o valor a receber dos consumidores. Por outro lado, e mais uma vez, estamos perante uma diferença aparentemente residual, desta feita de de cerca de 1%, mas que vale centenas de milhões de euros em termos contratuais.
Curiosamente, e de acordo com a prova reunida pela investigação, a própria EDP tinha indicado no início de 2007 que a melhor taxa de custo de capital era de 6,6%, mas certo é que o ministro Manuel Pinho fixou pela Portaria n.º 611/2007 de 15 de junho a nova taxa que a EDP defendia: 7,55%.
De acordo com cálculos dos peritos da ERSE, esta diferença de cerca de 1% valeu à EDP um acréscimo de 10% em cada renda anual fixa que a EDP passou a receber a partir de 2007. O relatório do NAT da PGR evidencia que o ministro Manuel Pinho não podia desconhecer os pareceres da REN e da ERSE e não se rodeou de outras opiniões técnicas que pudessem colocar em causa as conclusões dos técnicos que estavam do seu lado. Isto é, do lado do Estado.
Como se viu, há duas normas decisivas na definição dos alegados benefícios da EDP que são decididas na mesma data: 15 de junho de 2007.
Resta uma terceria que também foi assinada no mesmo dia por Manuel Pinho: o Despacho n.º 15 290/2007 de 15 de junho que aprovou as adendas aos acordos de cessação dos CE e permitiu a entrada em vigor dos contratos CMEC no dia 1 de julho de 2007 — data da entrada em funcionamento do MIBEL (Mercado Ibérico de Eletricidade). Com a entrada em vigor dos CMEC e a fixação de uma taxa de custo de capital de 7,55%, o valor inicial dos CMEC foi o seguinte:
- 833 milhões e 467 mil euros — montante total relativo ao período de 2007 a 2027;
- Em termos anuais, os consumidores pagariam durante o mesmo período de tempo rendas fixas de 81 milhões e 185 mil euros;
Resumindo e concluindo, os benefícios alegadamente recebidos pela EDP terão sido os seguintes, segundo o NAT:
- 339, 5 milhões de euros — sobrevalorização do valor inicial dos CMEC;
- 852 milhões de euros — valor da extensão da concessão dos DPH que a EDP não pagou, seguindo a avaliação da REN;
A estes dois benefícios alegadamente ilícitos que o Ministério Público imputa ao Governo de José Sócrates, acresce ainda um terceiro igualmente concreto:
- 55 milhões de euros – valor de Taxa de Recursos Hídricos que, por despacho governamental, foi considerado pago no âmbito do procedimento do valor da extensão da concessão do DPH mas que os peritos entendem que deve ser cobrado.
De acordo com o relatório do NAT, “os responsáveis pela aprovação do regime dos CMEC não podiam desconhecer que as ajudas de Estado em causa iam além dos custos ociosos com impaco na saúde económica e financeira dos produtores, sendo certo que, como é público, a EDP tem apresentado continuamente ao longo dos anos grandes volumes de lucros”.
De acordo com um relatório da Autoridade da Concorrência de Novembro de 2013, os CMEC tiveram o seguinte peso nos lucros da EDP antes dos impostos:
- 16,3% em 2007;
- 20% em 2008;
- 34,2% em 2009;
- 18,8% em 2010;
- 14,9% em 2011;
- 32,4% em 2012
Ainda de acordo com o mesmo documento, as margens brutas das centrais CMEC teriam uma margem bruta de cerca de 900 milhões de euros anuais. Se retirássemos os apoios concedidos pelo Governo Sócrates, essa margem variava entre os 410 e os 682,3 milhões de euros.
Em comunicado enviado para as redações pelo seu advogado Joaquim Macedo (do escritório CMS Rui Pena & Arnaut), Rui Cartaxo garante que “agiu sempre na indeclinável defesa dos interesses públicos” enquanto foi assessor do Ministério da Economia. Cartaxo contesta os números citados no relatório do NAT e diz que a REN fez chegar ao então secretário de Estado da Energia um “documento que apresentava seis distintos cenários de valorização”. “O valor mais elevado era de 1.151 milhões de euros e o mais reduzido no valor de 245 milhões de euros, consoante os pressupostos utilizados pela REN”. No caso dos estudo apresentados pela EDP, o valor mais elevado seria de 450 milhões de euros“, assegura o atual chairman do Novo Banco no comunicado citado pelo jornal Eco.
DGE não participa, Comissão Europeia não é informada e ERSE é ignorada
Nos diversos testemunhos que foram recolhidos pelo Ministério Público entre 2014 e 2015, o ministro Manuel Pinho e os seus assessores foram criticados pela forma como agiram na edificação de todo o projeto legislativo de 2007.
Tiago Andrade e Sousa, ex-chefe de gabinete de Henrique Gomes e de Artur Trindade, por exemplo, achou estranho que a Direção-Geral de Energia e de Geologia nunca tivesse sido envolvida no processo, nem tivesse qualquer tipo de documentação sobre operacionalização do regime dos contratos CMEC.
Aliás, nos arquivos do Ministério da Economia apenas existia um estudo da ERSE sobre os CMEC datado de 2004, documentação sobre a extensão dos DPH, relatório de avaliação da Caixa BI, um estudo de avaliação da REN não assinado, com as iniciais V.B. e um ou dois pareceres legais de escritórios de advogados.
Mais do que isso, só cópias em papel de correio eletrónico do ministro Manuel Pinho para a Comissão Europeia, dando conta que a os interlocutores do Ministério da Economia eram Rui Cartaxo e João Conceição, então seus assessores e que passaram mais tarde para a REN. E mais emails trocados entre Pinho e Manso Neto, administrador da EDP, então com o pelouro da produção e agora arguido no processo do DCIAP, sobre a extensão do DPH.
Também Pedro Cabral, ex-assessor de Henrique Gomes e de Artur Trindade e diretor-geral de Energia entre 2012 e 2014, confirmou que a DGE não foi chamada a participar no processo legislativo de 2007.
Também a Comissão Europeia foi ignorada no que diz respeito ao regime CMEC estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 226-A/2007 de 31 de maio. O governo deveria ter notificado as autoridades europeias pois as novas regras alargavam as que tinham sido estabelecias em 2004 pelo Governo de Santana Lopes. O regulador nacional por seu lado, também não foi tido nem achado.
A Comissão Europeia também foi ignorada no que diz respeito ao regime CMEC estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 226-A/2007 de 31 de maio. Cabral confirmou que não foi feita qualquer notificação — o que deveria ter acontecido porque as novas regras estabelecidas pelo Governo de José Sócrates alargavam as que tinham sido estabelecidas em 2004 pelo Governo de Santana Lopes.
Quem é que apresentou queixa em Bruxelas contra as “rendas” da EDP
Na sequência de uma denúncia de várias personalidades, o caso chegou a Bruxelas em 2012 e foi alvo de uma investigação que foi arquivada em maio deste ano, com a conclusão de que não teria havido ajudas de Estado no caso da extensão do prazo das barragens. Este arquivamento foi aliás uma das grandes bandeiras da conferência de impresa dada pelo presidente executivo, António Mexia, já depois de ter sido constituído arguido.
Também o regulador foi ignorado. A ERSE, já liderada por Vítor Santos, não foi chamada a pronunciar-se sobre o regime dos CMEC. Ex-secretário de Estado da Energia no Governo de António Guterres e homem próximo do PS, Santos não deixou de manifestar o seu incómodo junto do ministro Manuel Pinho. Mas nunca chegou a receber nenhuma explicação para a forma de agir do Governo.
Vítor Santos manifestou igualmente uma pespetiva crítica sobre os benefícios concedidos à EDP, sendo que defende que o dossiê das rendas excessivas não foi encerrado com a intervenção do Governo de Passos Coelho que conseguiu reduzir a taxa de custo de capital de 7,55% para 4,72% em 2013, o que levou a um recálculo das rendas anuais fixas a pagar entre 2013 e 2027 de cerca de 81 milhões de euros para 67 milhões de euros.
O caso de Sines
Dos benefícios alegadamente concedidos à EDP que ainda não foram calculados, salta à vista o caso da licença de produção não vinculada da Central Térmica de Sines que terá sido concedida em julho de 2007 por Miguel Barreto, então diretor-geral da Energia e de Geologia.
Tal como o Expresso noticiou, o caso terá chegado ao conhecimento do Ministério Público aquando do depoimento de Henrique Gomes, ex-secretário de Estado da Energia do Governo de Passos Coelho. Ouvido pelos procuradores Carlos Casimiro e Susana Figueiredo (que, entretanto, foi substituída pelo procurador Ricardo Matos) a 23 de fevereiro de 2014, Gomes afirmou que a licença foi emitida sem uma aparente contrapartida para o Estado.
A referida licença, cuja cópia era a única documentação que existia sobre a matéria na Direcção-Geral de Energia e que foi deixada no MP por Henrique Gomes, assume contornos de uma extensão da licença de produção que expirava em 2007 mas alegadamente não terá data de término.
Questionado sobre a base legal para extensão sem qualquer concurso público ou contrapartida, o ex-secretário de Estado afirmou que desconhecia a mesma. Alegadamente, Miguel Barreto ter-se-ia baseado no Decreto-Lei 240/2004 que criou os contratos CMEC.
De acordo com a informação técnica que Henrique Gomes juntou aos autos, essa licença terá um valor económico de várias centenas de milhões de euros.
Prescrição entre 2022 e 2025
Independemente de todos os factos apurados, há uma matéria que é inolvidável neste processo: a prescrição do procedimento criminal.
Aquando da nomeação do procurador Ricardo Matos como co-titular dos autos, o procurador Carlos Casimiro admitiu que o prazo de prescrição se colocava a 1 de julho de 2017 — 10 anos depois da data da entrada em vigor do regime dos contratos CMEC. Isto porque 10 anos era o prazo de prescrição que a lei definia à data dos factos para o crime de corrupção.
Esse facto fez com que o MP tivesse avançado para a constituição de arguido de António Mexia e de Manso Netro, líderes da EDP e da EDP Renováveis, aquando da realização das buscas judiciais na sede da EDP. O mesmo aconteceu com João Conceição e Pedro Furtado, administrador e diretor da REN.
Com este acto processual, a que acresce a constituição de mais três arguidos, entre os quais Rui Cartaxo, interrompeu-se o prazo de prescrição. Isto é, o prazo começou a contar do zero. Assim, a data de referência para o início da contagem do prazo de prescrição passou a ser 2017, em vez de 2007.
Contudo, além da situação ter de ser apreciada tendo em a situação específica de cada arguido, a lei processual penal impõe ainda uma fórmula que define o prazo máximo para a prescrição do procedimento criminal. No caso deste processo, e de acordo com cálculos feitos para o Observador por diversos advogados, a prescrição voltará a colocar-se entre 2022 e 2025. Trata-se de um intervalo temporal que tem em linha de conta a possibilidade de se verificarem situações que provoquem a suspensão (conceito diferente de interrupção) da contagem do prazo de prescrição.
Tempo suficiente, portanto, para este caso ainda dar muito que falar.