Índice
Índice
“A Arábia Saudita precisava de alguém como Mohammed bin Salman.” A frase não foi proferida pelos apoiantes do príncipe saudita, nem tão pouco viu a luz do dia no início da ascensão do filho pródigo do rei Salman, o atual monarca da Arábia Saudita. Foi Jamal Khashoggi, o jornalista assassinado a 2 de outubro no consulado do seu país, na Turquia, quem o disse. Em fevereiro deste ano, durante uma entrevista ao Altamar, um podcast norte-americano sobre política externa, Khashoggi dizia ter sentimentos contraditórios em relação ao príncipe. Um homem que comparou a Henrique VIII de Inglaterra, que dizia ter tendência para “disparar primeiro, perguntar depois”, mas que era também alguém que o jornalista saudita via como necessário para que o seu país saísse da estagnação, alguém que chegava “para aproveitar o momento”.
Oito meses depois, é um aliado do príncipe a ditar o fim de Khashoggi. “Tragam-me a cabeça desse cão”, terá dito, por Skype, Saud al-Qahtani, elemento destacado do núcleo chegado do príncipe bin Salman, a um dos 15 homens que detinham o jornalista no consulado em Istambul.
Hoje não restam dúvidas de que Jamal Khashoggi foi assassinado no interior do consulado saudita, num crime “selvagem” e “premeditado”, como o classificou o presidente turco Recep Tayyip Erdogan. A Arábia Saudita já não tenta negar o sucedido, embora apresente uma versão dos factos que aponta para um crime acidental.
Mas os dedos acusadores da comunidade internacional apontam todos na mesma direção: Mohammed bin Salman, o príncipe reformista que até há bem pouco tempo ia ser o homem que ia conduzir o seu país até ao futuro. Se há críticas, também há quem defenda a elite saudita. Donald Trump tem sido um dos acérrimos defensores da casa real saudita e o próprio Erdogan disse acreditar na sinceridade do rei saudita não se referindo, no entanto, ao seu filho.
Sobre esta questão, os analistas internacionais dividem-se. Por um lado, há quem defenda que o príncipe não seria louco ao ponto de se envolver num homicídio tão brutal. Por outro, as ações recentes do herdeiro do trono saudita, de 33 anos, mostram que o príncipe não se preocupa com as consequências dos seus atos. Os ataques ao Qatar, ao Iémen ou a detenção de Saad Hariri, primeiro-ministro do Líbano, são disso exemplo.
Novas revelações implicam príncipe herdeiro saudita na morte do jornalista Jamal Khashoggi
As revelações que vão surgindo na imprensa turca vão deixando um rasto de suspeitas que levam até ao príncipe. E mesmo que entre chefes de Estado e CEO de empresas multinacionais os discursos sejam cuidadosos, um dos maiores eventos sauditas, a conferência de investimento Davos in the Desert, foi na passada terça-feira uma sombra do evento do ano anterior.
Noiva de Khashoggi pede restos mortais do jornalista à Arábia Saudita para ”enterro decente”
Christine Lagarde, diretora-geral do FMI, Jim Yong Kim, presidente do Banco Mundial, o secretário de Estado do Tesouro norte-americano e quatro ministros (o do Comércio britânico, o da Economia francês, o das Finanças holandês e o do Comércio australiano) cancelaram a sua presença na conferência. Também não compareceram 20 CEO que estavam inicialmente confirmados, como os da Viacom, Uber, JPMorgan ou da Siemens.
A caminho do trono: a tradição já não é o que era
Mohammed Bin Salman nasceu a 31 de agosto de 1985 e estava longe de ser um candidato a herdeiro do trono. Até o seu pai, o atual rei Salman, chegar ao poder, a prática era sempre a mesma: um dos irmãos do monarca era o sucessor no trono, e nunca os seus filhos.
A tradição assim mandava desde que Ibn Saud se tornou o primeiro rei do terceiro estado saudita em 1932. Teve 22 mulheres e 45 filhos homens (o rei Salman foi o 25.º) e de entre os 36 varões que sobreviveram, distinguem-se os sete magníficos, como eram chamados os filhos da sua mulher preferida, Hassa al Sudairi, que se casou com o rei aos 13 anos. Salman era um deles.
Em 2015, quando morreu o seu irmão, o rei Abdullah bin Abdul Aziz, Salman ascendeu ao trono já com 79 anos de idade. E de imediato tomou duas decisões surpreendentes: nomeou o seu filho bin Salman, de 29 anos, ministro da Defesa e o seu sobrinho bin Nayef príncipe herdeiro, fazendo deste o primeiro neto de Ibn Saud a entrar para a linha da sucessão direta ao trono.
Mohammed bin Salman, conhecido como MbS, tornou-se o mais novo ministro de sempre a deter a pasta da Defesa. Mas o seu caminho em direção ao poder não ficaria por aí. Quatro meses mais tarde, o seu pai nomeou-o vice-príncipe herdeiro, segundo vice-primeiro-ministro e presidente do Conselho de Assuntos Económicos e de Desenvolvimento. Passados dois anos, em junho de 2017, o rei — que se suspeita sofrer de Alzheimer — decidiu que o lugar de príncipe herdeiro passa a ser de bin Salman e bin Nayef foi afastado da sucessão.
Uma carta escrita na puberdade e a bala que lá seguia
“Já sabíamos quem ele era antes de chegar a ministro da Defesa. O seu pai sempre lhe permitiu fazer tudo o que queria e nem sequer o recriminava pelos estranhos erros que cometia em pequeno”, conta Saad al Faqih, um dos mais destacados opositores do regime saudita, citado no jornal espanhol El Mundo.
Ao contrário dos seus irmãos, MbS nunca deixou a sua terra natal e estudou Direito na Universidade Rei Saud, em Riad. Era visto pelos colegas como um rapaz sincero, que não gostava de beber, fumar ou perder o seu tempo com festas, uma imagem muito diferente da que é pintada pelo crítico do regime.
A sua ambição levava-o para um caminho de maior sobriedade. Desde os 12 anos que estava habituado a acompanhar o pai — que era então governador da província de Riad — a todo o tipo de reuniões.
E foi ainda antes dessa idade, aos 8 anos, que protagonizou uma das suas histórias mais conhecidas em Riad. “Quando tinha 8 anos, foi com os seus amigos a um supermercado e iam todos vestidos com farda militar. Armaram um escândalo tal que a segurança chamou a polícia. O agente que restabeleceu a ordem acabou castigado pelo pai do príncipe”, conta ao El Mundo uma fonte que pede o anonimato por temer represálias. A segunda história, ainda mais bizarra, aconteceu quando MbS tinha 16 anos.
Em plena puberdade, o príncipe bin Salman quis confiscar um terreno, mas o proprietário resistiu aos seus avanços e o caso acabou na justiça. O juiz que julgou o caso recusou-se a dar razão a MbS. Como é que ele reagiu? Enviou-lhe uma carta que continha apenas uma bala no interior. O juiz queixou-se ao pai do príncipe, mas este aconselhou-o a ficar calado.
“É um tipo impulsivo e narcisista que se comporta como um psicopata e que está tomado do mal da grandiosidade”, remata o opositor Saad al Faqih.
Anos mais tarde, já com o diploma na mão, o príncipe trabalhou com várias empresas multinacionais e acabou por ser nomeado, em 2009, conselheiro do próprio pai. Foi mais um passo para consolidar a sua vida política, que tinha tido início em 2007, quando se tornou conselheiro do Conselho de Ministros.
Quando o pai se tornou monarca, não demorou a fazer o filho subir na hierarquia real saudita, mesmo à revelia da tradição. E, no reino saudita, todos sabem que se quiserem chegar ao pai, têm primeiro de passar pelo filho. É por isso que o príncipe é visto como o verdadeiro líder do país e, segundo o The Telegraph, a sua autoridade vai muito para além do gabinete da Defesa, o que lhe valeu a alcunha de Senhor Tudo.
Reformista ou ditador?
Ainda no início deste verão, a revista Vogue britânica fazia um artigo sobre as frases mais impactantes do príncipe herdeiro. Revistas sauditas também dedicaram artigos aos seus momentos inspiradores. “Eu apoio a Arábia Saudita e metade da Arábia Saudita são mulheres. Logo, eu apoio as mulheres”, escrevia a Vogue citando MbS.
Não admira. O príncipe herdeiro foi o responsável por levantar a proibição que impedia as mulheres de conduzirem sozinhas, voltou a abrir cinemas e permitiu que as sauditas entrassem em alguns estádios de futebol. Também apostou em criar mais eventos culturais no país e criou o programa Vision 2030, que pretende acabar com a dependência da economia no petróleo. Numa entrevista à Bloomberg, congratulava-se por as mulheres terem votado pela primeira vez no reinado do seu pai e também por 20 delas terem sido eleitas.
É este lado que confundia Jamal Khashoggi. “Eu gosto de algumas das coisas que ele faz, mas sinto que está a fazê-las da maneira errada”, dizia o jornalista no podcast do Altamar.
“Penso que ele quer ser visto como o segundo fundador da Arábia Saudita, herdando o legado não do seu pai, mas do seu avô que fundou o reino há 100 anos. Como cidadão saudita, gostava de vê-lo como um reformista, alguém que vai criar empregos para os jovens e transformar a economia saudita numa verdadeira economia. Mas ao mesmo tempo ele está a ser repressivo, por isso é muito confuso. Tenho sentimentos contraditórios em relação a ele”, disse Khashoggi oito meses antes de morrer.
A demissão do primeiro-ministro libanês e 50 mil crianças mortas no Iémen
“Às vezes sinto que o seu estilo é disparar primeiro, perguntar depois”, dizia em fevereiro Khashoggi. “Ele precisa de bons conselheiros à sua volta para poder levar a Arábia Saudita para o futuro.”
Um desses exemplos foi a detenção do primeiro-ministro libanês quando Saad Hariri visitou a Arábia Saudita no final de 2017. Durante várias horas, Hariri esteve detido e numa declaração televisiva transmitida a partir do reinado saudita resignou ao seu mandato. Acabou por ser libertado, regressou ao Líbano e voltou atrás na resignação.
Foram várias as autoridades libanesas, incluindo o presidente Michel Aoun, que afirmaram que Hariri tinha sido sequestrado e forçado a demitir-se, tudo porque MbS não gostava da forma como o primeiro-ministro lidava com a organização terrorista Hezbollah.
“É impulsivo porque toma decisões sem calcular as consequências. Só tem em conta os resultados diretos. É narcisista porque considera que sabe tudo e não tem de consultar ninguém. As pessoas têm de adorá-lo. É um psicopata porque não tem emoções nem empatia. Move-se apenas pelos seus instintos, a sua raiva, os seus desejos de vingança e os seus medos”, acusa Saad al Faqih, opositor do regime. “Desconhece o que é a compaixão e o amor.”
Uma das suas primeiras decisões ao tornar-se ministro da Defesa, em 2015, foi lançar uma operação militar sobre o vizinho Iémen, que considerava ser um país fantoche nas mãos do Irão. O saldo, segundo a organização Save the Children, era de 50 mil crianças mortas até 2017 e um país à beira da pior crise de fome no mundo dos últimos 100 anos, segundo a ONU.
Na mira de MbS, tem estado também outro país vizinho, o Qatar, que tem sido alvo de boicote, desde 2017, da Arábia Saudita em conjunto com os Emirados Árabes Unidos, o Barhein e o Egipto. O objetivo é derrubar o seu rei por alegadamente apoiar o terrorismo.
Família real presa no Ritz-Carlton de Riad
O príncipe bin Salman chamou-lhe purga anti-corrupção quando, em novembro de 2017, mandou deter ministros, príncipes, empresários e diversos membros da família real saudita. A purga acabou com centenas de detidos durante semanas no hotel Ritz-Carlton de Riad, muitos deles seus conhecidos opositores.
Fosse o motivo acabar com a corrupção no país ou não, a iniciativa acabou por render mais de 100 mil milhões de euros aos cofres sauditas. Em janeiro deste ano, a imprensa anunciava ser esse o saldo do que os acusados já tinham pago, depois de se terem dado como culpados nas acusações de corrupção. O príncipe disse na altura que as detenções eram necessárias para combater “o cancro da corrupção”.
Alguns meses depois, em agosto, a Arábia Saudita rompeu relações comerciais com o Canadá, depois de aquele país ter apelado à libertação de ativistas dos direitos civis e das mulheres, acusados de manter “contactos suspeitos com estrangeiros”. Numa entrevista à Bloomberg, Mohammed bin Salman disse que as cerca de 1.500 pessoas tinham sido detidas por “uso indevido” da liberdade de expressão.
“Eu não me auto-intitulei o reformista da Arábia Saudita. Sou o príncipe coroado da Arábia Saudita e estou a fazer o melhor que posso através da minha posição”, sublinhou. “Estamos a tentar livrar-nos do extremismo e do terrorismo sem uma guerra civil, sem parar o crescimento do país. Se houver um pequeno preço a pagar nessa área, é melhor do que pagar uma grande dívida para fazer essa jogada.”
Decapitações e assassinatos: uma família de poucos amigos
As lutas entre os herdeiros de Ibn Saud, que reinou até à sua morte, aos 88 anos, em 1953, são frequentes. Logo depois da sua morte, a vida exuberante do rei Saud, que governou durante 11 anos, levou a uma guerra de poder com um dos seus meios-irmãos, e a família real forçou-o a abdicar a favor do irmão e a seguir para o exílio.
De pouco serviu ao rei Faisal esse caminho aberto para o poder, já que em 1975 foi assassinado por um sobrinho, que acabou decapitado.
O reinado seguinte, do rei Khalid, terminou em 1982 na sequência de um ataque de coração. Durante os sete anos em que governou a Arábia Saudita, deixou uma marca de conservadorismo religioso: uma das bisnetas de Ibn Saud foi executada por um pelotão de fuzilamento aos 19 anos por suspeita de adultério. O seu amante foi decapitado.
Depois de Khalid, o trono passou para Fahd, um dos sete magníficos, que governou durante 23 anos, seguindo-se Abdullah, que teve um curto reinado (2005-2015). Foi então a vez do atual rei Salman, o sexto dos sete magníficos, sentar-se no trono saudita.
A deposição é possível?
Embora não seja inédito a família real obrigar reis a resignar — e não ter quaisquer pruridos em decapitar membros da família que ponham o pé em falso — o príncipe bin Salman controla os diferentes níveis de poder na Arábia Saudita.
Caso os seus opositores conseguissem afastar o príncipe do poder, o seu potencial sucessor — quando se fala cada vez mais da alegada demência do rei Salman — seria o príncipe Ahmed, que vive exilado em Londres, por vontade própria. Mas nada é certo quando se conhece as teias de poder de MbS e Ahmed, apesar de filho de Ibn Saud, não seria a escolha perfeita para ocupar o trono, apenas a óbvia.
Mas como disse Roger Shanahan, especialista em Médio Oriente, ao site 9news, “os sauditas são muito nacionalistas e não gostam de críticas do exterior”, ou seja, poderão ficar imunes à pressão internacional que, a pouco e pouco, se vai fazendo sentir. Muito diferente seria se surgissem provas do envolvimento do príncipe bin Salman no assassinato de Jamal Khashoggi, algo que até agora não aconteceu. Tudo o que existe é um rasto de suspeitas que podem, ou não, mudar a história presente da Arábia Saudita.
Khashoggi parece ter previsto o futuro. “Se eu fosse um historiador, veria Mohammed bin Salman como alguém que está a pôr a Arábia Saudita em modo fast-forward. Provavelmente ele não prevê como o país estará daqui a dez anos com as coisas que está a fazer. É idêntico ao que Henrique VIII fez quando separou a Igreja da Inglaterra da de Roma. Talvez tenha feito isso apenas para conseguir divorciar-se, mas mudou o discurso e a história da Inglaterra para sempre.”