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O procurador Jorge Rosário Teixeira tinha acabado de ligar ao juiz Carlos Alexandre para solicitar-lhe a fixação das medidas de coação do novo arguido da Operação Marquês, Ricardo Salgado. O ex-banqueiro tinha sido constituído arguido às 10h38m desse dia 18 de janeiro de 2017 por alegadamente ter corrompido o ex-primeiro-ministro José Sócrates e era necessário a intervenção do juiz de instrução criminal.
O mesmo telefonema já tinha sido feito em muitas outras ocasiões desde que os dois magistrados começaram a trabalhar juntos, em 2004. Mas desta vez a voz de Carlos Alexandre era claramente menos empática. Passava-se alguma coisa. O juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) soltou o habitual “Sim senhor, traz o homem!” mas sem o entusiasmo de outros tempos.
A frieza do magistrado judicial continuou durante a audiência no chamado Ticão. Carlos Alexandre praticamente não olhava para Rosário Teixeira. Ouviu todas as partes, concordou com a promoção do Ministério Público e proibiu Ricardo Salgado de ausentar-se para o estrangeiro sem prévia autorização, de contactar com os restantes arguidos bem como outras pessoas do Grupo Espírito Santo. Levantou-se, apertou a mão a Salgado, aos seus advogados Francisco Proença de Carvalho e Adriano Squillace e despediu-se de Rosário Teixeira com um aceno de cabeça. Definitivamente, passava-se algo.
O que teria acontecido? A resposta reside numa busca judicial realizada a 23 de fevereiro de 2016 a um escritório de advogados no âmbito da Operação Fizz. Nesse dia, onze procuradores, oito juízes e 60 elementos da Polícia Judiciária tinham saído à rua para realizarem buscas às casas dos principais arguidos, a bancos e a diversos escritórios de advogados. Um deles pertencia a Paulo Blanco, que tinha ganho notoriedade mediática como representante da Procuradoria-Geral da República de Angola e de figuras como Manuel Vicente, vice-presidente de Angola. Blanco era suspeito de ter alegadamente, juntamente com Vicente, corrompido o procurador do Ministério Público Orlando Figueira.
Homem organizado e meticuloso, Paulo Blanco, tinha na sua secretária do escritório da Av. da República, em Lisboa, diversos currículos. Um deles era do filho mais velho do juiz Carlos Alexandre. Alertado por um inspetor da Polícia Judiciária, o procurador Rosário Teixeira leu o currículo, questionou Blanco, percebeu imediatamente o que estava em causa e determinou a apreensão do documento. Rosário, que se encontrava a liderar as buscas, receava que fosse uma armadilha e não queria ser acusado de estar a beneficiar Carlos Alexandre.
Engenheiro químico de formação, o filho mais velho do juiz do Ticão tinha entregue uma cópia do seu currículo a Orlando Figueira — que, por seu lado, tinha reencaminhado o mesmo para Paulo Blanco. O objetivo, como o próprio Carlos Alexandre explicou à revista Sábado, passaria pela obtenção de um estágio na petrolífera angolana Sonangol — que foi liderada entre 1999 e 2012 por Manuel Vicente.
Carlos Alexandre não lhe perdoou aquilo que entendeu ser uma alegada dualidade de critérios de um magistrado com quem trabalhava há mais de 15 anos, pois tinha a informação de que existiam outros currículos que não terão sido sido apreendidos. Daí a frieza durante o interrogatório de Ricardo Salgado que espantou quem presenciou a audiência. A relação de confiança entre os dois principais magistrados do país tinha ficado seriamente abalada.
Parece uma coisa de somenos, mas não é. Confiança é uma palavra fundamental no mundo profissional de Carlos Alexandre e de Rosário Teixeira. Investigar algumas das personagens políticas e económicas mais poderosas do país implica ter uma espécie de muralha de aço que proteja os investigadores de todas as pressões e ‘recados’ do mundo exterior. Apesar de tudo, Rosário e Alexandre conseguiram construir ao longo dos anos tal muralha — inexpugável durante muito tempo, até às brechas recentes.
Se não fosse essa confiança, nem Rosário Teixeira teria promovido a prisão preventiva de José Sócrates. Nem Carlos Alexandre teria concordado em emitir o respetivo mandado de detenção.
Aliás, bem vistas as coisas, só estes dois homens poderiam ter levado avante a decisão que faz com que a Operação Marquês seja, de facto, um processo que, independentemente do seu resultado final, já entrou para a história.
O indomável
Um juiz da província ou um “rural na cidade” — costuma ser a auto-definição de Carlos Alexandre, 56 anos. Palavras certeiras para quem já conviveu com o juiz mas que não lhe traz propriamente boa fama junto dos advogados dos principais escritórios ou dos seus colegas juízes que ocupam os lugares da hierarquia judiciária. Nem o sotaque lisboeta ganhou. Continua a falar como faria se tivesse ficado em Mação, com reminiscências do alentejano por via da família da mulher Florbela — uma responsável da Autoridade Tributária que, ao mesmo tempo que o apoia de forma irredutível, também é sua conselheira.
Carlos Alexandre não usa anglicismos — prefere, apesar de tudo, os galicismos que ganhou com os estudos que lhe saíram da pele. Faz gala em falar através de metáforas e hipérboles ao mesmo tempo que canta rap, que aprendeu com o filho. Veste-se da forma mais simples possível mas sempre com o aprumo que aprendeu desde criança. É organizado e disciplinado, detesta atrasos e é conhecido por exigir que o ‘seu’ tribunal (aquele que está transitoriamente a servir) seja um espaço tão asseado como o seu gabinete. Determinado, destemido e dono de uma memória prodigiosa, consegue localizar em poucos segundos no que designa ser o seu computador pessoal (o cérebro) toda e qualquer informação relevante sobre qualquer processo judicial que lhe tenha passado pelas mãos.
Criou a imagem de que, para si, a honra, a honestidade e a espinha direita sobrepõem-se a quaisquer outros valores mais mundanos. Talvez por isso seja encarado pelas figuras do regime como um juiz perigoso. Traduzindo: um juiz indomável.
Tal como contou o jornalista Miguel Carvalho na revisão Visão em 2015, Carlos Alexandre soube desde a 4.ª classe o que queria ser: juiz. Em criança, com os seus 10 anos, gostava de subir a escadaria do edifício da Câmara Municipal de Mação para assistir aos julgamentos que decorriam no primeiro andar.
“Há um caso que me marcou profundamente, que foi um caso de uma pessoa que, já adulta, questionou a sua paternidade incógnita e quis que o tribunal reconhecesse que era filho de um fidalgo. Aquele julgamento teve imensas sessões e eu gostava de assistir aquilo. Naquela altura, a sala de audiências do tribunal era no primeiro andar do edifício da câmara e eu gostava de subir a escadaria. A partir daí veio o apego ao sentido de justiça”, disse à jornalista Sara Antunes Oliveira na entrevista que concedeu à SIC no verão de 2016.
https://www.youtube.com/watch?v=zGxP4c93pT0
As referências a um forte sentimento de justiça também vêm de episódios que marcaram a sua infância. Além do avô Francisco, que foi preso por insultar Salazar depois de uma noite alimentada a bebida, o juiz ainda viu o seu pai José ser proibido de entrar na fábrica de lanifícios onde trabalhava com a mãe por ter reclamado nos tribunais o pagamento de remuneração pelas jornadas de trabalho ao fim-de-semana. “Já nessa altura o meu pai acreditava nos tribunais”, diz Alexandre, citado pela Visão numa conversa entre amigos. Uma crença que passou para o filho Carlos.
Ser juiz, contudo, não era propriamente a escolha óbvia e, muito menos, uma escolha fácil para o segundo filho de uma família humilde. Numa altura, em que o PIB per capita português representava um quinto do que é hoje, em que 26,6% dos homens (e 39% das mulheres) eram analfabetos e em que 77,5 crianças morriam por cada 1000 nascimentos, um filho de um carteiro e de uma operária tecelã querer ser juiz era altamente improvável. Essa era uma profissão reservada aos filhos da burguesia urbana ainda incipiente do salazarismo mas acima de tudo aos filhos das boas famílias do regime.
O discreto
Podemos dizer que Jorge Rosário Teixeira, 54 anos, tem, em certa medida, uma personalidade oposta à de Carlos Alexandre. Enquanto o juiz é extrovertido e intenso a manifestar os seus pontos de vista, o procurador é reservado e só fala o necessário. Enquanto Alexandre é capaz de jogar ao ataque quando colocam em causa a sua honorabilidade, divulgando publicamente todos os pormenores da sua vida financeira, Rosário Teixeira raramente dá entrevistas e nunca fala de questões pessoais.
Talvez por isso, é difícil reconstruir o percurso do procurador da República. Sabe-se que nasceu nas Caldas da Rainha há 54 anos. Filho do dono de uma mercearia nas Caldas, o futuro magistrado fez os estudos na cidade antes de ir para a Faculdade de Direito de Lisboa no início dos anos 80. Casou-se com uma médica e, de acordo com o Público, terá acrescentado o apelido da mulher (Teixeira) ao seu nome nessa altura. O casal Rosário Teixeira tem um filho. De gostos pessoais, apenas se sabe que é adepto do Sporting — um gosto que partilha com Carlos Alexandre.
Os diversos antigos e atuais colegas contactados pelo Observador são unânimes nos elogios e a maioria deles designam-no como o maior especialista do Ministério Público no combate ao crime económico-financeiro. “Dono de uma memória prodigiosa” (mais uma semelhança com Alexandre), “excelente investigador”, “rigoroso e meticuloso”, “organizado e atento a todos os pormenores” são alguns dos elogios feitos a Rosário Teixeira pelos seus colegas magistrados e advogados ouvidos pelo Observador.
Rosário Teixeira terá terminado o curso de Direito em 1986 e decidiu logo que iria para o Ministério Público. Depois de passar pelo Centro de Estudos Judiciários, foi colocado em diversas terras do interior até chegar a Setúbal, no início dos anos 90.
Foi aí que conheceu o juiz Fernando Negrão, o homem que iria mudar a sua vida ao convidá-lo para liderar a importante Direção Central de Investigação e Combate à Criminalidade Económica e Financeira (DCICCEF) da Polícia Judiciária. Com 34 anos, o magistrado do MP entrou na ribalta.
Foi aqui conheceu o seu primeiro grande caso: a investigação à Universidade Moderna — que tinha ganho grande mediatismo com a publicação em 1998 na revista Visão de um relatório do Serviço de Informação e Segurança (SIS) a relatar guerras fratricidas maçónicas, o alegado desvio de cerca de três milhões de contos (cerca de 15 milhões de euros) e um conjunto alargado de supostas práticas criminais que incluíam fraude fiscal, branqueamento de capitais e até alegado tráfico de armas.
Rosário Teixeira comandou as buscas que levaram em 1999 a Judiciária às instalações da Universidade Moderna para deter o reitor José Júlio Gonçalves e os seus dois filhos, José e João, e deu o pontapé de saída para um caso que levaria à condenação em 2003 de João Braga Gonçalves a 10 anos e meio de prisão efetiva por apropriação ilegítima, gestão danosa, corrupção ativa e falsificação de documentos. Depois de diversos casos quentes da primeira metade dos anos 90, como os casos Fax de Macau, Costa Freire ou UGT, o processo Moderna voltou a colocar a criminalidade económico-financeira no centro da agenda mediática e alertou para o clima de impunidade em que algumas instituições de ensino universitário particular tinham nascido.
Contudo, Rosário não vai conseguir terminar a investigação. Também por causa da Universidade Moderna, Fernando Negrão é obrigado a demitir-se do cargo de diretor nacional da PJ depois de o Diário de Notícias o ter denunciado como fonte de informações que anteciparam a realização de buscas judiciais no processo. Rosário Teixeira sai também da PJ, sendo substituído pela procuradora Maria José Morgado, e é colocado no serviço do Ministério Público de Faro.
Vai regressar à ribalta em 2004 quando entra no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) pela mão da procuradora Cândida Almeida.
Foi também nesse ano que o juiz Carlos Alexandre é colocado no Tribunal Central de Investigação e Ação Penal — também conhecido por Ticão por associação ao petit nom de Diapão com que o DCIAP começou por ser conhecido.
O que os une
A relação entre os dois magistrados tornou-se próxima por consequência natural dos órgãos da justiça a que pertencem. Explicando — e com isso destruindo alguns equívocos que foram sendo criados sobre o papel de cada um.
O DCIAP foi criado em 1999 como um órgão da Procuradoria-Geral da República (e não como um serviço do Ministério Público) com duas funções essenciais:
- Coordenar inquéritos abertos em diferentes distritos judiciais mas com factos comuns;
- Investigar a criminalidade económico-financeira mais complexa que se verifique em diferentes distritos judiciais.
O Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) foi criado pouco depois com o objetivo de ser ‘o’ Tribunal do DCIAP. Isto é, só escrutina processos na fase de inquérito ou na fase de instrução que tenham origem no DCIAP.
Do ponto de vista prático, Carlos Alexandre é o juiz de instrução que fiscaliza Rosário Teixeira (e de outros procuradores do DCIAP) nos inquéritos conduzidos por este. Rosário (ou qualquer outro procurador do DCIAP) lidera a investigação e Alexandre escrutina a sua ação.
Acresce que Alexandre foi durante muito tempo o único juiz do TCIC e Rosário sempre teve os processos mais importantes do DCIAP desde que entrou em 2004. Operação Furacão, caso Monte Branco, caso dos Submarinos, caso BPN, entre outros, todos eles passaram pelas mãos de Rosário — e por arrasto pelas mãos de Carlos Alexandre.
É esta conjugação de fatores que faz com que os dois magistrados sejam, porventura, os maiores especialistas do país no combate à criminalidade económico-financeira.
A esmagadora maioria dos advogados de defesa dos processos que passam pelo DCIAP, que na prática são os principais advogados do país, sempre criticaram aquilo que um deles apelida de “seguidismo” de Carlos Alexandre face a Rosário Teixeira. Não só são poucas as promoções do Ministério Público que Carlos Alexandre rejeita, como raramente um requerimento de abertura de instrução que visa contestar uma acusação produzida pelo DCIAP não acaba num despacho de pronúncia para julgamento.
Carlos Alexandre responde, como fez na entrevista da SIC, com o facto de mais de dois terços dos recursos contra as suas decisões serem rejeitados pelos tribunais superiores.
A verdade é que o juiz Carlos Alexandre faz questão de escrutinar in loco os atos processuais que autoriza. Não só acompanha as buscas que são realizadas, como está a par de todas as escutas telefónicas e participa ativamente nos interrogatórios que são realizados no Tribunal Central de Instrução Criminal quando estão em causa a aplicação de medidas de coação que, por lei, só podem ser definidas por um juiz de direito. Toda esta proatividade de Carlos Alexandre, que a lei permite, faz com que surja muitas vezes o equívoco na opinião pública de que o juiz lidera a investigação — um modelo que existe em diversos países europeus mas que não é o português.
Neste contexto, qual é o modelo português? Simples:
- A investigação é liderada pelo Ministério Público, que é coadjuvado por uma polícia de investigação criminal — geralmente, a Polícia Judiciária;
- O papel do juiz de instrução resume-se a um escrutínio dos atos do MP e dos requerimentos da defesa dos arguidos na perspetiva dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Os interrogatórios
Se Carlos Alexandre e Rosário Teixeira têm personalidades diferentes, há um momento, contudo, em que essas diferenças são esbatidas: nos interrogatórios que se realizam no Tribunal Central de Instrução Criminal quando o procurador necessita que o juiz fixe medidas de coação mais gravosas que o simples Termos de Identidade e Residência.
Aí, os dois magistrados orientam-se pelo mesmo princípio: descobrir a verdade material dos factos sob investigação. Não representam propriamente o clássico polícia bom vs polícia mau mas complementam-se.
Rosário Teixeira costuma dar o pontapé de saída, liderando as perguntas essenciais que têm de ser feitas, enquanto Carlos Alexandre vai tendo uma intervenção crescente nos interrogatórios que podem demorar diversos dias a realizar-se — como aconteceu com José Sócrates, Carlos Santos Silva e o motorista João Perna. Se Alexandre é incisivo nas perguntas e contundente quando as respostas dos arguidos não fazem sentido para si, Rosário não lhe fica atrás. Ambos têm um know how conquistado ao longo dos anos que lhes permite discutir os factos em cima da mesa em pé de igualdade com os arguidos e os seus advogados — por mais poderosos que eles sejam.
Um exemplo concreto: o primeiro interrogatório judicial de Ricardo Salgado como arguido no caso Monte Branco, realizado a 24 de julho de 2014. Como sempre, a intervenção inicial pertenceu a Rosário, que queria saber a razão das transferências de quase 20 milhões de euros que uma (então) obscura sociedade offshore chamada Espírito Santo (ES) Enterprises — que mais tarde ficará conhecida como o ‘saco azul’ do GES — tinha feito para a Green Emerald, de Hélder Bataglia. Ricardo Salgado não deu mais do que explicações genéricas mas prometeu que iria ver o assunto. Rosário Teixeira não se ficou e agiu à imagem de Alexandre, prometendo-lhe que o Ministério Público também ira ver o assunto. A fundo.
E foi mesmo, descobrindo na Operação Marquês, com a ajuda das autoridades suíças, que Hélder Bataglia tinha transferido 12 dos cerca de 34,3 milhões de euros que o Ministério Público entende que foram disponibilizados “ao arguido José Sócrates com origem na prática de crime”, além das transferências de cerca de 45 milhões de euros que o ‘saco azul’ do GES transferiu para Zeinal Bava e Henrique Granadeiro, ex-líderes da Portugal Telecom.
Se o papel de Rosário Teixeira passa pelo aprofundamento da verdade material, já no caso de Alexandre a sua postura acaba por chocar os advogados habituados a juízes mais formalistas e passivos. Contudo, e mais uma vez, a lei permite que Alexandre intervenha nos interrogatórios e questione os arguidos como bem entender.
Verdade seja dita que, para o juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal, não há grandes diferenças entre os réus de delitos comuns que muitas vezes julgou no Tribunal de Pequena Instância Criminal e os arguidos poderosos como José Sócrates ou Ricardo Salgado. Para Alexandre, são todos iguais perante a lei — um princípio republicano que leva à letra.
O que os separa
Carlos Alexandre e Rosário Teixeira, contudo, têm uma divergência antiga — a questão do curriculum vitae do filho não é a única. Trata-se da avaliação dos crimes de fraude fiscal subjacentes a todos os casos da Operação Furacão — caso que se baseava em diversos esquemas de planeamento fiscal organizados pelas áreas do private banking de bancos como o BES e o BCP.
A primeira dessas situações prendeu-se com a empresa que detinha a rede da marca de decoração A Loja do Gato Preto. Apesar de estar em causa uma alegada fraude fiscal de cerca de 9 milhões de euros, Rosário Teixeira, com o respaldo da sua então diretora Cândida Almeida, decidiu aplicar a suspensão provisória do processo depois de os arguidos terem confessado o crime e pago todos os impostos em falta e respetivos juros de mora. Carlos Alexandre, que tinha de validar tal suspensão (que significa, na prática, um arquivamento do processo caso não se verifique reincidência no prazo de dois anos), discordou porque entendia que o MP tinha a obrigação de acusar os administradores e a empresa por a prática do crime ter sido consumada e por os valores em causa serem muito significativos.
Rosário recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que acabou por dar razão ao MP. Devido a essa decisão, Carlos Alexandre foi obrigado a validar todas as suspensões provisórias de processo que foram aplicadas a mais de 300 arguidos da Operação Furacão. À custa do mecanismo aplicado por Rosário Teixeira, o Estado conseguiu recuperar mais de 140 milhões de euros em impostos em falta.
Curiosamente, a Operação Furacão foi a primeiro grande processo em que Carlos Alexandre e Rosário Teixeira trabalharam juntos — e no qual também apareceu um novo personagem muito relevante na Operação Marquês: Paulo Silva, inspetor tributário. Foi nas finanças de Braga que foram descobertos os esquemas de planeamento fiscal que eram aconselhados a clientes do BES, BCP, BPN e Finibanco. Tendo em conta que o DCIAP tem competência para investigar crimes que tenham ocorrido em diversos distritos judiciais, o caso veio do MP de Braga para o DCIAP, tendo sido distribuído a Rosário Teixeira. Foi este magistrado que acabou por promover junto do juiz Carlos Alexandre buscas judiciais aos escritórios de private banking do BES, BCP e Finibanco. Alexandre passou os mandados de busca.
Uma contextualização rápida: estávamos em 2006, dois anos antes da queda do Lehman Brothers e do início da crise do sistema financeiro mundial. Não só os banqueiros eram respeitados, como os líderes do BES, BCP e BPN tinham um poder real e significativo.
Rosário e Alexandre não hesitaram. Entraram nos escritórios de private banking daquelas instituições financeiras e apreenderam de forma generalizada os discos duros que continham os segredos mais preciosos sobre os clientes mais importantes do BES, BCP e BPN — os principais bancos privados do país de então, se deixarmos o BPI de lado. Foi uma espécie de entrada a pés juntos ao núcleo duro do sector financeiro do país, que fez disparar os alertas vermelhos nos gabinetes de Ricardo Salgado, Jardim Gonçalves e Oliveira Costa. Houve reações junto do poder político ao mais alto nível, inclusive com queixas apresentadas na Presidência da República, então liderada por Cavaco Silva. Mas as investigações continuaram.
Bem vistas as coisas, a Operação Furacão acabou por antecipar outras investigações semelhantes que foram abertas nos anos seguintes contra os mesmos bancos e que levaram ao afastamento das respetivas lideranças históricas, de Ricardo Salgado, Jardim Gonçalves e Oliveira Costa.
O religioso
Qualquer perfil sobre Carlos Alexandre tende a realçar o seu lado religioso, tendo as procissões às quais assiste em Mação como pano de fundo. Alexandre assume a identidade católica sem qualquer tipo de complexo. É um traço da sua personalidade que vem de criança, quando ensaiava homilias em casa antes da missa de domingo. “Talvez tenha sido uma vocação desperdiçada”, gracejou na entrevista que concedeu à SIC.
Nas vezes que os jornalistas presenciaram a participação do juiz nas procissões de Mação, Alexandre foi quase sempre filmado ou fotografado como um cidadão anónimo no meio de uma multidão. Além de querer mostrar o orgulho nas suas raízes, a mensagem é simples: é um entre iguais. Por isso mesmo, é igualmente inevitável a associação de ideias entre o lado religioso do juiz e o espírito de missão com que encara o seu trabalho.
Um exemplo disso mesmo ocorreu em 2012, quando foi filmado pela primeira vez pelo seu amigo António Colaço (ex-assessor de imprensa do Partido Socialista) a percorrer as ruas de Mação no Terço da Farinheira — uma procissão que decorre de madrugada (entre as 2h e as 3h) e na qual apenas participam homens que entoam o terço pelas ruas da vila. Saindo da procissão para responder a perguntas de Colaço, Alexandre comenta o episódio de uma pressão a que foi sujeito durante um busca que estava a fiscalizar, iluminado por uma luz de lusco-fusco e a penunmbra da madrugada de Mação. “Quando procurava tomar contacto com um conjunto de documentação apreendida, uma pessoa com importância na praça disse-me que estava ali a mando de uma pessoa que lhe pagava e que contava com ele para fiscalizar o ato. Porque quando o dinheiro falava, a verdade calava. Bem, eu nunca me deixei contaminar por essa vertigem do dinheiro. Connosco, há outros valores que também contam. A verdade falará sempre mais alto”.
Os seus críticos, como o advogado Daniel Proença Carvalho (ex-causídico de José Sócrates, que já o apelidou de “super-juiz dos tablóides”), vêem neste tipo de imagens a prova de que o magistrado se vê a si próprio como uma espécie de “cavaleiro branco” contra o sistema. Alexandre recusa essas ideias cesaristas e diz que se limita a aplicar a lei com respeito pelo princípio da igualdade e sem qualquer pretensão moral ou política.
Depois do perdão, a detenção
A igualdade, como já se terá percebido, é um valor essencial para Alexandre — talvez por isso mesmo tenha ficado surpreendido quando Rosário Teixeira perdoou Ricardo Salgado no primeiro confronto que teve com ele.
Estávamos em dezembro de 2012. Os problemas financeiros do Grupo Espírito Santo, sabemos hoje, estavam a atingir níveis incomportáveis que inevitavelmente iriam contaminar o BES. Ricardo Salgado pede a Rosário Teixeira para ser ouvido no DCIAP depois de saber que as autoridades portuguesas tinham ordenado a quebra do sigilo bancário de contas que detinha em instituições de crédito suíças em nome de diversas sociedades offshore, como a Savoices, e de já ter retificado a sua declaração de IRS no ano de 2012, aderindo ao Regime Excepcional de Regularização Tributária desse ano. Estava em causa a transferência de cerca de 14 milhões de euros do construtor José Guilherme para Salgado.
Rosário Teixeira sabia que Salgado tinha justificado esses valores ao Fisco como um pagamento de serviços de consultadoria em Angola, mas ouviu Ricardo Salgado dizer-lhe que se tratava de uma “liberalidade” do seu amigo (e cliente antigo no BES e no BES Angola). Um presente, portanto, por lhe ter dado o bom conselho de investir em Angola em vez de avançar para o leste europeu. Rosário ouviu, aceitou a explicação e acedeu a um pedido especial do advogado de Salgado: passar uma declaração de inocência ao então líder do BES como comprovativo de que Salgado não era suspeito de nenhum crime e permitir que a declaração fosse tornada pública.
“Face aos factos até agora apurados nos presentes autos, não existem fundamentos para que o agora requerente, Dr. Ricardo Salgado, seja considerado suspeito, razão pela qual foi ouvido como testemunha” — é a frase fatal do comunicado.
Um ano e meio depois, a 24 de julho de 2014, o mesmo Rosário Teixeira promoveu a detenção para interrogatório de Ricardo Salgado, constituindo-o como arguido no caso Monte Branco por suspeitas da prática do crime de burla, abuso de confiança, falsificação e branqueamento de capitais.