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Uma participação eleitoral histórica resultou numa eleição histórica e numa situação sem precedentes. As eleições legislativas antecipadas pelo Presidente Emmanuel Macron, em França, puseram em marcha forças que promoveram uma união inesperada entre antigos inimigos figadais — e que deram um resultado completamente diferente do que as sondagens previam.
Um exemplo claro veio do Somme, como notava o Le Figaro na noite deste domingo: François Ruffin, antigo membro da França Insubmissa (FI) de Jéan-Luc Mélenchon (agora afastado dele) sempre foi um conhecido crítico do macronismo. E eis que, ao longo da última semana, a candidata do campo macronista não só desistiu a seu favor como apelou a um voto nele. Françoys Bayrou, líder do MoDem (um dos partidos que apoiam a maioria macronista no Parlamento) chegou mesmo a dizer: “Não tenho qualquer problema com François Ruffin” — o que foi incluído num dos seus folhetos de campanha, naturalmente.
Aquilo a que França assistiu neste domingo foi o trabalho dos “castores” do centro e da esquerda que trabalharam para montar a “barragem” contra a extrema-direita representada pela União Nacional (UN), notava nas suas redes sociais Raphaël Glucksmann, eurodeputado reeleito e estrela em ascensão da esquerda francesa. “Obrigado por estarem sempre lá para salvar o essencial, mesmo quando isso vos custa (às vezes votando contra as vossas convicções).”
Jordan Bardella, candidato da UN, chamou-lhe “uma aliança desonrosa”. Mas, seja qual for a adjetivação da auto-intitulada “frente republicana”, o que é certo é que ela resultou no seu propósito: de possível dono de uma maioria absoluta, o partido de Marine Le Pen acabou como terceira maior força política da Assembleia Nacional, atrás da Nova Frente Popular (NFP) e do Ensemble (conjunto de partidos macronistas).
Os números provam como “os castores” taparam o nariz e votaram em candidatos que não seriam os seus favoritos para evitar a vitória da extrema-direita. Ao Le Parisien, o especialista em estudos de opinião Matthieu Gallard já tinha dados para mostrar durante a noite eleitoral: nos círculos onde a disputa era entre um macronista e a UN, quase três em cada quatro eleitores da esquerda apoiaram o candidato do centro. No universo de eleitores macronistas, a adesão não foi tão massiva (com muitos a não conseguirem apoiar candidatos da FI), mas estava lá: nos duelos entre um candidato socialista, ecologista ou comunista contra a extrema-direita, metade dos eleitores macronistas votaram na opção à esquerda.
“Isto demonstra claramente que o medo da UN continua a ser forte e é reativado quando parece que eles se podem estar a aproximar do poder”, resumiu o especialista.
Mélenchon não quer “arranjinhos”, Verdes não querem “marcar território” e socialistas são ambíguos. Depois dos festejos, a Frente Popular vai ter de se alinhar
A “barragem” resistiu, mas a campanha acabou neste domingo. A partir desta segunda-feira, os franceses têm uma Assembleia Nacional fragmentada, onde nenhum partido tem maioria absoluta e onde o bloco com mais deputados não é o mesmo que até agora sustentava o Presidente.
Para Thomas Legrand, jornalista da rádio France Inter, é uma mudança de “cultura política” a que os franceses vão ter de se habituar: “No mundo democrático, só nos Estados Unidos, no Reino Unido e em França é que um eleitor pode esperar que todo o programa do partido em que vota venha a ser aplicado”, escreveu na sua crónica desta noite no Libération. Já na televisão, o constitucionalista Jean-Philippe Derosier explicava aos microfones da Franceinfo que o texto fundamental de França permite até “um governo de maioria relativa” e não absoluta. “Pode ser criado um governo que se entenda nos mínimos e que mantenha apenas o país a funcionar”.
Mas, para além de terem agora de aprender em tempo recorde a discutir cedências nos seus programas, divisão de pastas de governo ou acordos de incidência parlamentar, os novos deputados conquistaram também uma nova responsabilidade, pouco habitual em França, como nota o Le Figaro: “O centro da gravidade do poder vai deixar de ser o Eliseu e passar a ser o Parlamento — por muito que isso desagrade a Emmanuel Macron.”
Pouco tempo depois de conhecidas as primeiras projeções da noite eleitoral, as várias figuras da esquerda sucederam-se nas televisões para reagir aos resultados e reclamar para si a vitória. Mélenchon, dando nas vistas como é habitual, é o primeiro a falar: “O Presidente deve deixar a Nova Frente Popular governar”, afirma, dizendo que esta pretende aplicar “todo o seu programa” e não apenas “uma parte dele”. E deixa um aviso: “Nenhum subterfúgio, nenhum arranjinho será aceitável”, disse, numa mensagem para o campo dos macronistas. “A derrota do partido do Presidente a sua coligação é confirmada.”
Os outros líderes da esquerda, porém, não são tão taxativos na sua rejeição do macronismo: “Esta noite ganhámos e agora é tempo de governar”, reconhece a líder dos Verdes Marine Tondelier. Mas nota que esta não é uma noite de “marcar território” e que é demasiado cedo para “propor um primeiro-ministro”.
Olivier Faure, líder dos socialistas, é ainda mais ambíguo: defende que o programa da NFP seja aplicado (em matérias como as reformas, onde as diferenças face ao macronismo são marcadas) e disse não estar disponível para “nenhuma ‘coligação de opostos’ que trairia o voto dos franceses”. Mas, tendo em conta a união inesperada que nasceu ao longo da última semana entre esquerda e centro, quem pode dizer que não é possível fazer o mesmo para conseguir um governo para o país?
Apesar das divisões face ao Presidente, macronistas agarram-se ao segundo lugar — e já sonham com um acordo com os socialistas
Para começar, é preciso perceber a disponibilidade dentro da chamada macronie. Ao final da tarde, antes de serem conhecidas as primeiras projeções, o Presidente Emmanuel Macron e o governo, incluindo o primeiro-ministro Gabriel Attal, reuniram-se no Eliseu para acertar agulhas. Meia-hora depois de serem conhecidas as estimativas, a mensagem que vinha dos assessores de Macron era de “prudência”. “Humildade, mas, ao fim de sete anos, o bloco central está vivo e recomenda-se”, dizia uma fonte ao Le Parisien — um sinal de que o Ensemble ainda espera ter voz neste processo.
Os resultados foram menos desastrosos do que as sondagens chegaram a prever (70 deputados foi a projeção mais pessimista), com o Ensemble (que reúne o Renascença de Macron, o Horizontes de Édouard Philippe e o MoDem de François Bayrou) a obter entre 150 a 180 deputados — atrás da NFP, mas à frente da União Nacional de Marine Le Pen, o que lhe permite salvar a face.
É com base nestes números que o Presidente quer envolver-se no debate de formação do novo governo. O secretário-geral do seu partido (e ministro dos Negócio Estrangeiros), Stéphane Séjourné, disse mesmo durante a noite que Macron irá apresentar “condições” às discussões para formar uma maioria, sendo claro numa delas: “É óbvio que Jean-Luc Mélenchon e alguns dos seus aliados” não podem estar no governo, por violarem linhas vermelhas como “a defesa dos princípios republicanos, em concreto o secularismo, a luta contra o racismo e o antissemitismo” e ainda a necessidade de “contribuir para a construção europeia e continuar a apoiar a Ucrânia”.
Mas Macron já não decide tudo dentro do seu campo político. Desde que decidiu convocar eleições antecipadas, foi cada vez mais e mais atacado pelos seus próprios aliados em público, que diziam não entender a decisão. “Não foi uma decisão solitária!”, assegurava o Presidente num almoço com jornalistas, na primeira semana de campanha, de acordo com o Le Monde. Mas a verdade é que Édouard Philippe, por exemplo, decretou que o Presidente “matou a sua própria maioria”. Nesta noite eleitoral, o líder do Horizontes, que acalenta ambições para as presidenciais de 2027, voltou a ditar ele as linhas vermelhas: um acordo “que estabilize a situação política”, mas sem “a União Nacional e a França Insubmissa”.
Quem também parece querer ter ainda uma palavra a dizer é o próprio primeiro-ministro, Gabriel Attal. Ao anunciar que irá apresentar a sua demissão (mantendo-se em gestão enquanto for necessário), não deixou de sublinhar que foi contra a convocação desta eleição antecipada, sinalizando claramente o desacordo com o Presidente.
Apesar dessas dissidências, um consenso estará a formar-se dentro do campo macronista, como notam fontes ao Le Figaro: uma aliança “mais ao centro”, que replique a ideia de “frente republicana” e possa incluir membros do Ensemble, bem como dos socialistas e dos ecologistas. Só a França Insubmissa de Mélenchon está completamente afastada.
Isso significa, contudo, que Macron terá de aceitar concessões de adversários a quem há poucos dias fazia críticas duras, acusando-os de ter um projeto “imigracionista” e discordando numa série de propostas económicas. Mas perante a nova constituição desta Assembleia, garante o mesmo jornal, “o coração do macronismo já está pronto a sonhar com um acordo com os socialistas, de forma a manter um pé dentro da equipa [de governo]”.
A verdadeira decisão à esquerda, onde Mélenchon é “um ativo tóxico” e ainda há quem sonhe com a possibilidade de Hollande como primeiro-ministro
Mas, e do outro lado, haverá essa vontade? Não só: irá Jean-Luc Mélenchon aceitar entrar simplesmente nessa noite escura que o deixa fora do arco do poder — apesar de liderar o partido com o maior número de deputados no Parlamento?
Nas fileiras socialistas, há a noção de que Mélenchon é “um ativo tóxico”. “Prejudica a esquerda com a sua cultura de confrontação”, admitia há uns dias ao Observador um antigo governante socialista. Razão pela qual Mélenchon tem ensaiado soluções. A 24 de junho, dizia que a FI tem outras figuras “capazes de serem primeiro-ministro” que não ele próprio, “preparadas para isso, em particular por mim”, destacando Manuel Bompard (que participou no primeiro debate destas legislativas) e Clémence Guetté, sua conhecida discípula.
Durante a campanha, a rejeição da figura de Mélenchon dentro da Nova Frente Popular foi sendo tornada pública por figuras como François Hollande, o ex-Presidente que volta agora à política como deputado eleito: “Ele já não está dentro do jogo, está só a tentar não ficar de fora. Mas foi acordado que ele não pode ser o homem escolhido para governar o país”, garantiu na passada quarta-feira.
As fileiras da FI agitaram-se com a possibilidade de Hollande poder estar a posicionar-se para tentar ser ele a assumir a posição de primeiro-ministro. Durante esta noite eleitoral, a deputada reeleita Clémentine Autain apelou no Canal 2 que haja um plenário esta segunda-feira da Nova Frente Popular para decidir que nome propor a Emmanuel Macron para primeiro-ministro — “e que ele não seja nem François Hollande, nem Jean-LucMélenchon”, esclareceu. Hollande apressou-se a responder na BFM TV que não é candidato a esse cargo: “Ainda não estamos aí”, afirmou.
A verdade é que, apesar de a FI ter provavelmente obtido o maior número de deputados (entre 68 e 74) de todos os partidos que compõem a Nova Frente Popular, o Partido Socialista não terá ficado muito atrás (63 a 69), segundo contas do Le Monde. “A FI pode continuar a ser, por uma curta margem, o maior grupo da esquerda, mas já não está numa posição dominante dentro da aliança”, nota o jornal.
Há semanas que as hostes socialistas têm medido forças com os Insubmissos, com figuras conhecidas a criticarem publicamente Mélenchon e a tentarem que o PS volte a assumir maior preponderância dentro da Frente Popular. “O risco de ingovernabilidade é grande. Será preciso um governo de coligação e os socialistas estão disponíveis, mas sem a FI”, assegurava uma dessas fontes — que não faz parte da atual direção da Frente Popular — ao Observador, dias antes do resultado deste domingo ser conhecido.
Um primeiro-ministro socialista é, por isso, uma hipótese? “Não é provável, mas não é impossível”, descrevia à altura a mesma fonte, que, instada a nomear quem poderia ocupar esse lugar, apontou nomes que não estão neste Parlamento, como Carole Delga (responsável do partido na região da Ocitânia), o eurodeputado Raphaël Glucksmann e… François Hollande. “Qualquer um deles pode ocupar esse lugar”, decretou este ex-governante socialista.
Menos claro é se Mélenchon e a FI estarão disponíveis a aceitar uma situação que os arreda do poder, abstendo-se para deixar passar um governo que não os inclua, por exemplo. Ou se, por outro lado, podem optar por declarar guerra aos socialistas e verdes por estes se aliarem ao macronismo.
Irá a esquerda manter a união criada em tempo recorde para estas eleições e conseguir alargá-la ao centro — como na última semana, graças ao trabalho dos “castores”? Ou irá a “barragem” rebentar do outro lado? Há dias, uma das figuras destacas da França Insubmissa desabafava ao Le Figaro que a unidade é, por vezes, aparente: “A guerra entre as nossas fileiras não desapareceu”.