A relação não foi estreita nem mesmo quando o PS e Bloco de Esquerda integraram a “geringonça”. A memória socialista desses tempos é, aliás, de um PCP “confiável” e de um BE mais preocupado com a capitalização mediática de cada momento de negociação. E nisso, a perceção pouco muda com a alteração na liderança, sobretudo se a sucessora for — como tudo indica — Mariana Mortágua, “filha dileta de Francisco Louçã”, como se faz questão de lembrar no PS que está atento aos sinais de “radicalização” do antigo parceiro — e para o que isso pode trazer ao partido.

“A questão não é de pessoas, mas da natureza e estratégia do BE“, comenta um alto dirigente ao Observador quando confrontado com a mudança no antigo parceiro e o que isso pode representar. A lembrança da proximidade com Louçã não é de somenos e dá corpo à expectativa de que pouco mude no conteúdo bloquista com esta alteração, com os socialistas a verem nisso a manutenção da ascendência do antigo líder sobre o partido do qual foi um dos fundadores. Mas o estilo de liderança também traz expectativas entre socialistas.

A circunstância política não faz antever um relacionamento mais alargado entre os dois partidos, embora no topo do partido se sinalize a desvantagem da crispação que já existia entre António Costa e Catarina Martins nesta fase. Espera-se, assim, que este refrescamento na liderança bloquista possa vir a ser mais favorável, nesse comparativo direto. Mortágua foi sempre um elemento presente nas rondas negociais ao mais alto nível no tempo da “geringonça”, desde a formação desta solução governativa à negociação de orçamentos do Estado, conhecendo bem os cantos ao estilo do atual líder socialista.

“Queremos ter no BE alguém com quem se possa negociar e confiar“, comenta um deputado socialista ao Observador quando confrontado com a mudança no BE. No palco parlamentar, a convicção é que a relação possa melhorar, já que com o partido liderado por Catarina Martins o desgaste era evidente.

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“Não vejo que possa ser mais dialogante do que Catarina Martins, mas abre a oportunidade para que se estenda o ramo da oliveira“, diz um socialista adepto da “geringonça”. “É a oportunidade para se fazer um reset, um novo começo para eventuais momentos de diálogo e de convergência entre o PS e o Bloco de Esquerda”, acrescenta a mesma fonte sobre esta comparação entre o BE de Martins e o futuro BE de Mortágua.

Mesmo que tenha sido na era de Catarina Martins que se deu a “geringonça”, o PS sempre mostrou maior proximidade e confiança em relação ao PCP que os socialistas ainda hoje descrevem como “leal e irrepreensível com a palavra dada”. Tanto que Jerónimo de Sousa saiu em novembro do partido e a comoção socialista foi mais marcada do que agora com a saída da líder do BE.

“Cada um escreve o seu epitáfio…”, atira um socialista sobre a diferença nas despedidas que alguns membros do partido dedicaram a Jerónimo de Sousa e a Catarina Martins. Um exemplo: o líder socialista, António Costa, dedicou ao ex-líder do PCP um tweet em que lhe deu os créditos pelo “primeiro corajoso e decisivo passo” da geringonça e de Catarina Martins sinalizou apenas o trabalho “conjunto” para “virar a página da austeridade”.

Já o presidente do PS, Carlos César, fez questão de fazer uma nota agridoce na despedida de Catarina Martins. Citado pela Lusa, lembrou como a coordenadora que está de saída “teve, no processo negocial de viabilização parlamentar do anterior governo, um papel muito relevante e que deixa esse legado na esquerda portuguesa”. Mas logo de seguida rematou: “Não obstante, posteriormente, se ter afastado, bem como ao BE, desse impulso inicial fundamental.”

Processo de radicalização em curso?

O chumbo do OE para 2022, que fez cair o Governo precipitando eleições, continua a ser uma arma de que os socialistas não dispensam para encostar o BE às cordas do radicalismo, ainda que da ida a votos antecipada até tenha saído uma confortável maioria absoluta para o seu partido.

“A rutura da geringonça ficou-lhe colada à pele, mais até do que ao PCP”, lembra um dirigente nacional do PS: “E a Mariana personifica isso”, aponta outro dirigente nacional do PS. “Tem um estilo que gera alguns anticorpos e é mais polarizadora”, descreve um deputado do partido.

E isto é mau para o PS? A “radicalização” do Bloco é um elemento que muitos socialistas veem como positivo para o isolamento do PS no centro-esquerda. Mariana Mortágua “baixará os decibéis, mas aumentará a agressividade. Tudo o que diz é corrosivo”, aponta um socialista que argumenta precisamente com essa vantagem. “Com a acrimónia do Chega do outro lado, que abafa PSD e IL, haverá uma radicalização de um lado e do outro e dá para polarizar”, resume um socialista.

Mas outro quadro do partido tem uma visão menos otimista. Nota a mesma “radicalização” no BE, com Mariana “a ser um símbolo disso mesmo, tanto pela marca original de ser filha de Camilo Mortágua como pela sua ação política”, sublinha. No entanto, considera que “a radicalização pode vir a confirmar um Chega à esquerda”. “É bom para o PS, mas cria um problema a prazo para se encontrar uma alternativa à esquerda“, remata.

De qualquer forma, o entendimento socialista é que tão cedo a questão do diálogo mais intenso não se colocará. “Não terá grande resultado durante a maioria absoluta do PS”, comenta um elemento da bancada socialista. “Mas é importante manter pontes abertas e a funcionar para se que se for preciso um acordo isso possa acontecer”, aponta.

Sobre esse futuro que vier para lá de António Costa, a relação com o BE vai depender do contexto político, claro, mas também de quem suceder ao atual líder. E aí é uma espécie de tudo ou nada, em que Pedro Nuno Santos (um dos nomes apontados  para esse mesmo futuro), representa o tudo que pode acontecer, e Fernando Medina ou Ana Catarina Mendes (mais dois nomes) que personificam relações mais difíceis.