Chegava ao Campus de Justiça, em Lisboa, pela manhã e passava o dia inteiro com uma juíza. Do rio Tejo, no Parque das Nações, pouco ou nada via. As horas sucediam-se, os dossiers empilhavam-se, mas as dúvidas também iam sendo esclarecidas. Para Margarida Vila-Nova, esta rotina foi a parte mais interessante da preparação para a sua personagem em “Causa Própria” — a primeira de 12 séries de ficção que a RTP pretende transmitir em 2022 e cuja estreia acontece esta quarta-feira, 5 de janeiro.
“Estava muito longe da justiça, nunca tinha sido testemunha sequer, era um universo distante para mim. A juíza que tive o privilégio de acompanhar deixou-me esclarecer uma data de questões em relação aos dias de trabalho, às sessões, como é que se gere vida profissional e pessoal. Um juiz leva trabalho para casa, são horas sem fim”, explica ao Observador a atriz que interpreta Ana Martins, a juíza no centro desta história que vai colocar em causa todos os seus papéis: profissional isenta, mãe, amiga, ex-mulher.
A protagonista pode ser fictícia, mas a ideia para o guião de Edgar Medina e Rui Cardoso Martins partiu do livro Levante-se o Réu, exatamente deste último. Sucede a uma crónica do jornal Público com o mesmo nome e compila casos que, ao longo de décadas, encheram os tribunais portugueses. O processo para chegar ao resultado final — o primeiro dos sete episódios fica disponível na RTP Play às 12 horas de dia 5 e é exibido nessa noite, pelas 21 horas, na RTP1 — foi longo e sofreu várias alterações.
[o trailer de “Causa Própria”:]
“Foi penoso. Já tínhamos o projeto antes de ‘Sul’ [série criminal de 2019], mas acabámos por escrever e produzir essa série antes desta. Avançamos entre duas vagas da pandemia, com testes regulares, porque não podíamos esperar que isto acabasse. Eu e o Rui escrevemos e reescrevemos tudo desde o início”, conta.
Dois capítulos estão terminados e entregues ao canal. Os restantes continuam nas mãos dos produtores. “Ainda estou a ver erros, a corrigir coisas, a rever o som de episódios, é uma tarefa um bocado obsessiva. Costuma dizer-se que um artista nunca acaba a obra de arte, abandona-a. Eu sinto muito isso. São processos longos: escrita, financiamento, pré-produção, produção, montagem. Porém, ainda consigo chegar ao fim dos projetos e ver os episódios com prazer.”
Foi isso que sentiu Margarida Vila-Nova ao assistir à exibição das duas primeiras partes. “Estava a ver a série e só via os meus colegas a marcarem golos de meio campo.”
O ponto de partida para “Causa Própria” é o homicídio de um adolescente. O “rapazito”, como algumas personagens se referem a ele, parece não ter raízes ou grandes amigos naquela localidade para a qual se mudou há dois anos. Obviamente que as versões “não conheço”, “não vi”, “não sei de nada” rapidamente vão começar a apresentar falhas e a expor segredos de uma comunidade aparentemente pacata.
O nome da vila nunca é referido. Podia ser qualquer uma em Portugal — e talvez noutros pontos do mundo. Toda a gente se conhece, toda a gente elabora teorias, pouca gente conta o que realmente sabe. Ana Martins, até ali uma juíza imparcial, tem de fazer parte do coletivo que vai julgar o caso e vê-se confrontada com várias decisões impossíveis quando percebe que os seus filhos adolescentes podem estar implicados.
“Parto da isenção para construir esta personagem e é curioso este dilema moral. O que é salvar um filho? É retirá-lo do local do crime ou é condená-lo? Ela é uma mulher reta, com uma vida estruturada, que prima pelo rigor. De repente, a vida chocalha o seu castelo e a desordem chega. Até onde é que esta juíza, que também é mãe, pode ir?”
Nenhum pai ou mãe pode dizer com toda a certeza que escolheria A ou B até ser colocado numa dessas situações. O impulso de sobrevivência também é válido em relação aos filhos. As decisões não têm sempre uma explicação racional, são viscerais. Embora nos dois capítulos disponibilizados à imprensa a narrativa ainda não tenha chegado a esse ponto, sabemos que é para lá que caminha, antevendo uma posição ingrata para esta juíza ao estilo de “Your Honor”, série da HBO em que Bryan Cranston é um juiz que dá por si a esconder e alterar provas para ilibar o filho de um homicídio.
Contrariamente a “Your Honor”, não sabemos à partida quem é o culpado ou se David (Afonso Laginha), filho de Ana, tem algum nível de culpa. Ainda assim, a tensão instala-se desde o início e, tal como os habitantes de uma pequena localidade que trocam conspirações, damos por nós a imaginar diferentes caminhos que a história pode seguir. Certamente não será a solução mais óbvia que nos é apresentada no segundo capítulo — ou será que é e está tudo construído para nos induzir em erro? Fica a dúvida no ar para que cada um pense por si.
Além de ter lido Levante-se o Réu, Margarida Vila-Nova devorou séries. “Your Honor” foi uma delas, mas a atriz quis sair da caixa da juíza e foi à procura de mulheres poderosas, como a detetive de Kate Winslet em “Mare of Easttown” ou o grupo de amigas de “Big Little Lies”.
“Há dois anos que esta personagem vive na minha cabeça e, apesar de o guião ter sofrido várias alterações, tive tempo para ir pensando numa mulher elegante, com força, carisma, que nunca perde o lado humano. Foi também muito importante o trabalho com o João Nuno [Pinto, o realizador], foi um encontro de almas”, garante.
Como se não bastasse o facto de o filho poder ser um dos suspeitos, Ana Martins é o ponto que liga outras personagens deste núcleo. O ex-marido, Vítor (Ivo Canelas) é procurador do Ministério Público; Alice (Maria Rueff) é advogada e uma das suas melhores amigas; e inesperadamente surge uma ligação a Mário (Nuno Lopes), o detetive responsável pelo caso.
Até que ponto é que uma juíza se pode envolver com o detetive que investiga um caso que ela vai julgar e que, ainda por cima, tem um familiar envolvido? Poder, não pode. Os alarmes que mandam Ana fugir desta confusão estão a soar bem alto mas, para bem da história, tudo se vai complicar.
“Começa por ser uma série criminal mas o interessante é o lado judicial, como tudo funciona em tribunal, e o lado familiar. Como se lida com uma história destas numa localidade onde acaba por ser impossível que estas coisas não se misturem?”, diz Nuno Lopes. É a primeira vez que interpreta um polícia e, embora a narrativa possa ser universal, houve detalhes que cativaram o ator.
“Este é um detetive peculiar por ser português e estar numa vila pequena. Numa série americana, quando os polícias encontram um cadáver, temos sempre a sensação que já viram 20 ou 30 casos como aquele. Aqui é uma coisa completamente nova. Ele próprio não sabe muito bem gerir a situação porque nunca lhe aconteceu e também não estava à espera que acontecesse no local onde cresceu e que tanto ama. A criminalidade que estamos habituados a ver como normal numa série americana, aqui é excecional, e isso muda tudo.”
A fotografia é exemplar. Os cenários, os planos aéreos e os locais abandonados — as gravações aconteceram no concelho das Caldas da Rainha — juntam-se numa dança de suspense e nervos cuja cadência é definida pela banda sonora do norte-americano Justin Melland, que tem no currículo projetos como “Mosquito — A Minissérie” ou “Conversations with a Killer: The Ted Bundy Files”.
Há ainda outro detalhe que “Causa Própria” consegue encaixar no tempo certo. Entre todo o drama — estamos a falar do homicídio violento de um adolescente e de outros miúdos que podem estar envolvidos — há um sentido de humor inteligente. “A carteira não tinha dinheiro, por isso não lhe tocámos”, diz a prostituta que entrega o objeto da vítima, André, aos inspetores. São pormenores por vezes subtis, outras vezes claros, que nos arrancam uma gargalhada — porque às vezes é mesmo nos momentos mais duros que reagimos de forma descabida.
“O facto de ser um evento extraordinário naquela vila e na vida daquelas pessoas, inclusive dos detetives, faz com que surjam momentos de humor. Não sabem muito bem lidar com a situação, cometem erros, toda a gente se conhece”, confirma Nuno Lopes.
A contracenar com ele está muitas vezes Catarina Wallenstein, a inspetora Maria. Muito mais nova, com um look gótico, tatuagens (“isso é sujo?, pergunta-lhe o procurador) e a incapacidade de abrir a boca o suficiente para esboçar um sorriso, é o outro lado da balança desta dupla. Contrariamente ao que esta descrição pode deixar crer, a caracterização não é exagerada, Catarina Wallenstein faz um trabalho sem falhas (se demorar uns minutos a perceber que é ela, é normal).
Podiam parecer dois inspetores patetas (como acontece em tantas séries) pela sua inexperiência, mas não é isso que passa para o ecrã, o empenho está lá. “A nossa dupla funciona porque se complementam. Ela tem uma visão do que os jovens pensam, das redes sociais, da Internet, coisa que a minha personagem abomina. Mas ele tem a vantagem de ser dali e de conhecer bem os costumes e a forma de pensar daquela gente”, explica Nuno Lopes ao Observador.
Olhando mais para a frente, a produção da RTP e da Arquipélagos Filmes pretende ser um conteúdo internacional? Edgar Medina diz que sim. “É uma preocupação e uma vontade que seja vista por mais pessoas. Não encaro nada disto como uma indústria, mas é importante que também tenha uma expressão económica para que possamos trabalhar com mais tempo e qualidade.”
O produto final não fica aquém de muitos projetos que coabitam nos inúmeros streamings. No entanto, o esforço para que assim seja continua a ser gigantesco.
“Começa a notar-se cada vez menos a diferença, felizmente, mas para nós, que filmamos, ainda é muito distinto. Estamos sempre à pressa”, diz Nuno Lopes. “Para mim, como ator, a diferença não tem a ver com qualidade, mas sim com tempo. Aqui posso filmar cinco cenas por dia e lá fora uma. Sempre tivemos capacidade de fazer tão bem como lá fora. Não temos é o dinheiro e isso muda tudo. Temos ótimos realizadores, argumentistas, atores maravilhosos, mas depois, na verdade, temos dois meses e meio ou três para fazer uma série, quando lá fora se tem dez. Faz toda a diferença. Fazemos muitas omeletes com poucos ovos.”