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Clarice Lispector nos anos 40 quando vivia em Berna, na Suíça
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Clarice Lispector nos anos 40 quando vivia em Berna, na Suíça

Instituto Moreira Sales

Clarice Lispector nos anos 40 quando vivia em Berna, na Suíça

Instituto Moreira Sales

Cem anos de um coração selvagem: a história, a escrita e a herança de Clarice Lispector

Nasceu há 100 anos, numa remota cidade da Ucrânia, fez do Brasil o seu país e foi em português que compôs uma obra genial, selvagem. Como o fez e qual o legado que continua a deixar perante quem a lê?

Como falar de um mistério sem o destruir? Como erguer um véu sem perder a graça divina, como abrir um livro de Clarice Lispector sem ficarmos presos na sua densidade enigmática, no deslumbramento ou no terror de encontrar alguém que, como escreveu Eduardo Prado Coelho, “pertence a outra ordem de conhecimento”? Com ela ou se têm encontros para a vida ou se sene uma repulsa total. Certamente não agrada a quem nunca pôs o pé fora da lógica, quem nunca abandonou a racionalidade, quem nunca “abriu vazios no mundo”, como fez Bernardo Soares. Sobretudo, quem julga que nunca pôs o pé no Mal, quem não sabe que “a inteligência está em não se compreender”, quem nunca esteve só “…abandonado, feliz perto do coração selvagem da vida”, para citar a frase de James Joyce que deu título ao primeiro romance da autora, escrito por volta dos 19/20 anos. Uma frase que se vem a revelar profética, pois condensa tudo o que será Clarice Lispector na sua vida e na sua obra; um coração, uma voz selvagem.

Neste 10 de dezembro, assinalam-se os 100 anos do seu nascimento, embora existam dúvidas se este será o dia certo, porque a história da sua vinda ao mundo foi de tal forma trágica, e Clarice gostava de tal modo de mentir quanto à sua origem e à sua idade, que na sua campa está apenas registado o dia da morte e o seu nome brasileiro “Clarice”, pois o seu nome de verdadeiro é Chaya Lispector. Chaya é um nome hebraico que significa, ao mesmo tempo, “vida” e “animal” e também ele foi profético, pois a animalidade, a proximidade entre o humano e o animal foram temas constantes na sua obra. O poeta Ferreira Gullar comparou o seu rosto ao de uma loba, e foram incontáveis os artistas que a fotografaram ou pintaram, desde logo o surrealista De Chirico, de tal forma a sua beleza impressionava. A própria descreveu-se como sendo “uma mulher nem bonita, nem feia” mas “uma mulher bíblica”. A verdade é que o seu rosto transitou de uma grande beleza juvenil para uma faceas enigmática, antiga como o mundo, como se tivesse atravessado todas as eras e, por isso, se tivesse tornado tão indecifrável como uma esfinge. Aquela que Lispector viu numa viagem ao Egipto e depois contou às irmãs: “Não a decifrei. Mas ela também não me decifrou a mim.”

Clarice, ainda muito jovem, pintada pelo surrealista De Chirico, que terá ficado impressionado com o seu rosto. O retrato foi feito em Roma, em 1945

A sua chegada ao mundo da escrita deu-se cedo: em 1943, aos 23 anos, lança o seu primeiro e surpreendente romance, Perto do Coração Selvagem, um livro que, segundo Prado Coelho, só poderemos “ler a partir de Bach, de Deus, ou da natureza abstrata das palavras. Mesmo que uma tal experiência se revele inesperada e definitivamente sísmica”. E foi, de facto, como um sismo que a escrita de Clarice mexeu com a tectónica da Língua Portuguesa; não se parecendo com ninguém, não usando uma sintaxe obediente às gramáticas, não revelando, na sua mundividência, nenhuma tradição, nem brasileira, nem portuguesa, ela estava mais próxima de Kafka, Rilke, Hermann Broch, de Espinoza, de uma escrita centro-europeia e não alheia à cultura judaica onde nasceu e cresceu.

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Sendo a terra, a paisagem, a natureza formas omnipresentes na sua obra e na sua conceção do humano, essa terra, essa paisagem eram e continuam a ser totalmente lugares estranhos, inidentificáveis com qualquer espaço conhecido. Mas Clarice Lispector nunca procurou a verosimilhança ou o realismo e os seus romances e contos fluem no interior do humano e no interior da linguagem. Por isso, a sua escrita foi tantas vezes classificada de hermética, como se ser “hermético” fosse algo negativo e não apenas uma forma menos convencional de representar o mundo. É ainda Prado Coelho, nas palavras que escreveu no prefácio do livro Perto do Coração Selvagem, publicado em 1980, pelo Círculo de Leitores, que afirma que a escrita de Lispector é “engendrada a partir de núcleos fortes da memória e incapaz de atingir um desenlace, ficando a pairar como uma espécie de sonolência” ou, acrescentamos nós, de feitiço.

Cada uma das suas histórias é descontinua, fragmentária, mesmo quando tem todos os ingrediente de um romance normal: tem personagens, algum enredo, algumas peripécias. Porém, todas elas estão cheias de factos impensáveis, sensações e perceções que nunca tinham chegado à palavra pronunciável, que nunca tinham sido ditas antes. As suas obras estão cheias de descobertas banais, pequenos acidentes, acasos, coisas menores a partir dos quais Clarice vai transgredir toda a ordem literária estabelecida, seja nos romances, nos contos ou nas crónicas.

"A bondade me dá ânsias de vomitar. A bondade morna, leve, cheira a carne crua guardada há muito tempo.O gosto do mal é um mastigar vermelho (...) só no mal pode respirar sem medo", escreveu Clarice Lispector em "Perto do Coração Selvagem"

A escritora tem, em si, sem sabermos de onde vem, um conhecimento profundo da vida humana, porque sabe que não há totalidade, linearidade, origem ou fim; há apenas seres, corpos que se cruzam, justapõem, que se transformam inexoravelmente. Ela capta, como poucos, a singularidade de cada existência anónima, seja uma mulher, um homem, um ovo, uma galinha, uma pigmeia, uma avó, uma criança, um fruto. Tudo coisas comuns, vulgares até, mas que depois de vistas por Clarice passam a ocupar um lugar único no mundo, porque ela as diz em frases inacabadas e, ao mesmo tempo, tão certeiras, tão perfeitas. Os textos de Lispector são, como escreve Michel Foucault, na Arqueologia do Saber, “algo que nem uma língua pode esgotar”, são “acontecimentos que abrem para a existência no campo da memória, ligados a tudo o que a precede e procede”. Assim podemos afirmar que ela não é tanto uma escritora psicologizante, como é metafísica. A sua busca, como afirma o seu biógrafo, Benjamin Moser, “é para se identificar com o inumano que, em ultima instância, será Deus”.

“A bondade me dá ânsias de vomitar. A bondade morna, leve, cheira a carne crua guardada há muito tempo.O gosto do mal é um mastigar vermelho (…) só no mal pode respirar sem medo.” [“Perto do Coração Selvagem”]

“O mistério diz mais que a claridade”

O professor Carlos Mendes de Sousa, um dos mais importantes estudiosos da obra lispectoriana, resume assim o difícil caminho que a obra da autora teve em Portugal, de resto como teve no Brasil, onde hoje é uma escritora de culto e os seus livros se vendem em máquinas automáticas:

“(…) a sua difusão entre nós deu-se de uma forma lenta. Em Portugal, contrariamente ao que sucedeu com a regular difusão das obras de outros ficcionistas brasileiros, apenas em 1961 foi publicado o primeiro romance de Clarice, Perto do Coração Selvagem, justamente na coleção de autores brasileiros da editora Livros do Brasil, que editou muitos livros de autores como Jorge Amado, Érico Veríssimo ou José Lins do Rego. Seria necessário esperar quase trinta anos para que se alterasse a situação: em 1988, esse mesmo livro é editado pelo Círculo de Leitores (com um prefácio de Eduardo Prado Coelho). No ano seguinte, a editora Relógio d’Água publica os livros Laços de Família e Onde Estivestes de Noite. No final da década seguinte, em 1999, saiu o romance Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, sob a chancela da mesma editora, que, a partir daqui, passou a publicar com regularidade a obra da escritora. Creio que hoje estará toda editada entre nós e talvez se tenha tornado mesmo uma escritora de culto. Talvez seja o nome brasileiro mais lido. Não sei. Também não sei se isso leva a que os portugueses tenham a noção do seu lugar na literatura. Mas creio que será decerto um caminho.”

Clarice, um coração selvagem, nos tempos em que vivia em Berna, na Suíça, e detestava pela harmonia e arrumação

É certo que devemos a Francisco Vale, da editora Relógio d’Água, o investimento sistemático da publicação da obra completa da autora. Desde 1990 e ao longo de trinta anos, já foram editados todos os romances, contos, crónicas jornalísticas, literatura infanto-juvenil, a biografia de Benjamim Moser e, no final de janeiro de 2021, sairá o derradeiro: a correspondência, onde se encontram cartas de Clarice Lispector às irmãs, a outros escritores, editores, amigos, revelando uma faceta mais intimista da escritora que raramente dava entrevistas, raramente falava da sua vida privada, embora, paradoxalmente, as suas obras estejam profundamente ligadas a acontecimentos da sua existência, aos caminhos do seu pensamento, às suas dúvidas existenciais.

Segundo Francisco Vale, “atualmente não há um dia que não se venda, em Portugal, um livro de Clarice e nas feiras do livro vendem-se centenas. Esta descoberta tem sido, segundo o editor, impulsionada por alguns acontecimentos como a publicação na sua biografia nos EUA, por Benjamin Moser, uma exposição que a Gulbenkian lhe dedicou, ou a saída do já famoso A Paixão Segundo G.H. que a tornou alvo de um enorme fascínio por parte da filosofia. “Não é um bestseller, nunca será, pois ela não é acessível a toda a gente. Nela a escrita é um processo de conhecimento, é dolorosa, fragmentária”. O editor aponta os livros Laços de Família, A Hora da Estrela e o volume de contos A Descoberta do Mundo como os que mais se vendem.

Uma das escritoras de língua portuguesa mais geniais e importantes do século XX nasceu na Ucrânia e cresceu no Brasil e tinha uma forma estranha de dizer os “rr”, provavelmente devido à sua língua materna e familiar ser o iíddich (língua dos judeus Ashkenazi, que viviam na Europa central e de leste) e se chamava Clarice, nome que adotou quando chegou ao Recife por volta de 1921/22. Teria pouco mais de um ano e desembarcava como refugiada da Ucrânia varrida por pogroms, massacres étnicos só comparáveis ao Holocausto nazi. A terrível história da pequena Chaya e da sua família obriga-nos a pensar na vaga de refugiados que todos os dias aportam na Europa fugindo de guerras nos seus países, mas também na nova onda de anti-semitismo que se adensa.

Hoje há, junto à famosa praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, uma estátua de Clarice e outra na remota cidade Ucraniana de Tchechelnick, que já foi pertença da Polónia, que tem uma história sangrenta ligada a constantes invasões tártaras. Estas duas estátuas separadas pelo vasto Atlântico só existem porque o Brasil foi um pais que acolheu milhares de refugiados judeus entre a primeira e a segunda Guerras Mundiais. Esses judeus fixaram-se maioritariamente na zona do Recife, que contava até uma escola hebraica, onde Clarice estudou os três primeiros anos. Mais tarde, haveria de ser a única judia a estudar Direito na Universidade do Rio de Janeiro, embora a sua relação com o judaísmo nunca tenha sido aprofundada, ao contrario da sua irmã mais velha, Elisa Lispector, que era sionista, que também escreveu alguns romances e num deles conta a fuga da família da Ucrânia e a acidentada viagem até aportarem em Pernambuco.

Clarice Lispector entre a família

As circunstâncias do seu nascimento, trágicas a vários níveis, marcaram indelevelmente toda a sua vida e, segundo o biógrafo Benjamin Moser, eram uma das causas das suas depressões constantes. O pai de Clarice, Pinkas Lispector, era um homem culto que estaria destinado a estudar matemáticas, mas como havia, nas universidades europeias, quotas apertadas para judeus, ele não conseguiu entrar. Tornou-se comerciante e casou com Mania, de uma família mais abastada. Apesar da vaga de pogroms e violência anti-semita, os Lispector, que já tinham duas filhas, nunca terão pensado em fugir. Numa noite em que Pinkas tinha viajado houve um ataque à cidade, a casa foi roubada e Mania terá sido violada por um ou mais homens, contraindo sífilis, na época ainda sem cura.

Na tradição Hassídica, como no judaísmo em geral, há muitas correntes místicas, abundam feiticeiras, mulheres que sabem manipular ervas, venenos e histórias de milagres, crenças milenares. Uma delas era a de que a sífilis poderia ser curada com um nova gravidez. Pinkas e Mania decidem então ter outro filho e partir da Ucrânia. Com as joias que Mania possuía foram conseguindo passaportes e formas de fuga numa viagem que deve ter demorado uns dois anos, até conseguirem embarcar para o Brasil. Tchechelnik não era a cidade dos Lispector, mais foi aí que eles pararam para nascer a criança-promessa. Foi ai que nasceu então Chaya, com a missão de salvar a mãe. Foi quase um milagre que tivesse nascido sem ter contraído a doença, mas a mãe não se curou, nem viria a curar-se. Mania morre no Brasil, quando Clarice tem 9 anos, o pai morrerá quando ela tem 19.

“Quase não sei o que sinto, se na verdade sinto. O que não existe passa a existir ao receber um nome. Eu escrevo para fazer existir e para existir-me. Desde criança procuro o sopro da palavra que dá vida aos sussurros. Só não me tornei um verdadeiro escritor porque me perco demais entre as vidas e minha vida. E porque também preciso pôr ordem na minha vida, nesse caos de que é feita esta vida grave e inassimilável. Não consigo me associar à minha vida. Grave como um menino de 13 anos. Grave como uma boca aberta cantando. A anunciação. Que desaforo: me fazer esperar” [“Um Sopro de Vida”]

Criança precoce em tudo, cedo aprendeu a ler, inventava histórias para contar à mãe, entretanto paralisada. Chegaram ao Brasil pobres, o pai trabalhava como vendedor de tecidos, continuaram pobres. Muitas histórias pungentes da sua infância vão ser contadas nas suas crónicas, como a sua amizade com Leopoldo Nachbin, que viria a tornar-se um famoso matemático, o ritual das suas idas à praia ao nascer do sol, a colega que deixou de lhe emprestar livros e a sua impossibilidade de os comprar.

“Passávamos por cavalos belos que esperam de pé pelo amanhecer. Eu não sei da infância alheia. Mas essa viagem diária me tornava uma criança completa de alegria. E me serviu de promessa de felicidade para o futuro. Minha capacidade de ser feliz se revelava. Eu me agarrava, dentro de uma infância muito infeliz, a essa ilha encantada que era a viagem diária (…) a quem devo pedir que na minha vida se repita a felicidade? Como sentir com a frescura da inocência o sol vermelho se levantar? Nunca mais? Nunca mais.” [“Banhos de Mar, Crónicas”, 1969]

Clarice Lispector, “um não-lugar literário”

O casamento da irmã mais velha, Elisa, com um judeu abastado do Rio de Janeiro, permitiu a Clarice poder estudar na universidade, mas como o Direito não a interessava, começou a trabalhar como repórter no jornal A Noite. No entanto, pouco depois casa com o diplomata Maury Gurgel Valente e, durante quase duas décadas, vive fora do Brasil, deixando para trás o seu sísmico primeiro romance e uma aura de enigma. Dizia-se que Clarice Lispector não existia, que era um homem, que era uma lésbica, que era pseudónimo de alguém famoso, que era um comunista. Os seus livros seguintes, O Lustre e A Cidade Sitiada, tiveram dificuldade em encontrar editores e leitores. Curiosamente, uma das pessoas que a leu, foi o crítico literário português João Gaspar Simões. Leu A Cidade Sitiada, para muitos o seu melhor romance. Mas como encontrar o melhor em Clarice sem ser redutor? Claramente bem impressionado, Gaspar Simões escreveu que o livro era “hermético”, mas “é um hermetismo que tem a consistência do hermetismo dos sonhos. Haja quem lhe encontre a chave.”. Ainda ninguém encontrou.

"Clarice foi um ser assinalado, convocado a revelar o mistério que arde no coração das pessoas — e das coisas. À semelhança de Van Gogh, ela sabia, com a pele do corpo — e da alma —, que debaixo de tudo lavra um incêndio", escreve Carlos Mendes de Sousa.

Já o poeta brasileiro Ivo Lêdo escreverá que Clarice Lispector:

“…era a primeira e mais radical afirmação de um não-lugar na literatura brasileira, apesar de ser também a mais importante escritora da nossa modernidade literária Essa prosa fronteiriça emigratória e imigratória, não nos remete para nenhum dos nossos antecessores, dir-se-ia que ela, brasileira naturalizada, naturalizou a língua.”

Carlos Mendes de Sousa explica que a singularidade e a subversão da sua escrita nasce de um hibridismo de géneros:

Em “Água Viva” encontramos uma frase de grande impacto: “género não me pega mais”. Esta frase podia ser apresentada, como divisa, à entrada da obra. “Água Viva” leva bastante longe essa expressão: como se fosse uma carta ou um diário, sem o ser; como se fosse um poema, uma ficção, ou um texto filosófico, sem o ser. Vamos encontrar essa intersticialidade e esse hibridismo, digamos assim, em muitos textos. Esse é um dos pontos que faz com que obra tenha um lugar único. Tem-se escrito sobre o facto de a sua obra genologicamente se situar em zonas fronteiriças, podendo toda ela ser perspetivada nessa clave: entre o texto narrativo, o texto lírico e o texto ensaístico ou filosófico. A partir da perspetivação da escrita como uma experiência de intensidades, de fluxos energéticos, onde tendem a dissolver-se as fronteiras demarcadoras dos géneros, somos conduzidos a um largo painel narrativo onde se delineiam quadros, mais ou menos extensos. Nos romances, encontramos sucessões de micronarrativas. E nos contos, extraordinariamente bem delineados, ou nos pequenos textos inclassificáveis, podemos ler um contínuo narrativo, de vida urgente de alegrias e dores, escrito com as entranhas ou com a ponta dos dedos, como a própria autora testemunhou.

Clarice na adolescência. aos 13 anos decidiu que queria tornar-se escritora

“Perder-se também é caminho”, pensa Lucrécia, a protagonista de A Cidade Sitiada, enquanto caminha pelas grandes e desconhecidas ruas e avenidas da metrópole recém construída que vai engolindo os pobres subúrbios onde ela vive. Suburbana e fútil Lucrécia, tal como a cidade, ignora toda a vida fervilhante de sonhos e esperanças que habitam ao seu redor. Ela, tal como Virgínia, de O Lustre, Lori de Uma Aprendizagem, Macabea de A Hora da Estrela ou Ulisses de A Maçã no Escuro, faz parte de uma vasta galeria de criaturas selvagens, com um mundo interior tão complexo, quanto disfórico, construído à revelia de todas as pressões sociais para a impessoalidade, para a anestesia, e que vivem aprisionados numa existência normalizada. Simultaneamente banais e monstruosas contam, cada uma à sua maneira, como a vida é feita de repressões e superações, como cada acontecimento banal pode gerar um pequeno terramoto na nossa vida interior, desvendar relações ocultadas, ligar factos com uma origem remota e esquecida, abrir brechas, provocar derrocadas.

“Volto a dizer: Clarice foi um ser assinalado, convocado a revelar o mistério que arde no coração das pessoas — e das coisas. À semelhança de Van Gogh, ela sabia, com a pele do corpo — e da alma —, que debaixo de tudo lavra um incêndio. E dedicou-se a dizê-lo, através da linguagem. Nessa medida, o campo gravitacional criado por Clarice transcende a dimensão literária, para tornar-se, também, testemunho filosófico místico — e visionário” [Helio Pellegrino no livro “Clarice Pintora” de Carlos Mendes de Sousa]

Nos seus livros não há finais felizes, porque eles pertencem a outra zona da existência dominada por pulsões animais, místicas, por dúvidas lancinantes que, num determinado momento, farão ruir todo o edifício das aparências. A autora não perde muito tempo com o enredo, com a descrição de paisagens e lugares exteriores e, quando o faz, é apenas para deixar ver o lado invisível e indizível da vida. Aliás, a nível formal os seus textos têm a mesma natureza das suas personagens; são conscientemente desobedientes à pontuação, e a estrutura frásica procura apanhar os caóticos fios de pensamento, não há lineariedade temporal e a história é-nos dada em fragmentos: “Antes de entrar no quarto quem era eu? Era o que os outros me haviam visto ser, e assim ninguém me conhecia”, escreve em A Paixão de G.H..

Quem também tem escrito sobre Clarice Lispector é a filósofa Maria Filomena Molder. Eis uma das coisas que escreveu para a comemoração do dia de Clarice, em 2019 e agora cedeu ao Observador:

Naquilo que Clarice Lispector escreve há muitos animais, mas ainda mais homens e mulheres, mulheres e homens. De mais nada se trata. “Onde estivestes de noite?” Não se sabe a quem se aplica “estivestes”, se a um conjunto, se a um só. Ela-ele é o reduto do anónimo, atraente, horrendo, o apetite sem freio, a força indomável do sonho de que ninguém se lembra. Por vezes, os seus actos, os seus sons, levam-nos até às noites fáusticas de Goethe, mas, por um lado, as criaturas goethianas têm nome mítico; e, por outro, as facécias de Mefistófeles diminuem a intensidade do terror e a sua algidez. Com Ela-ele, no reino do êxtase-pânico, o humor nem sequer foi enterrado, é descabido, não é chamado ao caso. Ela-ele não é um nome, apesar de ser um par de pronomes, o que tem de ser trocado pelos miúdos das entrelinhas. Ela não é esta ou aquela, ele não é este nem aquele. O coração selvagem, a voz indomável.

A filósofa lembra ainda que “não há outro mundo” além deste, por isso não deveríamos passar por ele sem ler Clarice Lispector:

“Ela está sempre a mostrar que é assim. Por ter inventado o Ele-ela ou a Ela-ele, a noite que liberta os dias, mas não tira os pecados do mundo; por ter descido à mina profunda do coração sem vergonha e sem escândalo; por nos ter dado a conhecer as inúmeras formas de alegria e não ter mentido sobre a dor; por ter confessado publicamente, na televisão, que, quando não escreve, se sente: — Morta; por ter escrito, para ganhar, a vida sob os pseudónimos — Teresa Quadros, Helen Palmer e Ilka Soares — [na obra] Só para mulheres: ‘Você é ‘moralmente’ tão antiquada a ponto de considerar vaidade feminina uma frivolidade?'”

"Muitas mulheres confundem elegância com aparato, exagero, os quais pelo contrário são inimigos da mulher elegante (...) acompanhar todos os caprichos da moda, isto é vulgaridade"

Uma pobre emigrante, judia, escritora precoce e genial, que se vestia com elegância de aristocrata, que passava bastante tempo a viver de uma forma convencional, como mulher de um diplomata, em jantares e eventos sociais, que sabia tanto sobre artes plásticas como truques para parecer mais magra, que adorava roupa e usava sempre os olhos delineados por eyeliner preto, que era glamourosa como uma estrela de cinema, mas que contemplava o humano como se soubesse todos os seus mistérios e tinha manejo virtuoso da Língua Portuguesa era algo que não encaixava em lado nenhum.

Diz Carlos Mendes de Sousa ao Observador:

“Sempre achei que há alguma cosia de eslavo na literatura espantosa que Clarice no ofereceu. É difícil fundamentar, eu sei. Na verdade, Clarice é Clarice no seu universo extraterritorial. Clarice foi a estrangeira de si mesma que sabia que a marca da origem só se podia encontrar dentro da língua de que ela se apoderou e trabalhou inconfundivelmente: escrevendo o âmago, atingindo o âmago da palavra viva no corpo vivo. É por isso que Clarice está tão próxima de uma estirpe extraterritorial como aquela que Hélène Cixous entusiasticamente apontou: Kafka, Rilke, Rimbaud, Heidegger. Cixous falou de “uma mulher quase difícil de acreditar”, para acrescentar de imediato: “ou, melhor dito, uma escrita”. Pode dizer-se que a essa escrita-Lispector, marcada por uma densa amplitude reflexiva, subjaz a necessidade de pôr em prática um experimentalismo obcecado pela diferença. Fale-se de uma ebulição constante que não parece dissociável da profunda inquietação que transparece em praticamente todos os textos, e que por certo não é alheia à visão de um mundo encarado como doloroso estranhamento. O carácter lúdico que preside ao acumular de diferentes experiências ficcionais mais não faz do que acentuar, por contraste, o desassossego que ressumbra de cada texto e que reflete o próprio processo, a própria busca que é a escrita.”

Em 1959, Clarice divorcia-se de Maury Gurgel e volta para o Rio de Janeiro com os dois filhos. Escreve crónicas em vários jornais para sobreviver, algumas sob pseudónimo, engaja-se na luta contra a ditadura militar, tem amantes, desencontros, psicanalistas, desesperos. Já nos anos 70, um incêndio acidental em casa, deixa-lhe a mão direita quase inutilizada. As suas heroínas e heróis passam a ser mulheres de meia idade, com outras buscas e outros problemas. Escreveu A Maçã no Escuro, A Hora da Estrela, Água Viva e Um Sopro de Vida (publicado postumamente). A 9 de dezembro, de 1977, o mistério Clarice/Chaya, desaparecia deste mundo. Tinha apenas 57 anos e não fazia ideia, nem questão do lugar de mito que a esperava. Esse lugar perigosíssimo e ambíguo, pois tanto serve para amar como para neutralizar um artista e a força disruptiva da sua obra.

Lispector terá, pensado, como uma das suas personagens , que "é mais difícil ser humano que ser santo". Na única entrevista que deu para a televisão, meses antes de morrer, quando um entrevistador lhe perguntou "Clarice, porque é que você escreve?", ela acendeu calmamente um cigarro, respondeu-lhe: "E eu sei?".

Atualmente, centenas de frases de Clarice Lispector percorrem as redes sociais na sua forma verídica ou apócrifa, em modo de auto-ajuda grafadas sobre desenhos kitsch, e há projetos para se fazer um filme baseado na sua história de vida. É provável que os movimentos feministas mais radicais venham a crucificá-la como anti-feminista. Ela tem crónicas sobre como uma mulher deve receber o marido, por exemplo. Mas apenas àquelas que não quiserem compreender que o feminismo militante de Clarice Lispector, era, acima de tudo, radicalmente humano e inteligente e, por isso, não poderia excluir os homens.

Hoje, 100 anos depois do seu nascimento, ela é causa de um fascínio crescente; é a escritora de Língua Portuguesa mais traduzida no mundo, mais precisamente em 113 línguas. Não sabemos como reagiria a este sucesso imparável, mas provavelmente iria querer fugir dele, até porque sabia que para ouvir o mundo era preciso solidão e silêncio. “Preciso de dinheiro, a posição de um mito não me é muito confortável”, terá dito a um jornalista. Portanto, é provável, como escreveu Benjamin Moser, que quando Maria Bethânia se ajoelhou a seus pés e a chamou de “minha deusa”, Lispector terá, pensado, como uma das suas personagens , que “é mais difícil ser humano que ser santo”. Na única entrevista que deu para a televisão, meses antes de morrer, quando um entrevistador lhe perguntou “Clarice, porque é que você escreve?”, ela acendeu calmamente um cigarro, respondeu-lhe: “E eu sei?”.

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