O drama orçamental voltou. Os sociais-democratas surpreenderam esta sexta-feira a oposição ao colocarem em cima da mesa o regresso da redução do IRC em 2 pontos percentuais. Essa descida só acontecerá numa circunstância: se o PS chumbar a redução do imposto sobre as empresas em 1 ponto percentual. Ora, acontece que os socialistas já deram sinais de estarem indisponíveis para aprovar a descida de 1 ponto — logo, por maioria de razão, chumbariam também a redução de 2 pontos. Resultado possível: se o Governo insistir neste braço de ferro com o PS, volta a colocar-se como hipótese real o chumbo do Orçamento do Estado para 2025.
É preciso recuar às negociações entre Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos para perceber o que está efetivamente em causa. Originalmente, o plano do Governo era garantir já a redução do IRC em 2 pontos percentuais, de 21 para 19%. Depois de muitas idas e voltas, Montenegro acedeu baixar apenas 1 ponto percentual, mantendo a possibilidade de vir a revisitar o imposto nos anos seguintes. Para Pedro Nuno Santos, o gesto não foi suficiente — o PS até admitia a redução de 1 ponto percentual, desde que existisse a garantia de que o Governo não mexia mais no imposto ao longo da legislatura.
Como é público, o acordo entre os dois falhou. Mas o Governo assumiu sempre que manteria essa base mínima de compromisso — este ano, a redução do IRC iria ser de apenas 1 ponto percentual, nos anos seguintes logo se via, sabendo, à partida, que não poderia contar com o PS para seguir essa linha de redução da carga fiscal.
Quando anunciou que estava disposto a viabilizar o Orçamento do Estado, Pedro Nuno Santos disse que o faria apenas e só para evitar nova crise política e convocação de eleições antecipadas. Nessa mesma noite, porém, o secretário-geral do PS acrescentou outra coisa importante, em resposta a uma pergunta dos jornalistas sobre a votação na especialidade: “Não nos passa pela cabeça sermos surpreendidos com votações que unam toda a direita. Estamos a partir de um pressuposto de que temos um Orçamento, mas o nosso voto final global é o mesmo da generalidade”.
Daí para cá, os socialistas foram sugerindo em diversas ocasiões que se o Governo quisesse de facto garantir a redução do IRC na especialidade teria de procurar outros parceiros negociais, nomeadamente o Chega e a Iniciativa Liberal. Ainda esta quinta-feira, num debate com o social-democrata Hugo Carneiro, transmitido pelo Observador, Mariana Vieira da Silva dizia isso mesmo: que o PSD e CDS tinham de encontrar no Parlamento forma de aprovar essa redução do imposto.
Era, até hoje, um dado assumido por todos que o PS votaria contra esta proposta e que o PSD e CDS precisariam necessariamente dos votos de André Ventura para garantir esta redução, o que estava perfeitamente garantido. No entanto, esta sexta-feira, Hugo Soares, líder parlamentar do PSD, introduziu um dado que veio baralhar tudo e reabrir uma caixa de pandora que se julgava encerrada: se o PS chumbar de facto a proposta de redução em 1 ponto percentual do IRC, então a coligação recupera a proposta original e tenta forçar a redução de 2 pontos percentuais do imposto sobre as empresas, sabendo sempre que a medida contará com a aprovação das bancadas à direita.
Chega é o ângulo morto
É importante recordar que toda e qualquer proposta é votada individualmente na especialidade. No final, o documento como um todo é submetido a votação final global. Na prática, esta proposta de redução de 2 pontos percentuais do IRC pode ser aprovada pelas bancadas mais à direita, mesmo com a oposição dos socialistas. Posteriormente, haverá um momento em que o documento é votado como um todo e em que a abstenção do PS é essencial para o viabilizar — tal como aconteceu na discussão na generalidade. Ou seja, nesse cenário, se quisessem manter o sentido de voto, os socialistas teriam de validar um Orçamento do Estado com a redução do IRC para 19%.
Esta jogada coloca Pedro Nuno Santos perante quatro hipóteses: ou aceita a redução de 1 ponto; ou viabiliza, em votação final global, um Orçamento que tem como pressuposto a redução de 2 pontos percentuais de IRC; ou mantém o voto contra qualquer redução transversal do IRC e deixa o assunto para o PSD resolver com o Chega, na expectativa que possa passar a proposta do Governo (1 pp do IRC); ou então chumba o documento e o mais provável é colocar-se um cenário de crise política e de eleições antecipadas.
O primeiro cenário seria mau; o segundo seria inaceitável para o PS; o terceiro é empurrar o assunto para um partido que não tem demonstrado especiais preocupações com a estabilidade política; o quarto seria de um enorme risco para todos os envolvidos.
As propostas de alteração ao Orçamento são votadas em primeiro lugar, o que significa que a primeira proposta a ser votada é a descida de dois pontos percentuais do IRC, que o Chega e agora também o PSD vão apresentar. Nessa primeira votação, os sociais-democratas vão chumbar tudo, incluindo a sua própria proposta. Depois, o PS será obrigado a clarificar como vota a redução de 1 ponto percentual, a proposta original do Governo. Se votar contra, os sociais-democratas recuperam a proposta de 2 pontos percentuais e levam a medida a votos.
Existe um evidente ângulo morto na renovada estratégia dos sociais-democratas: o que fará, na verdade, André Ventura? No limite, se o Chega aprovar a redução de 1 ponto percentual do IRC, substituindo-se ao PS, a medida é aprovada e o Governo fica sem argumentos para se vitimizar — seria, no mínimo, bizarro se o viesse a fazer. Agora, a partir do momento em que acenou com uma redução de 21 para 19%, o PSD acredita que o Chega não terá qualquer incentivo para votar a favor de uma redução mais minimal do IRC sabendo que a alternativa é melhor. E é com base nesse cálculo que foi desenhada esta estratégia por parte dos sociais-democratas.
PS em silêncio. PSD convencido de que tem a faca e o queijo na mão
A prudência com que a líder parlamentar socialista, Alexandra Leitão, falou esta tarde sobre a redução do IRC mostra bem a delicadeza do tema — falou ainda antes da conferência de imprensa do PSD, mas não chegou a dizer de forma clara que o PS votará contra o IRC, o que o Observador já escreveu citando um alto dirigente socialista.
Ainda assim, é certo que a líder parlamentar também não deixou propriamente uma nesga da porta aberta, ao dizer que “o PS afirmou repetidamente que a sua prioridade, a sua visão relativamente ao IRC é de que a economia beneficia de um IRC que tenha reduções seletivas e não reduções transversais”. “É por causa desse 1% de redução do IRC que não houve acordo entre o PS e o Governo para este Orçamento do Estado”, começou por recordar.
“Não é a nossa proposta. É, aliás, por causa dessa proposta que não houve acordo, não é a solução que nós privilegiamos nem consideramos que é a melhor para a economia portuguesa. Teremos ainda longas reuniões para acertarmos o sentido de voto, mas naturalmente não é essa a nossa visão em termos da melhor fiscalidade para potenciar a economia portuguesa e isso já todos sabem é que assim”, salvaguardou a socialista.
Quando Alexandra Leitão fez estas declarações não era ainda público que o PSD ia forçar de novo o debate sobre a redução do IRC. Horas depois, Hugo Soares explicava ao que vinha: “A AD vai votar contra a proposta dos 2 pontos percentuais, na expectativa de que o compromisso [com o PS] seja aprovado — a tal redução 1 ponto percentual. Se não for [cumprido o acordo], avocaremos [para plenário] a votação da proposta de 2 pontos percentuais e mudamos o sentido de voto.”
O que o líder parlamentar do PSD ignora — ou omite — é que nunca houve acordo para a redução de 1 ponto percentual do IRC. Mas esse facto é agora pouco relevante, até porque os sociais-democratas julgam ter a faca e o queijo na mão: quando anunciou que iria viabilizar o Orçamento do Estado na generalidade e na especialidade, Pedro Nuno Santos nunca falou no IRC, mas antes no interesse nacional.
“Em que é que a redução do IRC em 1 ponto percentual colide com os pressupostos do PS para se abster no Orçamento do Estado? Pedro Nuno Santos disse que o fazia para evitar eleições”, sugere ao Observador fonte da bancada social-democrata. Já esta tarde, Hugo Soares tinha dito algo de muito semelhante: “O PS tem todas as condições para viabilizar a descida do IRC de um ponto, ou de dois pontos, ou nem uma, nem outra, e viabilizar na mesma o Orçamento do Estado”.
Miranda Sarmento admitia ficar sem redução do IRC. Hugo Soares estava ‘ok’ com 20%
No PS também são recordadas declarações de Hugo Soares há apenas 20 dias sobre esta mesma matéria. Na rádio Renascença, o líder do PSD disse o seguinte: “Como é público, o PS viabiliza o Orçamento se ele apenas descer 1% no IRC. Entre baixar 1% e ter Orçamento e baixar 2% e não ter Orçamento, creio que toda a gente percebe que o Governo não pode ir mais além”, dizia então. A ideia era então dar conforto ao PS nesta matéria, com o líder parlamentar do PSD a dar garantias de que o partido não voltaria à proposta inicial e por uma questão de compromisso com os socialistas.
Aliás, durante o 42.º Congresso do PSD, que decorreu a 19 e 20 de outubro, em Braga, Joaquim Miranda Sarmento chegou a assumir em entrevista a RTP que se a redução do IRC ficasse comprometida não seria exatamente fatal para o Governo — o que surpreendeu muitos sociais-democratas. “Não me parece que isso seja um tema para colocar em causa a estabilidade”, dizia então o ministro das Finanças. Agora, a questão é recuperada e é recuperada a dobrar por iniciativa do próprio PSD.
O mesmo Joaquim Miranda Sarmento veio garantir hoje, sexta-feira, que este proposta não comprometeria o objetivo do Governo em torno do excedente. “A redução do IRC em 2025, seja ela qual for, terá efeitos apenas na receita de 2026“, salvaguardou o ministro das Finanças no Parlamento.
Os sociais-democratas sabem perfeitamente que seria politicamente insustentável para Pedro Nuno garantir a viabilização de um Orçamento que prevê uma redução de 2 pontos percentuais do IRC, tema que motivou horas e horas de debate e confrontação política. Mas, para o PSD, a coisa é muito simples: se quer assim tanto evitar uma crise política, Pedro Nuno Santos só tem de manter uma base mínima de compromisso. Nem mais, nem menos. Resta saber se os socialistas vão nessa conversa.