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“Saímos. Fazia um frio glacial. O silêncio dessa noite polar era de quando em vez interrompido pelos ruídos de tropas invisíveis, pela marcha das patrulhas. (…) Sob os nossos pés, na calçada, estavam pequenos fragmentos do estuque da cornija do palácio, onde caíram dois obuses do couraçado Aurora [o navio que iniciou o bombardeamento ao Palácio de Inverno]. Foi o único dano causado pelo bombardeamento. Eram agora três da manhã. (…) Os únicos sinais de guerra eram os guardas vermelhos e soldados sentados ao redor das fogueiras. A cidade estava tranquila. Provavelmente nunca tão tranquila como em nenhum outro momento da sua história.”
O Assalto ao Palácio de Inverno pelas forças bolcheviques foi o marco oficial da Revolução de Outubro e o momento decisivo no livro célebre, a história d’Os Dez Dias Que Abalaram o Mundo, retratada por John Reed, jornalista e ativista norte-americano alinhado com os bolcheviques que testemunhou (e participou) nos acontecimentos da Revolução Socialista, que lançaria as primeiras fundações da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Anos mais tarde, o cineasta russo Sergei Eisenstein aproveitaria o filme Outubro para introduzir uma carga de dramatismo que o Assalto ao Palácio de Inverno não teve: depois de ocuparem “os edifícios públicos mais importantes, as redações dos principais jornais e as estações de caminhos de ferro”, os assaltantes, “poucos e desorganizados“, limitaram-se a tomar o último reduto de resistência em Petrogrado (atual São Petersburgo), onde os membros do Governo provisório, impotentes e praticamente sem apoio armado, se escondiam do avanço das forças bolcheviques, como nota o historiador húngaro Peter Kenez, na obra A História da União Soviética (Edições 70). O destino estava traçado e aquela noite “tranquila” mudaria o curso da história: talvez à exceção da Revolução Francesa, nunca uma revolução influenciou tanto os dias que se seguiram. Corria o ano de 1917.
Os comunistas portugueses preparam-se, por isso, para assinalar ao longo do próximo ano o centenário da Revolução de Outubro, que viria a ser decisiva para a fundação do partido em Portugal (1921). Sob o lema “Socialismo, exigência da atualidade e do futuro” o PCP celebra aquilo que considera ser o “acontecimento maior” no “processo histórico de emancipação dos explorados, dos oprimidos, dos trabalhadores e dos povos, desde a sociedade primitiva, ao esclavagismo, ao feudalismo e ao capitalismo”.
Numa resolução aprovada pelo Comité Central do partido, a 16 de setembro deste ano, os comunistas assinalam a importância de celebrar aquilo que, na opinião dos dirigentes portugueses representa a revolução bolchevique: “A realização mais avançada no processo milenar de libertação da humanidade de todas as formas de exploração e opressão” e “afirmar as grandes conquistas e realizações políticas, económicas, sociais, culturais, científicas, tecnológicas e civilizacionais do socialismo na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e o seu imenso contributo para o avanço da luta emancipadora dos trabalhadores e dos povos”.
No elogio à extinta União Soviética, o PCP enaltece os avanços conseguidos no”desenvolvimento industrial e agrícola“, na erradicação do “analfabetismo”, no combate ao “desemprego”, na garantia da “saúde pública” e da “proteção social” e nos avanços conseguidos em relação aos “direitos das mulheres, das crianças, dos jovens e dos idosos”, na “cultura” ou na ciência.
A exaltação das conquistas do regime comunista, que se desenvolveu ao longo de mais de 70 anos, continua neste parágrafo da responsabilidade do Comité Central:
“Foi a União Soviética o primeiro país do mundo a pôr em prática ou a desenvolver como nenhum outro direitos sociais fundamentais, como o direito ao trabalho, a jornada máxima de 8 horas de trabalho, as férias pagas, a igualdade de direitos de homens e mulheres na família, na vida e no trabalho, os direitos e proteção da maternidade, o direito à habitação, a assistência médica gratuita, o sistema de segurança social universal e gratuito e a educação gratuita. A União Soviética alcançou realizações pioneiras para a humanidade, como o lançamento do primeiro satélite artificial no espaço – o Sputnik – ou a colocação do primeiro homem no espaço – o cosmonauta Iúri Gagárin”.
Recorrentemente acusados de nunca terem condenado abertamente o regime de terror que nasceu no seio na União Soviética, os comunistas reservam algumas linhas do texto para reconhecerem que o processo teve “recuos” e até “derrotas”. Mas não vai mais longe do que isto:
“Comemorar este centenário é utilizar os ensinamentos dos processos, até então desconhecidos, de construção do socialismo na União Soviética e noutros países, dos êxitos e das derrotas, dos recuos e dos avanços, de toda a longa luta que os antecedeu como importantes experiências que enriquecem e animam a luta que continua pelo socialismo e o comunismo”.
No âmbito das comemorações do centenário, o PCP também publicou este vídeo de glorificação da Revolução de Outubro:
A Revolução Bolchevique e os anos seguintes
Com uma Rússia devastada pela fome, miséria e destruição, o Governo provisório russo, nascido nos escombros da herança czarista, acabou por cair, até porque nunca soube dar resposta a três questões fundamentais: a autonomia das minorias sociais, a reforma agrária e, sobretudo, o envolvimento do país na I e devastadora Guerra Mundial, como assinala o historiador Peter Kenez.
Um dia depois de a revolução vencer, em pleno Congresso dos Sovietes, Lenine apresentava o Decreto da Terra, que previa a transferência das propriedade de todos os “latifundiários” e de todas as terras pertencentes à Coroa para os camponeses soviéticos, e o famoso Decreto de Paz, onde apelava a “todos os povos beligerantes e aos seus Governos a começarem imediatamente negociações para uma paz justa e democrática”. Embora quase estilhaçasse o partido, Lenine conseguiu chegar a um acordo de paz com a Alemanha imperial. A 3 de março de 1918, russos e alemães assinavam o Tratado Brest-Litovsk e punham fim ao conflito.
No plano interno, Lenine decidira tomar uma posição de força: depois um resultado pouco expressivo nas eleições constituintes de janeiro — em que os bolcheviques conseguiram eleger apenas um quarto dos representantes –, dissolveram a Assembleia Constituinte. Caía a democracia liberal e com ela eram adotados métodos cada vez mais restritivos: a suspensão da liberdade de expressão, a consequente suspensão da liberdade de imprensa e o surgimento da polícia política (Cheka, antecessora do KGB).
O país preparava-se agora para uma sangrenta guerra civil entre os reacionários Brancos (czaristas e liberais, sobretudo, apoiados por algumas potências estrangeiras) e os revolucionários Vermelhos (bolcheviques). O conflito acabaria por rebentar um ano depois da Revolução de Outubro e estender-se até 1921.
A contradição da guerra civil russa e o fatal comunismo de guerra
“Embora os bolcheviques acabassem por ganhar a guerra civil, no início a sua vitória não estava de modo algum assegurada, nem mesmo aos olhos cansados dos seus contemporâneos. Para suportar os esforços do conflito civil, o Governo liderado por Lenine foi obrigado a adotar uma estratégia económica que viria a ser conhecida como “comunismo de guerra“.
Este modelo não era mais do que um sistema de coação económica e social, cujo objetivo único era ganhar o conflito. Na prática, os bolcheviques nacionalizaram o comércio e a indústria, introduziram a requisição forçada da produção agrícola, varreram do mapa a iniciativa privada, impuseram o racionamento e a troca direta. Todos os recursos económicos do país estavam ao serviço da guerra; nenhuns, ou quase nenhuns, ao serviço da população, que assistia faminta e miserável ao decorrer do conflito.
Em 1921, quando terminou a guerra civil, a economia russa estava completamente destruída: a agricultura produzira “menos de dois terços do que o império russo havia produzido em 1913; (…) e a produção industrial foi apenas um quinto do que havia sido durante o último ano de paz”, nota o investigador Peter Kenez.
O cenário era dantesco. Dos escombros do extinto império czarista, cuja herança não era mais que um Estado atrasado e miserável, nascia uma Rússia enfraquecida pelos efeitos devastadores da Primeira Guerra Mundial, da revolução e, depois, da guerra civil. Conjugada com estes fatores, a seca na primavera desse ano provocou uma verdadeira catástrofe nacional. Na fome russa de 1921, que durou cerca de um ano, estima-se que tenham morrido milhões de pessoas.
“O desastre natural e a desordem artificial conduziram à fome generalizada. Milhões de pessoas morreram de fome e outros milhões correram grandes riscos. Debilitadas pela fome, pessoas sucumbiram às epidemias. Mais pessoas morreram nestes anos terríveis do que na Primeira Guerra Mundial, na revolução e na guerra civil“, descreveu Peter Kenez.
No plano político, os bolcheviques viram-se confrontados com a revolta dos marinheiros da base naval de Kronstadt — até então o maior golpe à liderança de Lenine. A insurreição dos marinheiros, o orgulho da Revolução de Outubro, condensava o descontentamento indisfarçável de camponeses e operários. Exigiam “novas eleições por voto secreto, sovietes sem bolcheviques e o alargamento das liberdades democráticas”. Na prática, exigiam uma nova revolução. Não havia grandes dúvidas para os bolcheviques: “A revolta tinha de ser esmagada“. Assim foi. “Os cerca de 10.000 marinheiros foram derrotados” e “os revoltosos capturados seriam implacavelmente punidos”, nota o investigador.
No X Congresso do partido, os comunistas aprovaram uma resolução que proibia as fações dentro do partido, uma decisão que teria consequências “de grande alcance na vida do partido durante a década seguinte”. A revolta de Kronstadt acabaria por impelir os bolcheviques a abrirem mão do “comunismo de guerra”. Lenine sabia que era importante reconstruir o país e retirar milhões de russos da miséria. Foram os tempos da Nova Política Económica (NEP). Na prática, o Governo russo permitiu a entrega de pequenas explorações agrícolas, industriais e comerciais à iniciativa privada e ao comércio livre e o fim das requisições forçadas.
A NEP foi um recuo evidente nos planos bolcheviques e encerrava em si mesmo muitas contradições, nomeadamente o regresso a alguns princípios capitalistas que os comunistas sempre condenaram. Mas era o passo necessário para reconstruir o país.
A tentativa de evolução cultural da sociedade russa
Paralelamente, os leninistas sabiam que a revolução socialista só seria possível se a sociedade russa, então muita atrasada em relação à Europa Ocidental, adquirisse um certo nível de cultura. “Na interpretação leninista, cultura significava essencialmente civilização material: a eletrificação, um serviço de correios eficiente, boas estradas, higiene. Sem estes pré-requisitos culturais era impossível falar sequer de socialismo. (…) A cultura significava também alta cultura, as grandes realizações humanas nas artes e nas ciências”, explica o historiador.
Não havia tempo a perder. Durante um período muito intenso, o Governo de Lenine apoiou (e tolerou) cientistas, artistas e editoras, ainda que o centralismo e a censura já estivessem presentes. Os artistas russos tomaram a vanguarda da revolução cultural, acompanhando os colegas ocidentais.
No ensino, Lenine financiou todo o sistema da educação, criou escolas de operários, promoveu um programa de combate ao analfabetismo, de defesa dos direitos dos trabalhadores e de emancipação das mulheres. No fundo, os bolcheviques promoveram a formação de uma nova elite intelectual e fomentaram uma maior mobilidade social. “Ninguém na altura podia sequer imaginar o terrível derramamento de sangue que viria a seguir“, escreve Peter Kenez.
A ascensão de Estaline: o não escolhido que matou milhões
Na primavera de 1922, Lenine sofreu um derrame cerebral que o votou ao isolamento. A enfermidade do líder russo precipitou uma luta pelo poder sem precedentes no partido comunista russo. Pouco antes de morrer, Lenine ditou um testamento político onde caracterizava todos os membros do Politburo — a cúpula do partido. Os principais antagonistas eram Trotsky e Estaline.
Nesse testamento, que nunca seria publicado, Lenine descrevia Trotsky como arrogante e incapaz de lidar com pessoas. Mas era mais duro para com Estaline: o futuro líder da União Soviética era grosseiro, tinha acumulado demasiado poder e devia ser afastado do partido.
Estaline, “mestre do conflito interno”, acabaria por vencer a disputa. Trotsky seria, mais tarde, afastado do partido. Partiria para o exílio em 1928 e acabaria por morrer assassinado por um agente soviético, no México, em 1940. Estaline, por sua vez, tornar-se-ia líder da União Soviética até 1953, ano da sua morte. Estima-se que tenham morrido entre 20 a 60 milhões de pessoas durante os seus 30 anos de reinado, embora os registos sejam pouco rigorosos.
Coletivização da agricultura: havia aldeias sem gente para enterrar os mortos
Assegurada a primeira fase de recuperação económica, neutralizada progressiva mas violentamente a oposição interna, Estaline sabia que o país precisava de resolver um problema estrutural: a NEP estava esgotada, a recessão económica era uma evidência e as desigualdades e tensões sociais agravavam-se. Sem uma programa de investimento eficaz e uma industrialização acelerada, a economia do país continuaria atrasada e obsoleta. A solução? Garantir que os recursos agrícolas estivessem ao serviço essa revolução industrial.
Neste contexto, surgiu assim o I Plano Quinquenal de Estaline e a coletivização forçada. O Estado soviético assumiu o controlo de todos os setores de produção e comércio, lançou um programa de grandes empreendimentos e avançou com a coletivização forçada, nada mais que um processo de expropriação das propriedades agrícolas, colocadas depois ao serviço do Estado.
O processo foi de tal forma violento e brusco que mudou completamente o modo de vida dos camponeses e lançou milhões na pobreza. “O trauma da coletivização, a falta de incentivos e a aversão dos camponeses às novas instituições conduziram a uma queda considerável na produção agrícola total. (…) O resultado era previsível: grande miséria e por fim a fome nas regiões rurais“, escreveu Kenez.
Durante o processo de coletivização, qualquer foco de resistência era esmagado sem contemplações. No período entre 1932 e 1933, o desastre era o quotidiano: a fome atingiu proporções sem precedentes. O mesmo historiador descreve: “Os sobreviventes descreveram os cenários mais horríveis. As pessoas recorreram ao canibalismo, e aldeias inteiras ficaram desertas. Em alguns sítios morreram tantas pessoas que não havia sobreviventes suficientes para enterrá-las decentemente; os cadávares tinham de ser largados em covas e cobertos com um pouco de terra“.
Os registos sobre a grande fome de 1932-1933 foram praticamente apagados da historiografia soviética. Mas “esta fome foi diferente das anteriores”, continua o historiador húngaro. “Foi provocada pelo homem, de duas formas diferentes. Foi manifestamente o resultado da gigantesca experiência social da coletivização, e, ao contrário do que acontecera em situações anteriores, o regime não tomou quaisquer medidas para ajudar as pessoas. Em vez disso, insistiu em levar a cabo os planos de requisição, quaisquer que fossem os custos, e os cereais continuaram a ser retirados das aldeias atingidas pela fome”. Estima-se que tenham morrido entre cinco a sete milhões de pessoas.
À medida a industrialização do país acelerava, os métodos repressivos de Estaline eram cada vez mais eficazes. O período de revolução cultural, iniciado na era leninista e conduzido em relativa liberdade, conhecia um profundo travão. Os líderes estalinistas não tiveram qualquer pudor em eliminar todos os intelectuais divergentes. “Após três ou quatro anos de agitação os estalinistas fizeram alto, e só então nasceu a nova cultura soviética. Esta cultura não tinha pujança imaginativa, os elementos utópicos e a loucura da época da revolução cultural. Era submissa, conformista e pequeno-burguesa”, descreve Kenez.
O terror estalinista: morte, gulags e totalitarismo
Os anos 30 marcaram verdadeiramente o auge da era sanguinária de Estaline. Foram os tempos dos julgamentos fantoche, da Grande Purga, da condenação à morte de milhões e dos campos de trabalho forçado (os gulags). Num período curto, quase todos os principais dirigentes comunistas e oficiais do exército foram assassinados.
Este período ficou também marcado por uma repressão e terror sem precedentes, pelo trabalho forçado, pela perseguição de todos os que fossem considerados desviantes, pela politização do ensino, por uma revolução cultural ao serviço dos valores e espírito soviético e pelo culto da personalidade de Estaline. A União Soviética transformara-se definitivamente numa ditadura totalitária e os seus métodos mais cruéis eram adotados mecanicamente nos territórios sob a influência da “Mãe Rússia”.
“O número exato de vítimas não pode ser estabelecido com precisão; os números são apaixonadamente debatidos entre os estudiosos. (Cerca de um milhão de pessoas foi executada, e provavelmente cerca de dez milhões foram enviados para os campos.) É evidente que saber se o número de vítimas foi de três ou trinta milhões tem importância. (…) [Mas] mesmo que aceitemos o número mais baixo sugerido pelos estudiosos que examinaram as provas, só nos ocorre traçar o quadro de um dos regimes mais criminosos que alguma vez existiu à face da terra“, sublinha Peter Kenez na sua história soviética.
A aliança inicial com Hitler e depois a guerra total
Enquanto Estaline liderava com mão de ferro a União Soviética crescia, na vizinha Alemanha, o regime nazi liderado por Adolf Hitler, que lançaria sombras ainda mais negras sobre a Europa. Apesar do papel decisivo que viria a desempenhar na derrota das forças nazis, num primeiro momento os soviéticos foram aliados dos alemães. O Pacto Molotov-Ribbentrop, assinado em 1939 entre russos e alemães, previa não só um pacto de não-agressão como delimitava várias “esferas de influência” que atribuía poder ilimitado à União Soviética na Finlândia, Moldávia, Letónia e Estónia.
A invasão (e partilha do território ocupado) foi o primeiro passo dessa parceria. Nos meses que se seguiram à assinatura do acordo, Estaline não hesitou em anexar os territórios que lhe estavam prometidos pelo Pacto Molotov-Ribbentrop. Com a honrosa exceção da Finlândia, que infligiu uma derrota pesada e desmoralizante aos soviéticos, a União Soviética foi ocupando sem grande resistência os países vizinhos, enquanto a Alemanha de Hilter fazia o mesmo na frente ocidental.
O resto da história é conhecido: no verão de 1941, a 22 de junho, o exército nazi dava início à “Operação Barbarossa“, uma campanha militar sem precedentes, que apanhou as forças russas de surpresa. O conflito foi sangrento. A custo, o exército soviético, apesar de menos preparado militarmente, foi conseguindo travar os avanços alemães — a Alemanha viria a sofrer mais de 90% da suas baixas neste teatro de guerra.
A derrota na frente oriental foi o princípio do fim de Hitler e da Alemanha nazi. Na primavera de 1945 começava a ofensiva sobre Berlim. A 2 de maio de 1945, as forças soviéticas erguiam a bandeira da União sobre o Reichstag. Durante a Segunda Guerra Mundial, a União Soviética perdeu mais de 20 milhões de homens e mulheres. Hilter morreu a 30 de abril de 1945. Estaline oito anos depois, a 5 de março de 1953. Seguiu-se a Guerra Fria, a disputa territorial (e ideológica) entre Estados Unidos e a União Soviética e todos os conflitos associados. No verão de 1991, a 26 de dezembro, com Gorbatchev no poder, era declarado o fim da União Soviética. O muro que divida Berlim em duas e que separava a República Federal Alemã da República Democrática Alemã caíra dois anos antes, a 9 de novembro de 1989.
Como o PCP se distancia da herança soviética
Herdeiros assumidos da herança soviética, os comunistas são acusados de nunca se terem demarcado verdadeiramente dos crimes contra a humanidade cometidos pelo regime soviético, ou por outros regimes comunistas.
Para a história recente ficam algumas declarações controversas de dirigentes comunistas que ajudaram a reacender esse debate. Em 2003, por exemplo, o então líder parlamentar parlamentar do PCP, Bernardino Soares, disse ter dúvidas sobre a existência de um regime ditatorial na Coreia do Norte. Em 2006, foi a vez da deputada Rita Rato: questionada sobre os gulags soviéticos, onde se estima que tenham morrido mais de 2 milhões de pessoas, a então recém-eleita comunista admitiu que pudesse “ter acontecido essa experiência”, garantindo, no entanto, nunca ter estudado ou lido “nada sobre isso”. Recentemente, foi Edgar Silva, candidato presidencial, a demonstrar alguma dificuldade em demarcar-se do regime coreano. Em pleno debate com Marisa Matias e perante a insistência do jornalista, o candidato apoiado pelo PCP lá acabou por dizer: “Não vejo que [a democracia] seja um privilégio da Coreia do Norte”.
Apesar destas declarações, os comunistas parecem ter encontrado uma fórmula nos documentos oficiais que, embora não antagonize os países socialistas — China, Coreia do Norte, Cuba, Laos e Vietname –, mantém uma distância que não tem grande expressão pública. “A evolução destes países deve continuar a merecer uma permanente e cuidada observação e análise, seja pelas experiências e realizações, seja pelas interrogações e discordâncias, algumas de princípio, que suscitam certas orientações em alguns destes países”, vão salvaguardando os comunistas.
Prova disso é a resolução que emanou do último Congresso do partido, em que os comunistas questionam as “orientações” que existem nesses países. Orientações, sublinha o PCP, “que se distanciam de princípios e características de edificação de sociedades socialistas, seja no plano da organização económica (…) seja no plano do sistema político”. Para arrumar a questão, os comunistas costumam lembrar: “Não existem modelos ou vias únicas de transformação social” rumo ao socialismo.
Álvaro Cunhal: a demarcação de Estaline e “até de crimes”
Álvaro Cunhal foi, muito provavelmente, o líder comunista português que mais longe levou a crítica ao regime estalinista — apesar de liderar o um partido muitas vezes classificado por adversários como o “último partido estalinista da Europa”. Em 1988, numa entrevista à antiga revista Sábado, citada pelo ex-dirigente Carlos Brito, o histórico secretário-geral do PCP chegou mesmo a afirmar que o partido deveria fazer tudo para afastar “procedimentos como os de Estaline”.
“O estalinismo é o culto de personalidade. É resolver as divergências através de métodos administrativos, da violência e até de crimes. É a não admissão de opinião contrária. É a sobreposição da opinião individual à do coletivo. É a crença na infalibilidade do chefe. São traços de que nós somos adversários de há muitos anos. Temos uma prática completamente contrária, uma prática de combate real à tendência estalinista”, disse Cunhal há 28 anos.
Pouco tempo depois, o mesmo líder histórico dos comunistas portugueses assumiu, em entrevista a Paulo Portas e Miguel Esteves Cardoso, no extinto O Independente, que repudiava o estalinismo. “[É] uma coisa que não queremos e que repudiamos. O estalinismo como ideologia, como ação política, como organização do Estado, como organização do partido, como intervenção antidemocrática interna ou externa do partido. Naturalmente que rejeitamos”.
As críticas aos “gravíssimos acontecimentos nos países socialistas”
Mas nunca como no XIII Congresso Extraordinário do PCP, realizado a 20 de maio de 1990 — embalado pelo espírito desse tempo e pelos críticos internos — o partido foi tão longe nas críticas à União Soviética. Embora nunca o refiram claramente, a reflexão crítica incide, sobretudo, sobre o regime de terror alimentado por Estaline.
Adotada na ressaca da Queda do Muro de Berlim, a resolução que saiu desse congresso, embora faça a exaltação dos progressos conseguidos pela Revolução de Outubro e pela União Soviética, denuncia os “erros, atrasos e graves desvios do ideal comunista e crises surgidas em determinado momento do desenvolvimento dos países socialistas”.
Os comunistas apontaram, inclusive, cinco “causas fundamentais” que justificam as “derrotas verificadas no processo de construção da sociedade socialista”.
Em primeiro lugar, a substituição do poder popular pelo “poder político fortemente centralizado, paternalista, cada vez mais afastado das aspirações, opinião e vontade do povo, subtraindo-se cada vez mais ao controlo popular, tomando decisões de carácter predominantemente administrativo, frequentemente arbitrário e repressivo“.
A segunda causa fundamental foi a limitação da democracia política nesses países (URSS incluída). “A democracia política veio a sofrer graves limitações não apenas no que respeita ao exercício do poder, mas no que respeita a liberdades e direitos dos cidadãos, à democraticidade das eleições, ao direito de associação, ao direito de informação, ao respeito pelo valor e intervenção do indivíduo, à afirmação da opinião diversificada. Acentuou-se progressivamente em alguns países o carácter repressivo do Estado, a infração da legalidade, a ausência ou inoperância de mecanismos de controlo do uso do poder, o definhamento da participação de massas e o estiolamento da sua criatividade”.
A terceira foi a “centralização excessiva da propriedade estatal” que abriu caminho à “violação do princípio do socialismo ‘de cada um segundo as suas capacidades a cada um segundo o seu trabalho’ e que alimentou fenómenos como a “produção decidida sem ter em conta as exigências quantitativas e qualitativas do mercado” nem as necessidade e exigências do consumidor.
A quarta causa das “graves deformações produzidas em nome do socialismo” foi o “desenvolvimento do culto da personalidade”, que só contribuiu para uma “intervenção dirigista omnipresente do partido em todas as instâncias do Estado”.
A quinta e a última causa apontada pelos comunistas foi a dogmatização e instrumentalização do marxismo-leninismo para “justificar práticas ultrapassadas, aberrantes“.
O PCP concluiu a análise às causas fundamentais da derrota da União Soviética e de outros países socialistas reconhecendo que estes cinco pontos podem “comprometer e poder conduzir à derrota a construção da sociedade socialista”.
Do Congresso de 1990 resulta também um reconhecimento de que o partido foi, no mínimo, complacente com o que acontecia nos países soviéticos. Mesmo lembrando que tinha o dever “internacionalista” de se abster nas críticas públicas aos restantes partidos socialistas, o PCP reconhece que “foi um erro” não acompanhar a crítica interna que ia fazendo no seio do movimento comunista internacional “por um distanciamento público mais explícito nas linhas programáticas, nas posições políticas e na apreciação da realidade nos países socialistas“.
“A direção do partido não foi suficientemente atenta à situação e não aprofundou suficientemente o estudo da realidade nos países socialistas”, assumia então o PCP.
A rejeição das “trágicas experiências” dos países socialistas
Feita a análise crítica, os comunistas elencaram as lições que deveriam retirar das “trágicas experiências” cometidas em nome do socialismo. Uma delas tinha a ver com a necessidade de garantir a que, na construção da sociedade socialista, “a democracia política e as liberdades e direitos dos cidadãos são valores integrantes do sistema que devem ser inteiramente assegurados, no quadro do Estado de direito socialista”. Outra referia que “a democracia interna do partido (…) e o desenvolvimento criativo da teoria são imprescindíveis na construção da sociedade socialista”.
Há 26 anos, perante as circunstâncias históricas da derrocada do Leste europeu, o PCP assumia o que nunca dissera em público: “A análise dos gravíssimos acontecimentos nos países socialistas e o substrato essencial das causas dos insucessos e derrotas verificados confirmam a subestimação do valor intrínseco da liberdade e da democracia política que se verificou na construção da sociedade socialista”. Os comunistas assumiam até que “as profundas e dramáticas crises em numerosos países socialistas evidenciam que a violação ou mesmo o menosprezo da democracia política conduzem a sociedade socialista a recuos, crises e derrotas que podem ameaçar a sua própria sobrevivência“.
Carlos Brito, antigo dirigente do PCP, acompanhou de perto toda a discussão que foi feita durante o Congresso. E não tem dúvidas: “Foi a altura onde o PCP foi mais longe na crítica” aos erros e atrocidades cometidos no seio da União Soviético.
O contexto histórico foi, naturalmente, a grande força motriz desta análise crítica, reconhece Carlos Brito, que se afastou do partido em 2002. “No XIII Congresso do PCP o debate foi bastante aprofundado. Os camaradas que estiveram na União Soviética contaram as suas experiências. As conclusões que daí resultaram foram muito importantes para o partido. O debate foi notável, notabilíssimo. Depois não houve coragem para prosseguir essa discussão“, lamenta, em declarações ao Observador.
“Álvaro Cunhal não era estalinista. Fez, de resto, críticas bastante cruas e violentas ao estalinismo. Mas, e apesar destas posições de Cunhal, nunca houve um debate interno sobre o estalinismo no sentido de afastar essas influências negativas. Não houve essa coragem“, reitera Carlos Brito. “Havia receio que esse debate pudesse dar origem a divisões e derivas ideológicas. E ficou por fazer”.
O ex-dirigente do PCP, que fazia parte do núcleo duro de Álvaro Cunhal, alimenta a expectativa de que esse debate possa ser retomado, mas não acredita que “as tendências sectárias que se instalaram no interior do partido” estejam dispostas a fazê-lo. E lamenta-o.
Cunhal, por sua vez, assumiu a crítica a crítica a vários aspetos do estalinismo. No livro O Partido com Paredes de Vidro, em 1985, Álvaro Cunhal critica abertamente o culto da personalidade fomentado e instrumentalizado por Estaline. E definiu uma regra de ouro: ser leninista não significa “endeusar Lenine”.
“Ser leninista não consiste em endeusar Lenine, em utilizar cada frase de Lenine como verdade universal, eterna e intocável”. Um dos traços da cultura soviética estaria assim afastado das intenções do líder histórico do PCP. “A deificação dos mortos é uma desencorajadora subestimação do papel dos vivos ou uma tentação à sua igual deificação. Um mestre é verdadeiramente um mestre, se os discípulos não fazem do mestre um Deus. Com Deus não se discute, Deus ordena, a Deus obedece-se. (…) Uma primeira condição para ser leninista é ver em Lenine um Mestre e não um Deus.”
Contra as tentações de “copiar a experiência da Revolução de Outubro”
Cem anos depois da Revolução Bolchevique, uma das páginas mais decisivas na história do marxismo-leninismo, o PCP escreve nas teses que vai levar ao Congresso no início de dezembro que o partido não deve ter a tentação de “copiar a experiência da Revolução de Outubro”. Mas reconhecendo que os caminhos para a revolução socialista são “diversificados” também “obedecem a leis gerais, que a prática confirmou”, na “propriedade dos principais meios de produção e ao papel de vanguarda do partido”.
Os comunistas esclarecem que essas “leis gerais” devem ser respeitadas, mas não devem servir de “modelo”. E terminam: “Como Lenine sublinhava: ‘Todas as nações chegarão ao socialismo, isto é inevitável, mas chegarão todas de modo não exatamente idêntico“.
* Peter Kenez é um historiador e investigador especializado em história russa e em Europa Oriental
** O Observador procurou a colaboração do PCP, mas não conseguiu qualquer resposta a tempo da publicação deste texto