“As ruas são da direita desde o aparecimento do Chega.” As palavras são de André Ventura e refletem um sentimento que o partido transmite desde a fundação: o Chega quer ocupar nas ruas um espaço que, por tradição, tem pertencido à esquerda. A associação a movimentos sociais inorgânicos foi um primeiro passo, mas o partido ambiciona mais, já tem militantes em lugares de destaque de sindicatos e pondera criar um movimento sindical próprio.
Diogo Pacheco Amorim, ideólogo e deputado do Chega, explica ao Observador que o partido está a ponderar criar um “movimento sindical próprio” para “garantir uma posição do partido entre as várias classes profissionais”.
Não é um tema fechado, mas será a forma de dar o próximo passo. Por outras palavras: neste momento o Chega vai-se associando a sindicatos e a movimentos com os quais se identifica, mas ter um sindicato em nome próprio significava ir mais longe, ter um espaço próprio de luta junto dos trabalhadores e ocupar um espaço que, até agora, é associado à esquerda.
Arménio Carlos. “Quantos mais sindicatos criados por partidos, maior a divisão dos trabalhadores”
O dirigente do Chega argumenta que “a rua não é exclusivamente da esquerda” e que há espaço para furar o monopólio da contestação. “A luta na rua é fundamental. Sempre que for necessário estaremos na rua com grandes, médias ou pequenas manifestações”, assegura.
Aliás, se esta já era uma intenção do Chega, o atual contexto político tornou-a ainda mais evidente. “Uma maioria absoluta do PS limita muito a atividade parlamentar, portanto tem de haver outros palcos para a atividade política”, reconhece Pacheco Amorim, antecipando que a “luta tem de ser [feita] simultaneamente na rua e no Parlamento”.
Além da ponderação sobre um possível movimento sindical em nome próprio, o Chega tem recebido delegações sindicais de diversas áreas e assegura que os sindicatos podem “contar” com o partido “desde que as reivindicações sejam possíveis de acolher, sérias e claras” e zelem pelo “interesse nacional”.
Como exemplo aponta os casos dos sindicatos de polícias e guardas prisionais, onde existe um “eco bastante grande” das políticas sugeridas pelo Chega. Por outras palavras: com bloco central há muito divorciado destas classes profissionais, o partido de André Ventura vê nos polícias e guardas profissionais margem para crescer em influência.
O aviso da esquerda (e a atribuição de culpa)
O alerta de que existe espaço para um crescimento de movimentos à direita já tinha sido deixado, em declarações ao Observador, por Arménio Carlos, ex-líder da CGTP e ex-membro do comité central do PCP: “Se o Governo está preocupado com eventuais deslocações de trabalhadores para a extrema-direita, a melhor forma é responder já aos problemas para que não sejam aliciados e empurrados para ela.”
O sindicalista considera que o PS está “mais interessado na fragilização da esquerda do que na resposta à extrema-direita”, o que, aos seus olhos, cria uma conjuntura propícia ao crescimento de partidos como o Chega.
Agora, mais uma vez em declarações ao Observador, e apesar de deixar claro que a direita usa a luta dos trabalhadores de forma “oportunística”, Arménio Carlos atribui o ónus ao Governo de António Costa: “O crescimento do Chega, em termos eleitorais, está na resposta que é dada pelo Governo aos problemas das pessoas.”
O ex-líder da CGTP admite a deslocação de trabalhadores para o Chega, mas acredita que se trata de “um nicho que vai atrás de mensagens populistas, demagógicas e oportunística” que, mais tarde, “vai verificar que errou e que não é esse o caminho”.
“Nunca vi o Chega a abordar a problemática da revisão da lei do trabalho no sentido de repor igualdade e justiça social”, afirma Arménio Carlos, apontando que o partido “não tem nenhuma influência nos locais de trabalho, não tem capacidade de organização, mobilização e responsabilização”.
Apesar do desígnio do Chega e da tentativa de marcar uma posição neste tema, Arménio Carlos assegura que “a direita não sobe por si” e atribui culpas: “É o Governo que está a ajudar a direita a criar condições de suporte para voltar ao poder.”
Em contrapartida, Arménio Carlos admite que o “descontentamento está a aumentar” e reconhece que a esquerda tem de “reorganizar a influência” nas ruas e nos locais de trabalho como forma de travar os objetivos da direita.
A presença ainda (discreta) do Chega em sindicatos
Aos poucos, o Chega começa a marcar presença em alguns sindicatos, com militantes em lugares de destaque. O partido já teve o presidente do Sindicato do Pessoal Técnico da PSP (SPT/PSP), José Dias, na direção — que acabou por ser afastado no momento de uma remodelação levada a cabo por André Ventura — e conta agora com um militante à frente do Sindicato dos Pilotos da Aviação Civil (SPAC), um outro como vice-presidente do Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Nacional e ainda com um membro na direção do Sindicato dos Trabalhadores dos Registos e Notariado.
A ideia de que o Chega tem influência em qualquer um destes sindicatos é afastada pelos próprios, que preferem “não misturar” os temas. Contudo, a presença destes nomes acaba por ser capitalizada pelo partido, que desde sempre admitiu a necessidade de implementação não só a nível local (como assumiu ter conseguido após as eleições autárquicas), mas também em vários setores da sociedade.
Tiago Faria Lopes, presidente do Sindicato dos Pilotos da Aviação Civil (SPAC), foi eleito, pelo Chega, membro da assembleia de freguesia de S. Domingos de Rana, no concelho de Cascais, e admite que há outra pessoa na equipa ligada ao partido liderado por André Ventura. Apesar de assegurar que são “dois mundos distintos”, faz questão de mostrar que é preciso contrariar a ideia de que “os sindicatos pertencem à esquerda”.
Já Frederico Morais, que fez parte da concelhia do Chega em Mafra, é vice-presidente do Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Nacional e admite que o sindicato se “revê em muitas ideias do Chega”. Apesar de não querer qualquer colagem entre a ideologia política e o sindicalismo, assume ainda que “muitos guardas prisionais” são militantes do Chega e que muitos alteraram o sentido de voto após o acordo de 2015: “Depois da ‘geringonça’, o corpo da guarda nacional que votava no Bloco de Esquerda, hoje vota no Chega.”
O ex-vice-presidente do Chega, José Dias, que se mantém à frente do Sindicato do Pessoal Técnico da PSP (SPT/PSP), considera normal que o partido ganhe visibilidade nas ruas por ser o único que “mete os assuntos de interesse das pessoas na agenda”.
Apesar de não acreditar que o Chega tenha capacidade para entrar nos sindicatos por “não ser o espaço natural”, José Dias admite que o partido defenda as reivindicações dos mesmos “com o propósito de atingir um fim”.
Por outro lado, o partido já teve Pedro Magrinho, agente da PSP e na altura presidente da Federação Nacional dos Sindicatos da Polícias, como candidato à presidência de União de Freguesias Santa Iria de Azóia, São João da Talha e Bobadela, do concelho de Loures. O candidato não era militante porque os agentes não podem ter ligações partidárias, mas foi mais uma prova de que o Chega conseguiu ganhar influência junto das forças de segurança.
Crescer através das ruas (ou nas ruas)
Em 2021, numa altura em que as notícias sobre o pedido de ilegalização do Chega se multiplicavam, o partido organizou um desfile entre o Príncipe Real e o Rossio para demonstrar que só povo “podia ilegalizar” o Chega. E é ali, naquela que é considerada a maior manifestação desde a fundação do partido, que Ventura ganha (ainda) mais consciência que pode conquistar votos nas ruas.
Num ano, a realidade do Chega alterou-se — desde logo com o aumento da bancada parlamentar, de um deputado único para 12 — e as ambições tornaram-se ainda mais elevadas. André Ventura admitiu que o grande objetivo para a legislatura seria “ultrapassar o PSD nas intenções de voto” para se tornar na “grande e única força de oposição ao PS”, e prometeu ser o líder dessa mesma oposição.
O Movimento Zero é uma marca no crescimento do Chega e uma das maiores demonstrações do apoio das forças de segurança (uma das bandeiras do partido) nas ruas.
O movimento conseguiu ser protagonista do protesto organizado pelos dois maiores sindicatos da PSP e da GNR, em novembro de 2019, e, mesmo depois de um apelo explícito para que os partidos ou deputados solidários com a causa mantivessem esse apoio dentro da Assembleia da República, o movimento lançou um desafio no sentido oposto e André Ventura conseguiu o papel principal do dia.
A cumplicidade tornava-se transparente aos olhos de todos: André Ventura vestiu uma t-shirt do movimento por cima da camisa; colocou uma pulseira no braço com o nome do grupo; subiu ao carro e discursou, perante o apoio, com aplausos e gritos, de centenas de elementos das forças de segurança.
“Hoje vocês mostraram que a polícia unida jamais será vencida”, disse nas colunas da organização, fazendo a voz do Chega ecoar junto da Assembleia da República, mostrando que estava ao lado dos polícias e guardas que ali se encontravam numa manifestação que necessitou de um dispositivo só comparável com as manifestações do período da troika.
Mais de um ano depois, André Ventura tentou dar uma nova vida aos coletes amarelos (movimento que se iniciou em França), desta vez em território nacional. Numa das manifestações que fez pelo país, o presidente do Chega despiu o blazer e vestiu o colete refletor para deixar a garantia de que o partido queria dar início a um movimento de contestação social de âmbito nacional contra a corrupção e contra a subida do preço dos combustíveis, mas também que estava nas ruas para substituir Bloco de Esquerda e PCP.
Já nessa altura, e garantindo que o colete era apenas um símbolo, deixava a mensagem: está na altura de “mostrar que a rua não é só da esquerda”. “Se o PCP e o BE estão acobardados perante António Costa, nós não estamos, vamos sair à rua em todo o lado”, garantiu Ventura, acrescentando uma promessa: “Nós seremos os substitutos dos antigos sindicatos e daquilo que eram o BE e o PCP, seremos os seus substitutos nas ruas porque representamos aquilo que esses partidos um dia representaram e depois se esqueceram.”
Ainda antes de chegar ao Parlamento, André Ventura cavalgou a greve dos motoristas de matérias perigosas, que paralisou o país durante vários dias. O líder do Chega colocou-se ao lado dos motoristas para dizer que se trata de uma classe “humilhada e maltratada pelo Governo”, comparando-a aos enfermeiros e professores, e alertando para a necessidade de “salários dignos” e de “olhar para os problemas humanos”.
Na altura, Pardal Henriques, o vice-presidente do Sindicato Nacional dos Motoristas de Matérias Perigosas (SNMMP) que deu a cara pelo movimento durante todo o processo, admitiu que tinha recebido um convite do Chega para ser candidato nas eleições legislativa, mas André Ventura acabou por negar essa proposta e Pardal Henriques integrou as listas do PDR, liderado por Marinho e Pinto.
A forma como o Chega tem capitalizado vários movimentos inorgânicos é um dos ganchos que tem permitido ao partido crescer — o que ficou provado com os resultados das eleições presidenciais, autárquicas e legislativas —, mas a terceira força nacional pretende ir mais longe e tomar conta da contestação social nas ruas.