Para um cenário invulgar, uma manhã de campanha invulgar. Comecemos pelo cenário. Em Coimbra está a acontecer, neste momento, uma coisa rara no país: uma sondagem recente indicia que o PS corre um risco real de perder uma das principais câmaras municipais que governa, num dos grandes concelhos (e sedes de distrito) nacionais. Agora, a manhã inusitada: esta sexta-feira, 17 de setembro, os programas das duas candidaturas a Coimbra que se destacam nas sondagens — na que foi tornada pública, estão separadas por apenas 1% — coincidiam como fotocópias.
A agenda da candidatura do PS, que é liderada pelo autarca recandidato a um terceiro mandato Manuel Machado, era esta: 9h, visita ao Mercado Municipal D. Pedro V. A do movimento “Juntos Somos Coimbra”, apoiado por mais de uma mão cheia de partidos (entre os quais o PSD, CDS e Aliança) e liderado pelo independente José Manuel Silva, parecia colada a copy paste: 9h, visita ao Mercado Municipal D. Pedro V.
Uma campanha do PS visitar um mercado no mesmíssimo dia e à mesmíssima hora de uma campanha do PSD não é um cenário habitual no país mas acontece muito regularmente em Coimbra, contava ao Observador um dos elementos da comitiva socialista. Antigamente até era muito pior: a mesma fonte acrescentava que “rosinhas” e “laranjinhas” chegavam a engalfinhar-se à pancada entre bancas de fruta e de peixe, bem no coração da cidade de um concelho com 140 mil habitantes.
Ao contrário de tempos idos, desta não houve batata a murro. Mas algo igualmente inusitado aconteceu: num mercado municipal com apenas dois pisos, as campanhas do PS e da “oposição democrática ao PS” — como a descreve o seu cabeça de lista e médico conimbricense — nunca se encontraram. Quando uma estava no piso de baixo, a outra estava no piso de cima. E vice-versa.
Os assessores de Manuel Machado (PS) e José Manuel Silva (“Juntos Somos Coimbra”) iam tentando guiar os grupos (com algumas dezenas de pessoas, não muitas) que seguiam em cada ação garantindo o distanciamento.
Não houve proximidade ou sequer cumprimento democrático. Ao Observador, no final da ação, o presidente socialista da câmara municipal diria que esse momento seria um “teatro” encenado em que não queria participar.
Manuel Machado e José Manuel Silva não se cosem e as diferenças não parecem ser apenas ideológicas: ao final do dia, o autarca diria ser “muito diferente” do seu “principal antagonista”, sem querer entrar em mais detalhes. Já José Manuel, tratado por “Zé Manel” pelos “jotinhas” sociais-democratas que o acompanhavam, não se coíbe de fazer críticas programáticas duras ao adversário.
Crítico dos anteriores mandatos de Machado, presidente da CM há oito anos (já fora antes autarca entre 1990 e 2001) e atual presidente da ANMP – Associação Nacional de Municípios Portugueses, “Zé Manel” diz que Coimbra precisa de mudar e acrescenta: para a “cura”, não há melhor do que um médico. Do outro lado chega a garantia: é com o PS na liderança que Coimbra avança.
O médico-candidato que lembra no mercado que não é político profissional
À hora combinada, 9h, já a comitiva do “Junto Somos Coimbra” estava pronta para iniciar o périplo pelo mercado em busca de votos para tirar o PS do poder.
Embora o movimento de José Manuel Silva (que há quatro anos candidatou-se como independente sem suporte partidário) seja apoiado por outros sete partidos e movimentos — PSD, CDS-PP, Aliança, Nós, Cidadãos!, PPM, Volt e RIR —, só se viam bandeiras laranja e “jotinhas” sociais-democratas. Não era por acaso.
Por um lado, o apoio ao “Juntos Somos Coimbra” foi uma escolha pessoal de Rui Rio e do PSD nacional, que desafiou e vetou a opção da estrutura local que queria concorrer com candidato próprio e social-democrata. Por outro, o PSD e a JSD estão muito mais implantados em Coimbra do que os restantes que formam a coligação.
Um grupo de quatro “jotas” seguia animado na comitiva, a cantar como membros de uma claque de futebol e a fazer brindes com “minis” apesar da hora matinal. Ensaiavam cânticos como “É J, é D, é JSD”, “Coimbra! Coimbra! Coimbra!” e “É juntos, é somos, é Juntos Somos Coimbra”. Ainda pediam ao candidato que saltasse, algo a que ele acedeu. “E salta Zé Manel, e salta Zé Manel allez, allez”.
Na comitiva de José Manuel Silva seguiam candidatos às juntas de freguesia do concelho, para facilitar a familiaridade com os comerciantes e eleitores que ali estavam. Logo no arranque, no piso 0, assim que se aperceberam da proveniência de uma mulher foram buscar o trunfo: “Ó Nanda! Onde é que está a Nanda? Olha que é tua conterrânea”. Mas não era só conterrânea da “Nanda”: “É a minha tia! Sou eu, tia!”.
O clínico, que foi também Bastonário da Ordem dos Médicos, ia-se movendo pelo Mercado Municipal D. Pedro V com à vontade. Sem timidez, ia ter com todas as pessoas que encontrava pelo caminho e não se acanhava nas palavras. Talvez fruto da experiência de médico, era rápido a traçar um diagnóstico sobre Coimbra e sobre a gestão autárquica da câmara municipal — estado: francamente mau — e a prescrever uma receita: no dia 26, “é pôr a cruzinha no primeiro” que aparece no boletim de voto.
Quando ouvia queixas, como de uma mulher sentada no café do mercado a tomar o pequeno-almoço que se lamentava de que entrava nos autocarros e encontrava os bancos molhados, tinha resposta pronta: “Não gosta de quem lá está, mude. Vamos mudar. Coimbra precisa de um médico na câmara para tratar da saúde”. Ouvia que a saúde da interlocutora também não andava grande coisa e gracejava: “Não podemos é fazer aqui uma consulta, se não fazíamos já”.
Para convencer o eleitorado, José Manuel Silva ia distribuindo jornais de campanha que transportava debaixo do braço esquerdo. A paragem no café permitia aos quatro “jotas” emborcarem quatro minis, néctar que injetava o entusiasmo para mais um cântico (“Coimbra é nossa e há-de ser”), mas não havia tempo a perder. Por ali ouviam-se aliás expressões como “vamos antes que eles [PS] comecem aqui em baixo”.
Chegado a um talho, o candidato do “Juntos Somos Coimbra” dirigia-se ao talhante e ensaiava mais uma crítica a Manuel Machado e à governação socialista. Dava-lhe música aos ouvidos, prometendo “dinamizar a baixa” e defendendo que “não basta fazer obras de betão, precisamos de pessoas”. Mais tarde voltaria a insistir na tese: “Coimbra está a perder população, as pessoas estão a ir embora e a baixa está a despovoar. Precisamos de mais dinamismo económico, mais clientes, mais emprego”.
Quando o tom era cético, apelava-se à crença: “É preciso é ter fé! Um homem sem fé não tem nada!”. E quando o que se ouvia era descrença na classe política e na idoneidade dos decisores, José Manuel Silva defendia-se dizendo que ao contrário dos outros não é político (embora se candidate para ser) e não depende da política para viver. “Mas eu não sou político, homem, sou médico!”, diria numa ocasião. “Só anda à procura de poleiro quem não tem profissão, quem tem não precisa”, ripostava noutra.
Numa banca de hortaliças, José Manuel Silva ouvia que até de cara veste bem: “O senhor é tão bem apessoado, se o coração for tão bonito como a aparência…”. O candidato ria-se, agradecia o elogio e seguia caminho à procura de mais eleitores. Numa disputa tão renhida como a de Coimbra parece estar, quaisquer dezenas de votos podem fazer a diferença.
O “sr. presidente” no mercado: as agruras do poder e a “carta” que se entrega
Enquanto o movimento “Juntos Somos Coimbra” palmilhava o piso térreo do Mercado D. Pedro V, o “senhor presidente” Manuel Machado comandava no piso de cima o grupo de campanha do PS — que até tinha direito a banda sonora ao vivo, com três músicos encarregues de tocar gaita de foles, tambor e bombo.
O candidato do @psocialista à câmara municipal de Coimbra fez-se acompanhar de banda sonora na primeira ação de campanha desta sexta-feira. pic.twitter.com/uon6hRr2sR
— Diogo Ventura (@diogo__ventura) September 18, 2021
O autarca do PS aproveitava para explicar aos jornalistas que o piso superior do mercado está a ser requalificado e passará a ser uma zona de restauração, para atrair mais pessoas à baixa da cidade e ao mercado municipal. Mas não se escapava a queixas, quando passava por bancas como a “Peixaria Aida e Amândio”, de autocarros que deviam ser “mais baixinhos” e têm “degraus grandes” até um “buraco” no tecto do mercado que não há meio de se tapar.
Ideias à parte, Manuel Machado é um político diferente de José Manuel Silva: se o candidato do “Juntos Somos Coimbra” tem sempre resposta na ponta da língua e se demora mais à conversa com as pessoas, Machado é mais reservado, de poucas falas, até o volume de voz (de tom grave) é mais baixo. Parece até não se sentir confortável em ir importunar quem está a trabalhar para pedir o voto (raramente o faz).
O método do autarca é recorrente: aproxima-se e pergunta “aceita uma carta minha?” — um folheto da candidatura — ou “aceita uma caneta?”, não gastando muito mais tempo. No piso superior, porém, tem de ir dando resposta a quem se queixa de obras ainda a decorrer: explica que não se consegue fazer tudo ao mesmo tempo, a uma interlocutora pede mesmo “mais dois mesinhos”. E ainda tem de registar que o serviço de transportes não é (nunca é) suficiente: “Quando é que vai o autocarro à nossa parvónia? A Póvoa do Pinheiro é uma terra que está desprezada, está esquecida, está só no papel”.
Machado discorda mas não entra em longos debates: deseja “saúde” (sempre) e segue aceitando as agruras do poder. Quando encontra conhecidos fica menos tenso: abraça conhecidos, pergunta “está tudo bem?” ou “essa saúde?”, tira uma fotografia junto a uma banca com uma comerciante e quase se emociona quando ouve outra agradecer-lhe por, depois da Covid-19, ainda poder estar no mercado a vender graças a apoios concedidos pela câmara: “Muito obrigado pela ajuda que nos tem dado, foi a única pessoa que nos ajudou”.
Silva a vender o peixe, entre a jeropiga e as entremeadas na sede do PSD
São 11h30 da manhã e José Manuel Silva está a começar a descer as “escadas de Quebra Costas”, que ligam a baixa de Coimbra à alta da cidade. É uma área que foi recentemente alvo de intervenção, com uma obra pública de substituição de calcário por granito que não foi consensual. Nos últimos dias ocorreram mesmo cheias, que afetaram os lojistas.
O candidato do “Juntos Somos Coimbra” entra em quase todo o lado, graceja com os lojistas, deixa folhetos de campanha e apela ao voto. Numa loja com artefactos religiosos, entra dizendo: “Viva o Santo António, a rainha Santa, a irmã Lúcia e o candidato José Manuel Silva”. No café Oásis, conhece uma trabalhadora da câmara municipal e pisca-lhe o olho: “Se trabalha na câmara também merece um bom folheto de um bom candidato, se calhar ainda vamos trabalhar juntos”.
Para quem não é político, parece ter anos de experiência a vender o seu peixe. Garante a quem o ouve que é “o melhor candidato, o mais simpático e o mais competente”, pede “uma hipótese à alternativa democrática” a Manuel Machado e anda lado a lado com alguém que conhece bem todos aqueles moradores e comerciantes, João Francisco Campos, o candidato à União de Freguesias Sé Nova – Santa Cruz – Almedina – São Bartolomeu.
Ali, por culpa das cheias, o “Juntos Somos Coimbra” está em vantagem — até se fazem piadas na comitiva que se a campanha do PS ainda não lá foi, agora é que não vai mesmo. O dono de uma mercearia lamenta-se que anda há 30 anos a alertar para possíveis inundações mas ninguém lhe ligou nenhuma, “Zé Manel” promete que vai ser “o melhor presidente de câmara que esta cidade vai ter” e volta a carregar na tinta da carreira fora da política: “Olhe que não sou político profissional, tenho a minha profissão, estou nisto por serviço. Atingi o tipo da minha profissão como Bastonário da Ordem dos Médicos, acho que é altura de fazer alguma coisa por esta cidade”.
Na “Ilustração ao Vento”, apresentada na fachada como “art shop“, o candidato da coligação anti-PS ouve que é preciso “melhorar a alta de Coimbra, não é só a baixa”. Continua a cirandar e arranja uma nova muleta, perguntando mal entra nos estabelecimentos “conhece este candidato a presidente de câmara?”, pedindo para “falar um bocadinho sobre ele” porque o “conhece bem”. Falta de auto-estima, não tem: “Tomara todos os concelhos deste país terem um candidato desta qualidade”.
A paragem em que a comitiva se demora mais é no Grupo Etnográfico da Região de Coimbra. José Manuel Silva volta a pedir para falar sobre o tal candidato que conhece “mais ou menos” e graceja: “Quando jovem, era um galã. É um rapaz trabalhador. Era bom desportista. Honesto, inteligente — inteligente mais ou menos, q.b.”.
É preciso retemperar forças da caminhada e na sede do Grupo Etnográfico da Região de Coimbra, onde José Manuel Silva encontra uma “antiga colega do badminton”, bebe-se um copo. O anfitrião, “o Baptista”, agarra numa garrafa de jeropiga e diz que a vai abrir mas a garrafa dá luta: a dada altura vai de faca, a rodar com pressão na rolha. Puxa-se a rolha para baixo e puff, há um repuxo a pintar a camisa do anfitrião. Mas dá para o brinde — “a Coimbra!” — e até para uma reclamação bem humorada, “ó Baptista, isto tem rolha pá!”, o anfitrião não nega: “Tem rolha tem [risos], tive de a puxar para dentro”.
Depois de uma passagem pela chocolataria Equador, onde o candidato volta a malhar no PS — “precisamos mesmo que alguma coisa mude, é impossível fazer igual ou pior, basta trabalhar com o mínimo de dedicação para fazer melhor” —, a comitiva segue para o almoço. Local: sede do PSD Coimbra.
O motivo para o almoço de uma campanha que é apoiada por vários partidos decorrer na sede de um deles, o PSD, “tem apenas a ver com a disponibilidade de instalações, nenhum outro partido nem o nosso movimento tem estas instalações”, explica o candidato ao Observador. “Não temos sede de campanha porque não temos financiamento para ter sede de campanha, portanto quando necessário aproveitamos as instalações do PSD para questões logísticas”.
Na verdade, não parece ser apenas “quando necessário”: a máquina da campanha parece ter ali um centro operacional não oficial. Numa das salinhas interiores veem-se t-shirts do “Juntos Somos Coimbra”, bandeiras, folhetos, todo o material que vai saindo como paninhos quentes. “O stock já se está a ir, as freguesias vêm cá buscar”, conta-nos um dos apoiantes. A presença de elementos de outros partidos é residual, até porque CDS, Aliança e outros não têm em Coimbra a “máquina” e as estruturas locais que o PSD garante.
É ali, na sede dos sociais-democratas de Coimbra, que a comitiva acomoda o estômago depois do brinde de fim da manhã. No exterior grelha-se entremeadas e enchidos, lá dentro há sacos de pão e é o mais próximo que vimos da clássica “sandes de carne assada” acompanhada pelas “minis” das campanhas.
Sentado numa das mesas, com uma sandes na mão e uma cerveja pousada, José Manuel Silva aproveita para ir ver o e-mail e espreitar quer um dos vídeos de campanha que gravou — quando lhe perguntam se está bom, diz que “não está mau” mas “podia estar melhor” — quer uma entrevista do adversário, Manuel Machado.
É também ainda na sede do PSD em Coimbra que diz ao Observador que as pessoas têm “dificuldade em obter respostas da câmara” e tenciona mudar isso, está confiante que vai tornar a autarquia “um fator de facilitação do desenvolvimento do concelho e de resposta rápida aos munícipes e não exatamente o oposto”.
José Manuel Silva lembra ainda o programa eleitoral, que apresenta “uma estratégia de crescimento e reindustrialização do concelho” e que quer “afirmar Coimbra como um polo de cultura”, prometendo a construção de um centro de congressos e medidas como a realização de “eventos culturais regulares e de grande dimensão”, apoio à produção cultural local e “a devida rentabilização cultural do Convento São Francisco, que está extraordinariamente subaproveitado”.
O candidato critica a “ausência de uma estratégia de turismo” da autarquia PS, defende o seu plano ambiental “de evolução para a neutralidade carbónica”, apela à necessidade de “melhorar a inclusão social”, denuncia um “desinvestimento no Serviço Nacional de Saúde em Coimbra” e ainda acusa os socialistas de lhes copiar propostas: “Fomos os primeiros a apresentar dois grandes parques urbanos nas margens do Mondego com uma ligação entre si, por pontes pedonais e cicláveis. O Partido Socialista veio depois copiar e apresentar a nossa proposta”.
O Manuel-candidato, o Manuel-presidente e o Manuel-avô
A vida de um presidente-candidato pode criar problemas de dupla identidade. Na tarde de esta sexta-feira, 17 de setembro, Manuel Machado dividia-se entre o Manuel candidato e o Manuel presidente. De manhã fora ao mercado em campanha. À tarde ia, como presidente, marcar o arranque letivo visitando uma escola do concelho: diz que o faz todos os anos, indo alterando apenas a que visita. Este ano, a escolha recaiu na escola básica do Tovim.
No jardim da escola, o autarca ouviu dezenas de crianças a cantar e entregou simbolicamente livros de ensino aos alunos finalistas do quarto ano de escolaridade. Faria ainda um discurso, dizendo ter “ouvido falar muito bem” daquela escola. Interpelava as crianças, dizendo-lhes que “fazem parte de uma equipa que hoje está a começar as aulas, no nosso concelho temos mais de 20 mil alunos e mais de uma centena de escolas — e a população escolar tem vindo a escrever”. E terminava com um repto: “Vamos aos livros!”.
Finda a ação, o presidente dava lugar ao candidato. No carro em que episodicamente viajava — o seu pessoal tinha ido para a oficina e a Mercedes cedera-lhe um carro de substituição por causa disso —, Manuel Machado tirava (literalmente) a máscara de presidente de câmara, mais escura, e substituía-a por uma branca com “Partido Socialista” escrito a vermelho.
Era a altura de rumar ao Largo da Igreja de Eiras para uma ação de campanha nessa freguesia. No carro, acompanhado pelo Observador, Manuel Machado explicava porque visitara aquela escola específica no bairro do Tovim: “Os tovineiros tinham uma relação tensa, até muito chocante, com os do lado de cá, da cidade — que não chegava aqui. Esta escola foi uma das que contribuiu para transformar um bairro que estava desqualificado, marginalizado”.
O candidato-presidente recuava às memórias de infância, lembrando que no seu tempo fazia “quatro ou cinco quilómetros a pé, ida e volta, para ir à escola”, porque não havia “transportes escolares”. A escola daquele tempo, lembrava também com um sorriso, ainda tinha “uma cana da índia, que era um fato desmotivador da vontade de ir para a escola primária”.
No caminho para o Largo da Igreja da Eiras, o candidato parava para um café e recuava a memórias da sua longa história no PS, ele que se tornou militante em 1974 — logo poucos dias depois do 25 de abril — e que foi “um dos criadores da Juventude Socialista”.
Uma delas, estimulada por uma capa da revista Sábado avistada numa bomba de gasolina: quando Jorge Sampaio, líder do PS, assistia à multiplicação táctica de rumores sobre possíveis candidatos à Câmara de Lisboa e decidiu ele mesmo avançar, depois de perguntar a Machado (que respondeu afirmativamente) se avançava em Coimbra. Outra memória, já com voz embargada pelas recordações de família: o facto do pai ter tomado posse como presidente de uma junta de freguesia no mesmo dia em que Manuel Machado tomou posse como autarca pela primeira vez. Pai (hoje com 92 anos) e filho acabaram por conseguir, quase como se tivessem o dom da ubiquidade, estar presentes na tomada de posse um do outro, em 1990 (há 31 anos).
Chegado ao Largo da Igreja de Eiras, Manuel Machado tinha uma comitiva do PS e da JS à sua espera e alguns operacionais locais. A recebê-lo estava Fernando Abel Simões, presidente recandidato da Junta da União de Freguesias Eiras/S. Paulo de Frades, antigo operário metalúrgico e histórico socialista que até foi deputado na Constituinte, mas também o neto Rui Miguel, de 10 anos, que de bandeira do PS na mão corria para dar um abraço ao avô.
No largo cantava-se repetidamente “PS” e um homem destacava-se, gritando que vai fazer “84 anos”, que nasceu em Eiras e que é rico — “mas rico é em trabalho, não é em dinheiro”. Diria depois ao Observador ter “guardado velhas e até vendido fogo, agora proibiram” e ser “do PS desde que começou”, tendo chegado “a andar com uma saca de pedras” nos tempos em que o combate político fervia.
Estacionado uns metros ao lado, um carro que anda permanentemente pela cidade ia tocando a canção oficial de campanha, um hino do conimbricense André Sardet:
A alegria de viver
e o pulsar desta cidade
Património imaterial
Coimbra será forte se tiver mais dignidade
Com Machadoooooo
Por nós a lutar
(…)
Vamos dar a Coimbra
um futuro maioooor
onde todos são parte
de uma vida melhoooor
Era a vez de Manuel Machado discursar e o candidato-presidente apelava ao voto: defendendo o trabalho feito, prometendo obras — requalificar aquele largo, fazer obras na sede da junta de freguesia — e apelando ao voto, dizendo que “o próximo dia 26 de setembro é um dos dias mais importantes da nossa vida”. Ainda atiraria umas farpas aos adversários, dizendo que o seu projeto é de “valorizar Coimbra” (slogan da campanha) e não “dizer mal de Coimbra e dos conimbricences”, afirmando “não somos cata-ventos, vocês sabem quem somos, de onde vimos e para onde queremos ir” e assumindo que se “houve e há dificuldades”, não vale tudo “a denegrir, na maledicência, no combate mesquinha”.
Quem o ouvia quem ia interrompendo para palmas ou para, de punho esquerdo fechado e levantado no ar, gritar pelo PS. Mas a ação terminava e, novamente no carro, Manuel Machado aproveitava para atender uma videochamada que lhe permitiu ver o neto mais novo, com apenas seis meses e que recebeu o mesmo nome do avô. Aos pais perguntava se o garoto já dormia, se o terceiro dente já tinha aparecido e ainda dava um conselho: “Para crescer, em vez de hambúrgueres dá-lhe bifes”.
O imprevisível efeito de um comício, um hospital e uma maternidade no voto
A campanha eleitoral em Coimbra ficou marcada por um comício feito pelo PS, na noite de quinta-feira, 16 de setembro e com um convidado ilustre: o primeiro-ministro António Costa, que foi ao Teatro Académico Gil Vicente dar um “empurrão” ao “amigo Manel”.
Nessa noite, o primeiro a discursar foi Manuel Machado, que defendeu que “só há um projeto credível, coeso e estruturado” para o concelho: o seu e do Partido Socialista. Unindo-se ao PS nacional e defendendo concretamente resultados do seu mandato, citando por exemplo o aumento do número de estudantes nas universidades, a duplicação da “venda de bilhetes para espectáculos” ou a requalificação do de Convento São Francisco, o autarca vincou: “Não somos vendedores de sonhos e não chegámos agora à vida pública com narrativas populistas. Já cá andamos há muitos anos, o nosso povo conhece-nos, temos trabalho e provas dadas”.
O candidato do PS a um terceiro (e último) mandato à frente da Câmara Municipal prometeu ainda “um investimento em requalificação que irá revolucionar as margens do Mondego para as próximas gerações”.
O discurso teve duas referências que ganhariam ainda mais importância no final dessa noite. Primeiro, sobre o desaproveitado Hospital dos Covões, Manuel Machado diria que a autarquia ia bater-se “pelo pleno aproveitamento do hospital dos Covões, por isso lutaremos”. Depois, sobre uma nova maternidade há muito anunciada e ainda por construir, o presidente da Associação Nacional de Munícipios deixava ao Governo uma tarefa no caderno de encargos: requeria que se concluísse “o processo de construção urgente de uma nova maternidade de Coimbra, que sirva este concelho e toda esta região”.
Na plateia, o secretário-geral do PS ouvia e quando discursou acabaria por responder. Para o Hospital dos Covões, Costa prometeu “um plano estratégico de desenvolvimento” e exclamou: “Não vai ser algo que vai morrer, vai ser algo que vai continuar a viver”. A plateia, galvanizada, levantou-se para lhe bater palmas. Depois, sobre a maternidade, Costa notou que a cidade “precisa mesmo” de a ter e deixou uma mensagem ao amigo Manuel: “Temos trabalhado muito nos últimos anos. Já vencemos várias das dúvidas, a mais importante das quais era esta: vamos ter a nova maternidade. Já resolvemos o segundo problema: como a financiar”.
O que falta então para que o processo da construção da maternidade avance? Costa, primeiro-ministro, passava uma mensagem pouco inocente ao camarada socialista e apontava um calendário para se resolver o problema relativo à localização que a nova maternidade terá: “Há neste momento 700 metros de diferença para podermos tomar a decisão final e abrir o concurso para a elaboração do projeto. Não é altura, estamos em campanha eleitoral, concentra-te no que tens a fazer — mas Manuel, a partir do dia 27, doa por onde doer, não podemos levar mais do que três semanas a resolver o problema dos 700 metros”.
A calendarização da conclusão desse processo de decisão relativo à localização da maternidade, anunciada pelo governante de um país num congresso partidário, motivou críticas até de outros líderes políticos nacionais e direções de partido — acusaram Costa de “eleitoralismo”. Manuel Machado discordaria, dizendo ao Observador que a única novidade foi a calendarização. “Por mim, tratava aquilo já hoje mas ainda há umas coisas a tratar com os serviços respetivos do ministério da Saúde, alguns pareceres. Parece que está no bom caminho e ninguém tem dúvidas que a maternidade é uma questão fundamenta. Já foi gasto nisto tempo de mais, é preciso construir e pronto”.
Para o candidato do PS, a maternidade só não pode ser construída “na zona das consultas externas ou por cima do piso das doenças infecto-contagiosas” do Centro Hospitalar de Coimbra — algo com que o seu maior oponente, José Miguel Silva, concorda em absoluto. A nova unidade tem de ser construída “fora do perímetro direto do hospital”, defendia Manuel Machado, vincando ainda ter ficado “satisfeito” por ter sido “a primeira vez que, de modo perentório, um primeiro-ministro garantiu que não ia fechar o Hospital dos Covões”.
Quem não gostou nada de ouvir o Costa governante a dar uma mão ao Manuel candidato foi José Manuel Silva. O líder do movimento e coligação “Juntos Somos Coimbra” reagiria em declarações ao Observador: “Não podemos deixar de ficar estupefactos que o primeiro-ministro, violando as regras de neutralidade, venha anunciar a uma semana das eleições que vai anunciar depois das eleições a localização da nova maternidade. É o mais puro populismo”.
O candidato apoiado por sete partidos lembraria ainda que António Costa “veio anunciar uma promessa de dez anos não concretizada” e notava que “o Governo do PS tem seis anos de governação e ainda não fez a nova maternidade”. As duas maternidades que Coimbra tem atualmente, apontaria também, “estão há muito em colapso” com “estruturas envelhecidas”.
Para José Manuel Silva, o que aconteceu foi simples: Costa misturou o seu papel e deveres de governante com a vontade de dar força a um camarada de partido: “O doutor António Costa traz sempre as duas vestes vestidas e não as distingue. Tanto fala como primeiro-ministro como fala como secretário-geral do PS de forma indistinta, nomeadamente agora neste período eleitoral”.
Se a ajuda do amigo António ao camarada Manuel terá efeitos nas eleições, é cedo para perceber. Na campanha do “Juntos Somos Coimbra” acredita-se que as declarações proferidas a uma semana das eleições ofenderam quem vive em Coimbra e espera há muito por soluções que só ouve prometidas quando é preciso obter votos. Já no PS, a crença é que o trabalho bem feito permitirá ganhar novamente o município e com uma vantagem acentuada. Quem tem razão, saber-se-á apenas dia 26.