A morte de Jéssica Biscaia é agora um caso de homicídio, com suspeitos já detidos. Mas, antes de o ser, a história da menina de três anos que morreu na passada segunda-feira, vítima de alegados maus-tratos, era um processo de proteção na Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ). Já o era com apenas um mês de vida: a comissão começou a acompanhá-la desde cedo, uma vez que os seus cinco irmãos mais velhos também já não viviam com a mãe e dois deles estavam já institucionalizados.
A menina corria perigo — foi esta a conclusão que chegou a CPCJ de Setúbal, depois de fazer uma avaliação diagnóstica ao caso. Por isso, decidiu aplicar uma medida de promoção e proteção da criança. Só que os pais de Jéssica não deram o consentimento para que esta proteção fosse aplicada e, como está previsto para estes casos, o processo foi remetido para o Tribunal de Família e Menores da Comarca de Setúbal. Porém, depois de o Ministério Público ter acompanhado o caso ao longo de dois anos, o processo acabou por ser arquivado por considerar “já não subsistir situação de perigo”. O que aconteceu no processo de Jéssica e o que não foi feito para a proteger?
Quando é que a CPCJ sinalizou Jéssica?
O caso da criança de três anos que morreu no passado dia 20 de junho, depois de ter estado alegadamente sequestrada na casa de uma mulher a quem a mãe deveria dinheiro, chegou à CPCJ cerca de um mês depois de Jéssica nascer, em fevereiro de 2019. Jéssica tinha nascido em janeiro desse ano.
Como é que Jéssica foi sinalizada?
Regra geral, “qualquer pessoa que tenha conhecimento de situações que ponham em perigo a segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento da criança e do jovem” pode denunciá-las às “entidades com competência em matéria de infância ou juventude, às entidades policiais, às comissões de proteção ou às autoridades judiciárias”. Quer seja por telefone, por correio ou presencialmente, de forma anónima ou não, segundo é explicado no site da CPCJ.
Não foi exatamente o que aconteceu no caso de Jéssica. “Este processo foi sinalizado pelo Núcleo Hospitalar de Crianças e Jovens em Risco de Setúbal, por a criança estar exposta a ambiente familiar que poderia colocar em causa o seu bem-estar e desenvolvimento“, explicou a CPCJ num comunicado enviado às redações dias depois da morte da criança. Ao que o Observador apurou junto de fonte policial, o processo de Jéssica não surgiu de uma denúncia, nem por indícios de maus-tratos ou negligência: a criança foi sinalizada porque já havia antecedentes, nomeadamente porque os seus cinco irmãos mais velhos — filhos de quatro pais diferentes — também já não viviam com a mãe.
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O que fez a CPCJ depois de Jéssica ter sido sinalizada?
Após a sinalização, a CPCJ seguiu o processo de intervenção previsto na Lei de proteção de crianças e jovens em perigo, começando por realizar uma avaliação diagnóstica ao caso, segundo esclareceu em comunicado. Depois verificar que existia de perigo para a criança, a CPCJ instaurou um processo e “deliberou aplicar uma medida de promoção e proteção da criança”, informa no comunicado.
Que medidas de proteção podem ser aplicadas?
A CPCJ não revelou qual foi a medida que decidiu para Jéssica. Mas a lei prevê seis medidas de promoção e proteção, que têm como objetivo “afastar o perigo” em que as crianças ou jovens se encontram, “proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral” e “garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso”, segundo se lê na lei:
- Apoio junto dos pais — proporcionar à criança ou jovem apoio de natureza psicopedagógica e social e, quando necessário, ajuda económica;
- Apoio junto de outro familiar — colocação da criança ou do jovem sob a guarda de um familiar com quem resida ou a quem seja entregue, tendo também aqui apoio de natureza psicopedagógica e social e, se necessário, ajuda económica;
- Confiança a pessoa idónea — a criança ou jovem é colocada sob a guarda de uma pessoa que, “não pertencendo à sua família, com eles tenha estabelecido relação de afetividade recíproca”, explica a CPCJ no seu site. Também esta medida prevê apoio de natureza psicopedagógica, social e económico.
- Apoio para a autonomia de vida — esta medida é proporcionada diretamente ao jovem que tenha mais de 15 anos ou a uma mãe com menos de 15 anos, quando se verifique que a situação aconselha a aplicação desta medida. Prevê apoio económico e acompanhamento psicopedagógico e social, acesso a programas de formação, com o objetivo de “dar condições que o habilitem e lhe permitam viver por si só e adquirir progressivamente autonomia de vida”;
- Acolhimento familiar — atribuição da confiança da criança ou do jovem a uma pessoa singular ou a uma família, habilitadas para o efeito;
- Acolhimento residencial — colocação da criança ou jovem aos cuidados de uma entidade que disponha de instalações, equipamento de acolhimento e recursos humanos permanentes, devidamente dimensionados e habilitados, que lhes garantam os cuidados adequados.
Existe ainda uma outra medida, mas que não pode ser aplicada pela CPCJ: a medida de confiança a pessoa selecionada para a adoção, a família de acolhimento ou a instituição com vista à adoção. Neste casos em que a CPCJ conclui que há necessidade de encaminhar a criança para a adoção, o processo de promoção e proteção é remetido para o tribunal.
Por que é que a CPCJ não aplicou nenhuma medida de proteção a Jéssica?
Porque não houve consentimento dos pais para aplicar a medida decidida. Segundo explica no comunicado, a CPCJ “deliberou aplicar uma medida de promoção e proteção da criança” — que não revela qual é. O passo seguinte seria a elaboração de um acordo e de um plano de execução da medida entre a CPCJ e a família. Mas essa medida não foi sequer “aceite pelos pais” e por isso o caso seguiu para tribunal, o último patamar de intervenção quando as intervenções anteriores não foram suficientes para tirar a criança da situação de perigo em que se encontra.
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É algo que está previsto na lei: “A intervenção das comissões de proteção das crianças e jovens depende, nos termos da presente lei, do consentimento expresso e prestado por escrito dos pais, do representante legal ou da pessoa que tenha a guarda de facto, consoante o caso”. Nestes casos em que o progenitor ou legal representante da criança se opõe à intervenção, o caso é enviado para o Ministério Público e “cessa a legitimidade da comissão de proteção para a intervenção”, lê-se na lei. Foi o que aconteceu no caso de Jéssica.
Os pais podem não dar ou retirar o seu consentimento em várias fases do processo. Podem, aliás, fazê-lo numa fase inicial, logo na avaliação diagnóstica. Em 2021, 56,44% dos casos — o que representa 4.730 processos — foram arquivados e remetidos para o tribunal porque os progenitores ou representantes não deram o consentimento nem sequer para a CPCJ fazer uma avaliação da situação.
Quanto tempo o processo de Jéssica esteve nas mãos da CPCJ?
Menos de um ano. Jéssica foi sinalizada em fevereiro de 2019 e o caso foi remetido para o Ministério Público em janeiro de 2020. “Correu termos na CPCJ de Setúbal processo de promoção e proteção da criança, entre fevereiro de 2019 e janeiro de 2020“, indica esta entidade em comunicado.
A CPCJ nunca mais teve intervenção no caso?
Depois de o processo ter saído da alçada da CPCJ de Setúbal para o Ministério Público, esta entidade não voltou a receber qualquer outra denúncia que levasse à abertura de outro processo. “Após esta data não voltou a haver qualquer outra comunicação de perigo à CPCJ de Setúbal”, garante no comunicado enviado às redações. Também Isabel Braz, presidente da CPCJ Setúbal garantiu o mesmo ao Observador: “No momento presente, não corre termos nesta Comissão um processo de promoção e proteção a favor da criança em apreço”.
O que é que o Ministério Público fez depois de janeiro de 2020?
Depois de estar entregue às mãos da CPCJ, o caso de Jéssica passou a estar entregue ao Ministério Público. Face ao não consentimento dos pais para aplicação da medida de proteção, o processo saiu da alçada da CPCJ para ser o tribunal a decretar essa medida — ou a arquivar o processo caso entendesse que não havia perigo para a criança. Assim, o Ministério Público instaurou um processo judicial de promoção e proteção a favor da criança — que “não pode ultrapassar o prazo de quatro meses”. Esse processo decorreu no Tribunal de Família e Menores da Comarca de Setúbal, mas foi arquivado, ao que apurou o Observador junto de fonte policial.
“O juiz decide o arquivamento do processo quando concluir que, em virtude de a situação de perigo não se comprovar ou já não subsistir, se tornou desnecessária a aplicação de medida de promoção e proteção”, indica a lei. E é precisamente esta informação que se lê no despacho de arquivamento do Ministério Público enviado ao Observador, com data de maio deste ano: “As consultas e o plano de vacinação da criança estavam a ser asseguradas e, em março de 2022, a mãe havia feito a inscrição da filha para um equipamento de infância em Setúbal, aguardando a indicação de vaga, propondo a equipa técnica o encerramento do processo por já não subsistir situação de perigo“.
Esta situação de perigo começou a ser acompanhada há dois anos, em maio de 2020, quando o Ministério Público considerou que existia “violência entre os progenitores ocorrida na presença da criança”.
Nos últimos dois anos, o caso de Jéssica foi acompanhado por uma equipa da Segurança Social, que fez dois pontos de situação — um em cada ano. No primeiro, feito em 2021, o Ministério Público apontou que “de acordo com a informação prestada pela avó materna, a situação de violência doméstica entre o casal acalmou”. Não tendo a violência desaparecido, a Segurança Social continuou a acompanhar o caso. Este ano, encontrou a criança num cenário diferente: o pai foi trabalhar para o estrangeiro, a mãe tinha um novo companheiro e as duas tinham mudado de casa. Com estes factos, o MP entendeu não existirem motivos para continuar a acompanhar o caso de Jéssica.
O processo podia ser reaberto mesmo depois de arquivado?
Sim. Como qualquer outro caso judicial, também este poderia ser reaberto caso o Ministério Público recebesse algum indício que o justificasse. A lei prevê este cenário “se ocorrerem factos que justifiquem” a reabertura. Mas não foi o que aconteceu: a criança só voltaria a ser acompanhada pela CPCJ se houvesse uma nova sinalização. O processo permaneceu arquivado desde então e, agora, há outro a envolver Jéssica Piscaia: o do seu homicídio.