A esmagadora maioria dos analistas antecipa que o BCE irá nesta quinta-feira anunciar um novo aumento de 75 pontos-base nas taxas de juro de referência, repetindo a dose de aperto monetário que foi anunciado no último dia 8 de setembro. São a esmagadora maioria, mas não são todos: há quem acredite que, tal como já aconteceu nos últimos meses, Christine Lagarde poderá surpreender o mercado com um sinal ainda mais forte contra a inflação: um aumento de 100 pontos-base, um ponto percentual, mesmo com a ameaça de uma recessão económica ao virar da esquina.
“É difícil prever, mas acreditamos que é mais provável que haja uma opção pelos 100 pontos-base“, afirma um dos dissidentes em relação à opinião maioritária, Jack-Allen Reynolds da Capital Economics. Em contraste com ocasiões anteriores, não houve nenhum governador mais preocupado com a escalada da inflação a defender (publicamente) uma subida dos juros de um ponto percentual. Houve até um responsável, o austríaco Robert Holzmann, que disse “não ver a necessidade de um movimento tão rápido” – isso foi dito, porém, ainda antes da divulgação dos últimos dados sobre a inflação, que saíram mais gravosos do que o esperado.
A taxa de subida dos preços na zona euro acelerou para 9,9% (uma variação ligeiramente revista em baixa em relação aos 10% inicialmente calculados pelo Eurostat). Uma eventual subida de 75 pontos-base, por muito significativa que seja, já está “descontada” pelos mercados e, portanto, não deverá ter um grande efeito nos mercados financeiros, designadamente na cotação do euro face ao dólar (cuja descida dos últimos meses, até à paridade, é em si um fator indutor de inflação). Se o BCE quiser usar do elemento-surpresa, terá de ir mais além do que apenas 75 pontos.
“Já vimos este filme, no passado recente“, lembra Jack-Allen Reynolds. O economista da Capital Economics recorda que “em junho, o BCE sinalizou que ia aumentar em 25 pontos-base na reunião seguinte e, depois, acabou por decidir subir os juros em 50 pontos. E a subida de 75 pontos-base que foi anunciada em setembro ficou claramente no topo das expectativas do mercado”, que se dividiam entre 50 e 75. Ou seja, Christine Lagarde tem um histórico recente de surpreender o mercado com uma maior agressividade na subida dos juros. “Se uma inflação de 10% e uma taxa de juro abaixo de 1% não justificam um aumento de 100 pontos-base, então o que é que justificaria?”, pergunta o economista da Capital Economics, de forma retórica.
Um outro argumento a favor do aumento de 100 pontos-base é que isso poderia ser utilizado por Christine Lagarde como “moeda de troca” para convencer os “falcões” do BCE, aqueles mais preocupados com a subida dos preços, a adiarem mais algum tempo a discussão sobre a redução do balanço do banco central. Depois de vários anos a comprar dívida pública e a conceder empréstimos de longo prazo aos bancos, a juros baixos, o balanço do BCE inchou para 8,8 biliões de euros, o que equivale a cerca de 70% da riqueza anual produzida na zona euro.
Christine Lagarde, presidente do BCE, reconheceu recentemente que é um valor elevado – que não lhe tira o sono à noite mas que a preocupa a cada manhã – mas tentou passar uma mensagem de serenidade e limitou-se a dizer que “a seu tempo” a dimensão do balanço do BCE irá reduzir-se. Holger Schmieding, economista do Berenberg Bank, afirma que “o BCE parece estar na iminência de começar a discutir um aperto quantitativo passivo”, o que significa reduzir o balanço através no não-reinvestimento dos títulos de dívida que estão na sua posse e que forem atingindo a maturidade. Não se fala ainda de uma redução do balanço mais ativa, com a venda desses títulos, mas “a grande questão para o BCE neste momento é quando e como é que se vai começar a reduzir o balanço“, diz Holger Schmieding.
Neste contexto, para que os “falcões” do Conselho do BCE admitam que não se comece já a falar em “aperto quantitativo” (quantitative tightening, ou QT) estes poderão exigir um aumento maior da taxa de juro do que os 75 pontos-base que são a aposta da maior parte dos analistas. A acontecer, também aqui seria um padrão familiar: em julho, quando o BCE subiu as taxas em 50 pontos (e não em 25 pontos, como o próprio tinha sinalizado), isso foi visto como uma “moeda de troca” para governadores como o alemão Joachim Nagel e o holandês Klaas Knot aceitassem que fosse apresentado – como foi – o então novo mecanismo de proteção das taxas de juro dos países mais vulneráveis ao risco de uma nova crise da dívida.
Presidente do Bundesbank defende mais subidas de juros do BCE além da prevista
E, a propósito, as tensões no mercado de dívida pública podem acentuar-se se houver sinais de que o tal aperto quantitativo poderá estar iminente. Seja de forma mais passiva ou mais ativa, isso significará ter o BCE a comprar menos títulos de dívida pública ou, então, ativamente a colocá-los à venda nos mercados. Ou seja, se como moeda de troca os “falcões” exigirem um aumento de 100 pontos na taxa de juro para adiar, por mais algum tempo, o debate sobre a redução do balanço do BCE, Christine Lagarde poderá (repetindo o padrão anterior) achar que esse é um pequeno preço a pagar.
Nesta fase, os juros da dívida italiana estão perto de 4,5%, refletindo alguma pressão dos investidores pelo facto de serem o dobro daquilo que os investidores estão a pedir para emprestar à Alemanha (um prémio de risco de 220 pontos-base). A dívida portuguesa, também no prazo a 10 anos, está a ser negociada com juros de 3,15%, aliviando um pouco em relação ao máximo anual (de 3,5%) a que foi negociada nas últimas semanas. Espanha está ligeiramente pior: 3,21%, 110 pontos-base mais do que a referência “sem risco” da dívida alemã.
“Espera-se que Christine Lagarde reafirme que o QT só vai começar após o final do ciclo de alta dos juros sem dar detalhes sobre o timing“, afirma Franck Dixmier, diretor global de investimentos em obrigações da Allianz Global Investors (AllianzGI). Mas “esta abordagem não é consensual, pois o presidente do Bundesbank, Joachim Nagel, já manifestou o seu desejo de reduzir o balanço o mais rápido possível”, acrescenta o especialista, antecipando que “os mercados vão estar muito atentos” a esta questão, na conferência de imprensa de Christine Lagarde, que começa às 13h45 de Lisboa.
A outra dúvida é saber onde é que está o tal “final do ciclo de alta dos juros”, ou seja, até que níveis é que as taxas de juro poderão subir nos próximos meses. François Villeroy de Gallhau, governador do banco central de França, antecipou que o BCE poderia aumentar as taxas para 2% até ao final do ano. Isso significaria que, depois dos (quase consensuais) 75 pontos esta quinta-feira, ficaria a faltar mais uma subida – de 50 pontos – na última reunião do BCE este ano, a 15 de dezembro de 2022.
Neste momento, a taxa de juro diretora do BCE está em 1,25%, sendo esse o valor de referência para as operações de refinanciamento do BCE – em termos simples, aquilo que os bancos pagam ao BCE pela liquidez financeira que este lhes concede. Por outro lado, a taxa dos depósitos, que reflete aquilo que os bancos recebem quando depositam liquidez excedentária em Frankfurt, essa está em 0,75%, podendo saltar para 1,5% caso se confirme a expectativa mais consensual nos mercados (de aumentos de 75 pontos-base).
A taxa dos depósitos continua a ser, ainda, a principal ferramenta de política monetária do BCE, no que às taxas de juro diz respeito – e foi a única taxa que esteve em terreno negativo, até à decisão que foi anunciada em julho de a colocar em zero.
A perspetiva transmitida pelo economista-chefe do BCE, Philip Lane, é que se considera que uma “taxa neutra” algo ligeiramente acima dos 2%, ou seja, é nesse nível que o BCE considera que nem está a estimular a economia por via dos juros nem está, por outro lado, a ser uma força retratora da atividade económica. Mas os economistas consultados pela Bloomberg antecipam que se poderá ir um pouco além disso, apontando para um nível de 2,5% atingido até março.
“No entanto, há uma forte expectativa de que o BCE irá abrandar o ritmo das subidas de taxas após a reunião desta quinta-feira, indo para uma subida de 50 pontos-base em dezembro e de 25 pontos-base nas duas reuniões subsequentes, já no início de 2023″, afirma Franck Dixmier, da Allianz Global Investors.
A confirmar-se, esse abrandamento do ritmo de subida das taxas de juro, já a partir de dezembro, virá numa altura em que o BCE já terá uma visão mais clara sobre o desempenho da economia europeia. Nesta fase, o BCE continua a ter como cenário central que não irá haver uma recessão na zona euro – só num cenário adverso, “muito negro”, é que o staff de economistas prevê um período de crescimentos negativos. Mas estas previsões, que serão atualizadas em dezembro, parecem cada vez mais desenquadradas com a realidade.
“A zona euro já está, neste momento, em recessão“, afirmaram na segunda-feira economistas de grandes bancos de investimento europeus, depois de terem sido divulgados os chamados índices de gestores de compras (PMI, na sigla mais utilizada), que são dados económicos avançados que tentam antecipar tendências na economia em tempo real – e que, esta segunda-feira, saíram abaixo das expectativas.
“Os PMIs mais fracos do que o esperado confirmam que a zona euro já está em recessão“, escreveu Peter Vanden Houte, economista-chefe do banco holandês ING para a Europa, um dos vários analistas que deram a entender que não é de esperar outra coisa que não uma significativa revisão em baixa das estimativas macroeconómicas do BCE, em dezembro.
Zona euro “já está em recessão”. Dados económicos avançados acentuam queda
E como é que o BCE consegue prosseguir com os aumentos de taxas de juro, em face da recessão que os analistas consideram inevitável? Franck Dixmier, da Allianz GI, diz que, com um “crescimento que está a enfraquecer semana após semana”, o BCE encontra-se numa “situação mais desconfortável, com os ventos contrários a dificultarem a sua tarefa”. Porém, o BCE tem um mandato único que é levar a inflação para 2%, o que “exige que se aumente os juros tanto quanto necessário para trazer a inflação para uma trajetória compatível com o seu objetivo de estabilidade de preços”.
O que também não ajuda, acrescenta Franck Dixmier, é que “os planos de apoio dos governos para o poder de compra e a procura estão a encorajar os aumentos de preços“, ou seja, a complicar ainda mais a vida de Christine Lagarde.