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Esta imagem, como um todo, é provavelmente uma das piores para escolher quando se escreve um perfil. Há milhares e milhares de fotografias desta figura nos últimos anos. Vestido, despido. Com a família, contra os adversários. De fato e gravata, de t-shirt e calções. A rir, a fazer cara séria. A sangrar, com sangue dos outros. Mas esta imagem com fundo inexpressivo e má combinação de luzes, por pior que seja, é “a” imagem.
Esta é a imagem de um irlandês com aspeto de brutamontes, tatuado até ao pescoço, que carrega o filho como uma bola de futebol americano mas que poucos momentos antes, sem câmaras nem máquinas fotográficas, se tinha derretido a calçar as meias com meia dúzia de centímetros no pé de um bebé de três meses.
Esta é a imagem de um irlandês que um mês antes se tinha passeado de tronco nu pela Quinta Avenida antes de gastar milhares e milhares de dólares em calças que podiam ser uma bonita amostra de pintura preparada pelo filho para a festa de final de semestre da escola.
Esta é a imagem de um irlandês durão que diz fuck 20 vezes em cada frase de dez palavras, que passa a vida fora de casa a viajar entre continentes, que tem o mundo na mão, mas que era capaz de dar esse mesmo mundo pela namorada que vê com os mesmo olhos inocentes e apaixonados com que se conheceram há quase dez anos.
Esta é a imagem de um irlandês que liga fãs que usam o seu merchandising e curiosos que estão apenas ali de passagem através de câmaras, sejam elas de máquinas fotográficas ou de telemóveis, de forma mais atrevida ou refundida.
Esta é a imagem de um irlandês que se chama Conor McGregor. E esta é a sua história.
Conor Anthony McGregor não teve especial pressa em chegar ao mundo, mas quando o fez, como contou a mãe, Margaret, fê-lo de punho fechado. Era um punho muito pequeno, mas tornou-se a grande imagem de marca. A maior de todas. E ainda é, 29 anos depois.
Crumlin, um subúrbio de Dublin, é um local para duros. Encontra os seus problemas, mas apresenta soluções para miúdos que se querem fazer homens. Ali ninguém ouve lamentos pelo que não se tem, porque as pessoas preferem dar graças pelo que conseguem ter. Mas houve um miúdo que quis ter mais. O mesmo miúdo loirinho com cabelo cortado à tigela que tinha brinquedos novos, jogos novos e bicicletas novas mas era “especialmente desligado”, como costuma destacar o pai (o que quer que isso signifique).
Jogou futebol no Lourdes Celtic Football Club. Sonhava tornar-se profissional e representar o Manchester United, mas desde miúdo que também percebia as limitações que estavam ali escondidas naquelas chuteiras enlameadas. Um dia, com uns 11 anos, foi apertado na rua por seis miúdos, alguns mais velhos. Ainda deu o primeiro murro, mas a seguir foi esmurrado e mais do que uma vez. E foi nesse dia que o seu “golo” passou a ser outro. Já antes tinha sido vítima de bullying. Hoje vai às escolas falar sobre isso.
O avô tinha sido campeão regional de boxe, a um nível amador. E também o pai, Tony, andara pelos ringues antes de entrar num táxi e por lá ficar quase 30 anos. Mais do que uma carreira, um desporto ou um hobbie, era o sangue irish que lhes corria a descer para as veias dos punhos. E era algo hereditário.
Na primeira vez que Conor entrou no Crumlin Boxing Club, a seguir a um treino de futebol, foi chamado à atenção por Phil Sutcliffe, um antigo lutador que tinha ido aos Jogos Olímpicos. “Tu aí, não podes estar aqui de chuteiras”, disse. O miúdo ainda deu mais uns murros, mas saiu. Voltou uns dias depois, já equipado.
Como seria de esperar, o local está a ser visitado por dezenas e dezenas de jornalistas na antecâmara do ‘Combate do Século’ frente a Floyd Mayweather. E foi nesse contexto que explicaram o porquê de McGregor não ter mais destaque naquele espaço. “Gostamos de ter fotografias de todos os pugilistas que passam por aqui, mas sempre que colocávamos uma do McGregor, desaparecia no dia seguinte. Todos querem ficar com uma recordação do seu herói”.
Ao contrário do que se possa pensar, Conor nem era particularmente dado a lutas de rua. Cada sessão de murros nos sacos velhos do espaço era uma conversa entre ele e com ele. Sempre gostou de estar na sua, sem chatices. E sem rituais ou superstições, “essa coisa que só os fracos têm para esconderem o medo”. Há algo que o acompanhava aí e ainda agora: um chapéu antigo que tinha sido do avô. Recorda-o das raízes que nunca esqueceu nem quer esquecer.
O irlandês não teve propriamente aquela infância e adolescência com muitas privações. Tanto que, aos 13 anos, mudou-se com os pais e as duas irmãs para uma casa maior, em Lucan. O boxe manteve-se. E cada vez melhor, juntando alguma força da técnica à técnica da força. Chegou mesmo a ganhar um troféu regional de Sub-16, daqueles que ficam bem por cima da lareira ou ao lado da televisão.
Aos 18 anos, muita coisa mudou e na mesma semana. O pai chegou a prometer-lhe dez mil euros se continuasse a estudar e fosse para a faculdade. Não quis. Uma professora disse-lhe que tinha inteligência e capacidade argumentativa para se tornar num bom advogado. Entrou a 100 e saiu a 200. Deixou a escola e tornou-se aprendiz de canalizador, com um salário que dava para as coisas pessoais e pouco mais. Foi também nessa semana que saiu ‘O Segredo’ de Rhonda Byrne, o livro mais marcante da sua vida. Foi também nessa semana que entrou pela primeira vez no Straight Blast Gym, o ginásio do ainda hoje treinador John Kavanagh.
Odiava aquilo que fazia, mas para ganhar dinheiro não podemos fazer apenas aquilo que gostamos”
Acordava todos os dias às cinco da manhã para fazer o que não gostava durante 12 horas, ainda ia ao final do dia para o ginásio fazer o que adorava. E continuou a ir, mesmo depois de ter levado um enxerto do treinador: a treinar com uma lutadora do UFC, Aisling Daly, deu-lhe um murro tão forte que a atirou ao chão; Kavanagh não gostou e deu-lhe uma lição. Mas Conor não se importou, porque aqueles eram os estudos que acabara de escolher para a vida.
Quando fez o primeiro combate de sempre, já tinha deixado de vez o trabalho como canalizador: no Cage of Truth 2, a 8 de março de 2008, venceu Gary Morris ao segundo round. Dois meses depois, no Cage Rage Contenders, despachou Mo Taylor em pouco mais de um minuto. Dublin estava rendida a McGregor. Que voltou a ser Conor, o “menino da mamã”, a 28 de junho, quando perdeu por submissão frente ao desconhecido Artemij Sitenkov.
“Quando acabou o combate, ficou a chorar”, recordou recentemente o lituano, que colocou à venda no eBay os calções dessa luta para fazer algum dinheiro e aumentar o apoio aos orfanatos de Vilnius. Sitenkov acertou na única parte onde doía verdadeiramente a McGregor: o orgulho. Sala cheia, mais de metade eram familiares ou amigos, ambiente típico de pavilhão de rua irlandês, com muita cerveja e demasiado barulho, balde de água fria na bazófia crescente. Como iria lidar este miúdo de 19 aninhos com a derrota que desconhecia?
Indo diretamente ao assunto como Sitenkov foi, lidou mal. O irlandês agarrou no dinheiro (pouquito ainda nesta altura), saiu porta fora e ninguém lhe pôs a vista em cima durante alguns dias. Pensou em desistir. No início, a mãe não levou muito a sério, achava que era apenas frustração e orgulho ferido. Mas ele ia mesmo desistir. Foi então que Margaret ligou ao treinador, John Kavanagh. “Se não tivesse sido essa chamada, provavelmente nunca mais me tinha cruzado com ele”, admitiu. E lá saiu das quatro paredes do quarto para os oito lados do ringue do MMA.
A 27 de novembro de 2010 voltou a perder, mas entretanto aprendeu que a derrota também pode ser o primeiro passo para as vitórias e esteve dois anos invicto com oito triunfos consecutivos entre República da Irlanda, Irlanda do Norte, Jordânia e Inglaterra. Seis foram alcançados no primeiro round, um com apenas 16 segundos de combate, outro com menos de quatro. É verdade, quatro: o árbitro deu início, avançou para Paddy Doherty, deu-lhe um murro e acabou com ele. Começava ali a nascer o fenómeno. O mesmo fenómeno que agora regressará ao boxe para o ‘Combate do Século’. Olhando para as casas de apostas, é de longe o underdog, aquele em quem ninguém acredita. Mas aqui também é bom recordar a forma como a Esquire começou um perfil em maio de 2015: “Grande parte das vezes, Conor McGregor ganha as suas lutas com os punhos”. Foi uma com o ombro, uma por submissão e as outras 15 ao soco. Mas regressemos aos primórdios do irlandês antes de entrar no UFC.
“Ele é one in a million. Ele tem aquela coisa que não se consegue ensinar às pessoas, quaisquer que sejam as pessoas que gravitem à tua volta. Tem isso, mais do que qualquer outro lutador que alguma vez tenha visto. Ele consegue fazer acreditar-te em tudo o que ele acredita”, comenta hoje Dana White, o responsável pelo UFC há duas décadas. Pormenor: contratou McGregor de boca, sem nunca o ter visto lutar, apenas porque lhe diziam bem de um miúdo irlandês que brilhava nos octógonos. Mal sabia ele que estava ali o homem que iria fazer história…
A 31 de dezembro de 2012, o triunfo com Ivan Buchinger no Cage Warriors 51, que lhe valeu a revalidação do título de pesos leves que tinha ganho seis meses frente a Dave Hill, foi mais do que a prenda ideal para fechar o ano: foi a chave que lhe abriu outras portas. Mas se a vida lhe corria bem no ringue, fora dele estava desempregado. Surgiu então o convite para participar num evento do UFC em Estocolmo, no início de abril. Não tinha sequer dinheiro para isso e valeram-lhe os 188 euros semanais de prestação como rendimento social de inserção para a viagem e restantes despesas.
Foi anunciado dois meses antes pelo UFC, mas só assinou contrato poucos dias antes do duelo. E as coisas nem começaram da melhor forma contra o americano Marcus Brimage. Em bom português, estava a levar mais do que dava. Até que percebeu o que teria de fazer para derrotar o seu opositor e não demorou a fazê-lo: 67 segundos depois do início, o árbitro foi obrigado a interromper o combate. Foi uma estreia de sonho que deu lugar aos sonhos típicos de um estreante. “Sinceramente, nem percebia muito bem o que se estava a passar mas tinha 60 mil dólares ali para mim. Pensava naquilo que ia gastar, um bom carro, alguns fatos à medida. Uma semana antes estava a ir levantar o subsídio e estava ali com 60 mil na mão…”, admitiu. Uma coisa é certa: ia fazer isto e aquilo, mas o que quis mesmo foi dar dinheiro à família para os pais se reformarem e poderem aproveitar de outra forma a vida.
Em agosto ia defrontar Andy Ogle, mas uma lesão de última hora do opositor colocou-o frente a frente com o também americano Max Holloway. Foi dos combates mais difíceis e equilibrados que teve e, como revelou mais tarde, a certa altura deixou mesmo de sentir o pé – tinha lesionado o ligamento cruzado anterior do joelho. Aguentou-se que nem um herói como se fosse uma luta de vida ou de morte, foi até ao final disfarçando as óbvias limitações e ganhou por decisão unânime. A seguir, foi operado e esteve dez meses afastado.
Regressou como novo em julho de 2014 na O2 em Dublin, perante quase dez mil espetadores que, na verdade, já eram mais fiéis do que outra coisa. E ganhou contra Diego Brandão, brasileiro que substituiu o lesionado Cole Miller. Ganhou outra vez, ganhou mais uma vez, ganhou de vez: o UFC tinha encontrado a sua estrela.
McGregor só voltaria a perder em março de 2016 frente a Nate Díaz (vingou-se do americano cinco meses depois e de certa forma limpou essa pequena nódoa no currículo). Foi o primeiro a ser campeão em simultâneo de duas categorias de peso distintas. E, em quatro anos, passou de alguém que tinha de ir levantar o subsídio de desemprego de 188 euros para ir trabalhar (por antagónico que pareça, foi isso que acabou por acontecer em março de 2013) para uma estrela internacional que recebe milhões por combate, tem uma vida de luxo e vai agora aventurar-se no maior desafio de sempre frente ao campeão invicto Floyd Mayweather pelas regras do boxe. Já agora, e quatro anos depois, vai receber 75 milhões de dólares por um combate que terá no máximo 36 minutos. Vamos balizar: são cerca de dois milhões de euros por minuto. Sim, o mesmo que recebia 188 euros de prestação social.
https://www.youtube.com/watch?v=hLAWQcqt1wU
“Salários: 27 milhões de dólares. Patrocínios: sete milhões. A estrela do UFC lutou duas vezes nos últimos 12 meses e foram dois dos três combates mais vendidos da história do UFC no pay-per-view. Quando derrotou Nate Díaz, atingiu um recorde de 1.6 milhões de compras; três meses depois, quando ganhou a Eddie Alvarez, foram 1.3 milhões”, detalha a Forbes. Sim, a Forbes. Conor tornou-se um milionário. E o treinador, que leva anos a estudar a física do corpo, ainda hoje não percebe como é que ele consegue bater com tanta força. “Tanta força que os murros dele não magoam a pele, cortam-na.”
McGregor é um lutador que tenta combinar técnicas de taekwondo, kickboxing, jiu-jitsu, capoeira e karaté (também costumava ver documentários de gorilas, leões e crocodilos para perceber como ganhavam vantagem numa luta), mas são aquelas velhas aprendizagens do boxe que lhe dão o toque de Midas para destruir o que toca e transformar os cacos em ouro. Também é aquela pessoa que tem um passaporte especial para alguns sapatos que gosta de usar sem meias, por serem de materiais proibidos em alguns países como os de pele de píton ou crocodilo. Mas é um lutador que tem o poder absoluto: “Ninguém me pode fazer nada, mas eu a lutar faço o que quiser”.
“Está sempre preparado para que depois não tenhas de te preparar”, argumenta como lema, desde que começou a entrar naquela sala de boxe em Crumlin, o fã de Bruce Lee e Muhammad Ali que recusou um acordo de sete dígitos para ser vilão no próximo filme do 007 (por causa dos compromissos desportivos, porque até acha uma certa piada ao cinema) e utiliza mais do que qualquer pessoa a palavra “inevitável” nas entrevistas.
As pessoas querem vir para mim, querem bater-me. Mas basicamente só quero que me deixem sossegado. Não vim para isto para ser alguém, vim para me sentir confortável em situações desconfortáveis (…) Trash talk? É um termo americano que me faz rir porque eu só digo verdades. Sou irlandês, estou a marimbar-me para os sentimentos deles”
Chegados a esta parte, somos obrigados a concordar e a utilizar a deixa. Era inevitável ter uma frota de carros onde se incluem um Cadillac Escalade, um BMW i8, um Lamborghini Aventador ou um Rolls-Royce Phantom Drophead. Era inevitável comprar o seu jato privado (onde uma vez postou uma imagem sua a ler um jornal ao contrário, o que era evitável). Era inevitável cair na tentação de começar também a tirar fotografias com maços de notas nas mãos. Era inevitável que tivesse extravagâncias como a ideia de adotar um animal exótico ou de vez em quando usar óculos não porque precise, mas porque acha que lhe ficam bem na cara. Era inevitável.
Porque Conor McGregor come quando quer, dorme quando quer, treina quando quer. Faz o que quer, quando quer, como quer, às vezes porque simplesmente quer. Tem uma confiança do tamanho do mundo, mas poucos no mundo acham que é arrogância. Ele é assim, ponto. E quando diz que não faz máquinas no ginásio, diz porque se considera uma máquina “e uma máquina não precisa de outras máquinas para trabalhar”.
E voltamos a dez palavras que não são as mais fortes que Conor McGregor disse nos quase dez anos de carreira mas que são “as” palavras: “In the boxing ring with my son. Life is good!”. Acompanhadas por uma imagem que vale por tudo.
https://www.instagram.com/p/BX4ugu-gyMj/?hl=en&taken-by=thenotoriousmma