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Se, quando montou o governo que iria liderar, Jair Bolsonaro tivesse um baralho de cartas na mão, era fácil perceber a que carta correspondia Sérgio Moro. O juiz, que encaixou no renovado Ministério da Justiça e da Segurança Pública, era o jóquer do recém-eleito Presidente brasileiro. Moro, até aí juiz federal responsável pela Operação Lava Jato, a maior investigação à corrupção alguma vez realizada no Brasil, representava o sucesso da condenação de Lula da Silva, a oposição ao Partido dos Trabalhadores e a perseverança contra as sucessivas condutas ilícitas denunciadas nos executivos do país. Tudo isto concentrado numa única pessoa. Tudo isto concentrado num único superministro.
Sergio Moro demite-se em protesto contra Jair Bolsonaro, que fica agora mais isolado do que nunca
Com o passar dos meses, porém, Sérgio Moro acumulou derrotas no Congresso, somou desavenças públicas com Jair Bolsonaro e não conseguiu implementar as medidas que havia anunciado como cruciais na altura em que aceitou o convite para integrar o governo. O limite foi atingido esta sexta-feira, com a exoneração do diretor-geral da Polícia Federal por parte do Presidente, nas costas de Moro e de forma unilateral. Em plena crise pandémica, o ministro da Justiça e da Segurança Pública demitiu-se, denunciou a “interferência política” de Bolsonaro e recordou as promessas de “liberdade total” que lhe foram feitas nos primeiros dias do governo.
Bolsonaro afastou alguém que era cada vez mais incómodo no executivo e que lhe fez frente nas decisões mais recentes sobre a resposta à Covid-19. Além disso, afastou o ministro mais popular do governo e polarizou opiniões, cavando cada vez mais um fosso à sua volta. Moro sai de acordo com os valores que sempre propagou, de integridade e cumprimento da lei, e deixa um cargo ao qual disse várias vezes não estar “apegado”. Resta saber quem será, de entre os dois, a carta que fica fora do baralho.
O superjuiz tornado superministro que ia ter “liberdade total para trabalhar pelo Brasil”
“Como gostamos de futebol, temos no Brasil uma expressão segundo a qual alguém diz que está cansado de levar bola nas costas”. Foi com esta frase, com esta expressão, que Sérgio Moro justificou em 2018 a decisão de interromper a carreira de juiz para aceitar o convite de Jair Bolsonaro e integrar o governo brasileiro. Moro, juiz federal responsável pela Operação Lava Jato e figura maior do processo judicial que condenou Lula da Silva, havia sido nos dois anos anteriores a cara da luta contra a corrupção na política brasileira e beneficiava de uma popularidade acima da média — comprovada através de manifestações públicas de apoio, entre os opositores do Partido dos Trabalhadores (PT) e a população civil, onde as camisolas com a inscrição “Somos Todos Moro” se multiplicavam.
Em 2018, a decisão de Jair Bolsonaro de convidar Sérgio Moro para assumir o Ministério da Justiça e da Segurança Pública — tornando-o um superministro, como foi rapidamente apelidado, já que as duas pastas estavam separadas nos executivos anteriores — foi encarada como uma jogada de mestre. Moro era a personalização da oposição e da insatisfação com Lula da Silva e o PT, um sentimento responsável pela eleição de Bolsonaro. Era, por isso, o aliado perfeito de que o recém-eleito Presidente precisava para declarar guerra à corrupção na política do Brasil. A confiança de Bolsonaro em Moro, naqueles idos de 2018, parecia ser infindável. E era precisamente isso que agradava aos eleitores: ter Sérgio Moro, o homem que condenou Lula da Silva, com liberdade total para erradicar de vez as condutas ilícitas que assombram o poder executivo brasileiro há vários anos.
“Ele vai indicar todos os que virão a compor o primeiro escalão [do ministério]. Inclusivé o chefe da Polícia Federal. Mesmo que viesse a mexer com alguém da minha família no futuro, não importa. Eu disse a ele. É liberdade total para trabalhar pelo Brasil”, afirmou Bolsonaro em entrevista à TV Record, na altura da indicação de Moro. No que toca à popularidade e ao impacto positivo junto dos cidadãos, o juiz não desiludiu: tornou-se, de longe, o ministro mais popular do governo de Bolsonaro e até superou as taxas de aprovação do próprio Presidente. Segundo o Datafolha, 53% dos brasileiros consideravam no passado mês de dezembro como boa/ótima a gestão de Moro na Justiça, enquanto que o mesmo indicador em relação a Bolsonaro chegava apenas aos 30%.
Sérgio Moro apontou baterias ao combate à corrupção e umas das primeiras decisões que tomou, tal como o Presidente havia indicado, foi escolher o diretor-geral da Polícia Federal (PF) — ainda antes de Jair Bolsonaro tomar posse. O nome selecionado foi Maurício Valeixo, formado em Direito e com carreira na PF. Os dois tinham ficado bastante próximos durante o caso Banestado, em 2003, uma investigação a um esquema de lavagem de dinheiro que envolvia o banco estadual do Paraná. A operação acabou por chegar a um beco sem saída e terminou sem condenações, mas os processos, os métodos e a experiência serviram de embrião à Lava Jato. Foi aí que se voltaram a encontrar: Moro como juiz federal responsável pela investigação, Valeixo à frente da Superintendência no Paraná, onde uma das tarefas que acabou por assumir foi a coordenação dos trâmites para a detenção de Lula da Silva, em abril de 2018.
Quando precisou de um diretor-geral para a Polícia Federal, Sérgio Moro escolheu Maurício Valeixo. Mais do que um homem de confiança e um amigo pessoal, Moro escolhia um braço direito. E foi esse braço direito que acabou por desencadear a saída do ministro da Justiça do governo de Jair Bolsonaro.
Brasil. Juiz Sérgio Moro aceita ser ministro da Justiça de Bolsonaro
As desavenças entre Presidente e ministro sobre a Polícia Federal começaram ainda em agosto. Nessa altura, de forma unilateral, Bolsonaro anunciou uma troca na Superintendência do Rio de Janeiro. A ingerência do Presidente na Polícia Federal ficava confirmada, apesar de que, segundo o jornal Folha de S. Paulo, o nome do sucessor tenha sido escolhido pelo diretor-geral Maurício Valeixo. A alteração, porém, foi unicamente motivada pelo Presidente — algo atípico, já que a troca e a substituição de superintendentes é normalmente competência exclusiva do diretor-geral da PF. “Todos os ministérios são passíveis de mudança. Vou mudar, por exemplo, o superintendente da Polícia Federal no Rio de Janeiro. Motivos? Gestão e produtividade”, atirou Bolsonaro. Os jornais brasileiros, porém, escrevem que os motivos foram outros.
Naquela altura, a Polícia Federal do Rio tinha em mãos o caso que envolve Fabrício Queiroz, um ex-assessor de Flávio Bolsonaro, senador pelo Rio e filho do Presidente. O objeto da investigação das autoridades era a movimentação suspeita de 1,2 milhões de reais da conta de Queiroz, entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017, e o caso acabou por afetar o próprio Flávio Bolsonaro. A mudança na Superintendência do Rio de Janeiro não se confirmou, para desconforto do Presidente, que garantiu desde logo que se não conseguisse trocar o superintendente, “trocava o diretor-geral”.
“Quem manda sou eu. Quero deixar bem claro. Eu dou liberdade para os ministros todos, mas quem manda sou eu. Se eu trocar hoje, qual é o problema? Está na lei que sou eu que indico e não o Sérgio Moro. E ponto final”, disse Jair Bolsonaro na altura, arruinando a ideia de que o ministro da Justiça teria carta branca para tomar decisões. Durante todo este processo, com o Presidente a efetuar tentativas bastante claras de mexer na cúpula da Polícia Federal, Sérgio Moro manteve-se atipicamente silencioso. E a ausência de intervenções por parte do ministro deixava antecipar que estaria descontente com todo o processo. Moro quebrou o silêncio na abertura de um seminário sobre corrupção do Ministério da Justiça, ao saudar particularmente Maurício Valeixo e referir que o diretor-geral estava a fazer um “trabalho extraordinário”. Valeixo sobreviveu à crise de agosto — mas a ferida entre Presidente e ministro, agravada por dezenas de outros episódios, estava definitivamente aberta.
Esta quinta-feira, Jair Bolsonaro informou Sérgio Moro de que iria exonerar Maurício Valeixo do cargo de diretor-geral da Polícia Federal. Os rumores de que esta tinha sido a gota de água para o ministro da Justiça rapidamente correram mundo: Moro teria pedido de imediato a demissão a Bolsonaro e já teria informado os mais próximos da decisão tomada. O G1, porém, apresenta uma versão diferente. Incomodado com a intervenção direta do Presidente num organismo que é responsabilidade exclusiva do ministério que encabeçava, Moro terá colocado como condição para permanecer no executivo a reserva total e pessoal do direito de escolher o sucessor de Valeixo. Jair Bolsonaro aceitou.
Na manhã desta sexta-feira, porém, foi publicado no Diário Oficial da União um decreto que confirmava a exoneração de Maurício Valeixo. A comunicação, com a assinatura eletrónica tanto de Bolsonaro como de Moro, indica que o até aqui líder da Polícia Federal saiu “a pedido” do próprio: algo que o ministro, segundo disse na conferência de imprensa em que anunciou a demissão, sabe ser falso. Surpreendido, ainda a contar com o acordo feito no dia anterior com Bolsonaro, sem ter assinado oficialmente o decreto de exoneração, Moro demitiu-se. E concluiu dessa forma um afastamento do Presidente que já vinha sendo notório há vários meses.
As derrotas que se podem tornar vitórias, uma a uma: do pacote anticrime esvaziado à perda do controlo das atividades financeiras
Logo em janeiro de 2019, nos primeiros meses do mandato, Sérgio Moro sofreu a primeira derrota. Uma das medidas iniciais de Jair Bolsonaro foi alterar o decreto que facilita as regras para um cidadão brasileiro obter posse de arma de fogo e permite guardar uma arma em casa ou num estabelecimento comercial. O novo texto foi redigido, numa primeira fase, pelo Ministério da Justiça, sob a supervisão de Moro, e concluído pela Casa Civil, na altura chefiada por Onyx Lorenzoni. A forma final do decreto divergiu em pontos fulcrais daquilo que havia sido delineado pelo ministério de Moro — e uma das sugestões do ministro, que reduzia para duas as armas que cada cidadão podia possuir (a lei atual diz que são quatro), ficou de fora.
Algo semelhante aconteceu com o pacote anticrime, que era um dos pontos considerados como cruciais para Sérgio Moro. Desenhado em janeiro e entregue em fevereiro, só foi aprovado pelo Congresso em dezembro de 2019, depois de perder alguns dos principais tópicos. Entre eles, a mudança nos critérios de “excludente de ilicitude”, que isentaria de punição os abusos policiais que ocorressem a partir de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”, mas também o chamado plea bargain, um acordo judicial em que a confissão pode reduzir a pena do condenado, e a condenação em segunda instância. Este último fator, barrado pelo Supremo Tribunal de Justiça, previa a prisão de um suspeito logo após a condenação em segunda instância — e a sua ausência acabou por culminar na libertação de Lula da Silva. O pacote integrava a lista de medidas para cumprir nos 100 primeiros dias de governo Bolsonaro mas o Presidente, ainda antes de ratificar o texto totalmente alterado, considerou que não existia qualquer urgência.
Em fevereiro, Sérgio Moro viu-se forçado a recuar na nomeação da cientista política Ilona Szabó para um cargo no Conselho Nacional de Política Criminal e Domiciliária. A indicação de Szabó criou muito burburinho junto dos apoiantes de Jair Bolsonaro, já que a politóloga havia confirmado uma dura oposição à flexibilização da posse de arma e ao projeto de ampliação do direito à legítima defesa que estava no projeto de Moro. Ilona Szabó saiu, sob críticas de Bolsonaro, e o então ministro da Justiça emitiu uma nota onde pedia desculpa à especialista e garantia que a havia indicado pelos “relevantes conhecimentos na área de segurança pública”. Sérgio Moro não chegou a nomear um substituto.
Em agosto do ano passado, entre a polémica do vai ou não vai mudar a Superintendência do Rio de Janeiro e vai ou não vai demitir o diretor-geral da Polícia Federal, a autoridade de Sérgio Moro sofreu outro duro golpe. Além da aglomeração das pastas da Justiça e da Segurança Pública, o juiz tinha ficado com o cognome de superministro por também assumir o Conselho de Controle das Atividades Financeiras, conhecido como COAF, até aí na Pasta da Economia. O COAF, criado em 1998, é um órgão de inteligência financeira que investiga operações suspeitas. Ora, nesse mês, o Congresso decidiu restituir o COAF à Economia, reduzindo os poderes de Moro. Entretanto, o Conselho foi rebatizado como Unidade de Inteligência Financeira e acabou nas mãos do Banco Central — de cuja liderança Roberto Leonel, aliado do ministro, foi destituído. Nesta altura, as vozes mais próximas de Moro mostravam-se crescentemente “perplexas” com a mudança de tom e de atitude de Jair Bolsonaro em relação ao ministro.
No passado mês de janeiro, o Presidente brasileiro abriu a porta à recriação do Ministério da Segurança Pública. “Se for criado, aí ele [Moro] fica na Justiça. É o que era inicialmente. Tanto que, quando ele foi convidado, não existia ainda essa modulação de fundir com o Ministério da Justiça”, disse Bolsonaro à partida para uma viagem à Índia. Na verdade, o Presidente brasileiro estava a contradizer-se: em novembro de 2018, quando Moro aceitou o convite, tinha dito que “a questão da Segurança ir para a Justiça” já tinha sido falada, “assim como as nomeações”. Já na Índia, Bolsonaro recuou na decisão e a Segurança Pública manteve-se na Justiça e sob a alçada de Sérgio Moro. Ainda assim, o episódio não deixou de ser mais uma ameaça ao poder do ministro, que ao perder a Segurança Pública perderia também a sua principal bandeira até então — a queda da taxa de homicídio no Brasil, uma tendência que tinha começado ainda na administração de Michel Temer e que acelerou com o governo de Bolsonaro.
A principal cisão entre Jair Bolsonaro e Sérgio Moro, porém, aconteceu no verão passado, quando a publicação online The Intercept divulgou mensagens trocadas entre o ministro da Justiça e da Segurança Pública e outros procuradores da Operação Lava Jato.
A divulgação das mensagens da Lava Jato, que disse não serem “nada de mais”
Em junho de 2019, a publicação online The Intercept divulgou uma série de mensagens trocadas nos últimos anos entre vários procuradores da taskforce da Lava Jato e Sérgio Moro. As comunicações, a que o site garantiu ter tido acesso através de fonte anónima, indicavam que o ministro da Justiça poderia ter interferido na investigação enquanto era o juiz responsável do caso. À data das mensagens, trocadas entre 2014 e 2019 na aplicação Telegram, Moro era juiz da 13.ª Vara Federal de Curitiba. Na altura, a Folha de S. Paulo adiantava que dificilmente as conversas eram fabricadas, já que vários jornalistas encontraram mensagens que eles próprios trocaram com os procuradores nos últimos anos.
The Intercept: Juiz Sérgio Moro montava operações com procuradores
No amplo conjunto de conversas divulgadas, ficava patente uma alegada colaboração de Sérgio Moro com Deltan Dallagnol, o coordenador da equipa do Ministério Público. O juiz indicou uma testemunha, antecipou pelo menos uma decisão e até sugeriu uma resposta ao “showzinho” da defesa de Lula da Silva. Também em conversa com Dallagnol, Moro sugeriu melhorar o desempenho de uma das procuradoras durante os interrogatórios, indicação que o coordenador acabou por comunicar a toda a equipa, onde foi unânime a opinião de que Laura Tessler não deveria participar na audição de Lula da Silva. A procuradora acabou mesmo por não intervir na sessão onde o antigo Presidente brasileiro foi questionado. Nas mensagens, também é possível perceber que o ministro se opôs às investigações ao ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso, por recear que estas pudessem alienar “alguém cujo apoio é importante”. Por fim, terá sido também Moro a aconselhar Deltan Dallagnol a incluir uma prova específica contra um dos acusados da Lava Jato.
Em reação, o ministro não negou a existência das mensagens, disse que não tinha visto “nada de mais” e que não orientou de forma nenhuma o Ministério Público. Acrescentou, porém, que o facto de ter dado pistas sobre uma investigação foi um simples “descuido”. “Houve uma invasão criminosa de celulares [telemóveis] de procuradores, para mim é um facto bastante grave ter havido essa invasão e essa divulgação. Quanto ao conteúdo, no que diz respeito à minha pessoa, não vi nada de mais. O juiz conversa com procuradores, o juiz conversa com advogados, o juiz conversa com polícias, é normal. Está a haver muito sensacionalismo em cima dessas supostas mensagens”, garantiu Sérgio Moro.
Mais tarde, em declarações voluntárias nas Comissões de Constituição e Justiça do Senado e da Câmara dos Deputados — para se antecipar a uma chamada mais do que certa –, sublinhou que sempre agiu “conforme a lei”. “Não tenho nenhum apego pelo cargo em si. Se houver alguma irregularidade da minha parte, eu saio”, atirou.
No seguimento da divulgação das mensagens, que colocavam em causa a imparcialidade de Sérgio Moro na Operação Lava Jato, Jair Bolsonaro defendeu a integridade do ministro da Justiça mas deixou uma ressalva. “Eu não sei das particularidades da vida do Moro. Eu não frequento a casa dele. Ele não frequenta a minha casa. Mas, mesmo assim, meu pai dizia para mim: ‘Confie a 100% só em mim e na sua mãe'”, atirou o Presidente brasileiro, salientando que não colocava toda a confiança em Sérgio Moro.
Mensagens privadas revelam que Sérgio Moro trocava impressões com procurador da Lava Jato
Depois de a Polícia Federal prender quatro suspeitos de terem hackeado autoridades, e cujo envolvimento nas mensagens divulgadas pelo The Intercept nunca foi comprovado, Moro garantiu que as informações obtidas de forma ilegal pelo grupo seriam destruídas. Um episódio que acabou por culminar noutra derrota para o ministro, já que tanto a Polícia Federal como Jair Bolsonaro afirmaram que essa decisão não pertencia a Sérgio Moro. “A decisão de possível destruição não é dele. Cada um de nós pode pensar e até torcer por alguma coisa. O Moro não fará nada que a lei não permita fazer”, atirou o Presidente. Ainda assim, nessa mesma altura, Bolsonaro garantiu que Moro estava “zero estremecido” no cargo.
Bolsonaro isolado, movimento pró-impeachment engrossado e apoio dos militares em risco. Moro 2022?
Até que chegamos novamente a esta sexta-feira e à demissão de Sérgio Moro. Segundo a Folha de S. Paulo, Jair Bolsonaro decidiu exonerar o diretor-geral da Polícia Federal devido às investigações que estão a decorrer e que podem envolver pessoas do círculo mais próximo do presidente, incluindo um dos filhos. O primeiro destes casos está relacionado com uma campanha de notícias falsas propositadamente dirigidas contra juízes do Supremo Tribunal Federal onde, segundo o jornalista Vicente Nunes do Correio Braziliense, o vereador Carlos Bolsonaro está entre um dos investigados. De acordo com o jornal, o esquema será financiado por empresários próximos do Presidente brasileiro e o filho Carlos é alegadamente “o mentor de todos os ataques que foram disparados contra o Supremo e contra o Congresso”.
Já o segundo caso diz respeito às manifestações realizadas no domingo, dia 19 de abril, onde foram feitos apelos a uma intervenção militar, ao fim do confinamento motivado pela pandemia de Covid-19 e à reabertura da atividade económica. Jair Bolsonaro esteve presente e fez um discurso onde disse não querer “negociar nada” mas sim “ação pelo Brasil”. No seguimento da manifestação, o procurador-geral da República pediu ao Supremo Tribunal Federal que investigue se o protesto violou a Lei da Segurança Nacional e se foram praticados “atos contra o regime da democracia brasileira por vários cidadãos, inclusivé deputados federais”. Segundo a Folha de S. Paulo, a Polícia Federal, que está agora a coordenar a investigação, visa não só dois deputados federais com ligações a Bolsonaro como também empresários próximos do presidente, que até poderão ter financiado a manifestação.
Bolsonaro discursa para centenas de apoiantes que pedem intervenção militar
Ou seja, segundo concluem os jornais brasileiros, Jair Bolsonaro quer ter acesso às investigações da Polícia Federal e conhecer tudo aquilo em que a autoridade está a trabalhar. Algo que não lhe era concedido por Maurício Valeixo, exonerado esta sexta-feira, e que Sérgio Moro denunciou na conferência de imprensa em que oficializou a demissão. “O Presidente disse-me mais do que uma vez, expressamente, que queria ter uma pessoa do contacto pessoal dele, a quem pudesse ligar, de quem pudesse colher informações e relatórios de informações”, começou por dizer o ministro demissionário. “Não é o papel da PF prestar esse tipo de informação. As investigações têm de ser preservadas. Imagine-se se durante a própria Lava Jato, um ministro, o diretor-geral e a presidente Dilma ficassem ligando ao superintendente em Curitiba [o cargo que Moro ocupava] para colher informações sobre as investigações em andamento”, concluiu, terminando com a ideia de que existiu “interferência política na Polícia Federal” por parte de Bolsonaro.
O Estadão acrescenta ainda que a decisão de Sérgio Moro, embora provocada pela exoneração na Polícia Federal e engrossada pelas consecutivas derrotas desde o início do mandato, ganhou ímpeto nas últimas semanas, já durante a crise da Covid-19. O ministro da Justiça discordou da forma como Jair Bolsonaro tem reagido ao novo coronavírus, tendo uma opinião totalmente contrária quanto à necessidade do isolamento social, e mostrou-se contra a demissão de Luiz Henrique Mandetta, até aqui ministro da Saúde, em plena crise pandémica. A mulher de Sérgio Moro, a advogada Rosângela Wolff Moro, publicou nas redes sociais uma mensagem de apoio ao antigo ministro, com a hashtag #SomosTodosMandetta. A publicação, porém, foi apagada pouco depois de ser tornada pública.
Apesar de alguns elementos do governo de Jair Bolsonaro se terem empenhado na tarefa de demover Sérgio Moro, a verdade é que o Presidente brasileiro perdeu o seu ministro mais popular e parece até ter feito tudo para o afastar propositadamente sem ter de o demitir pessoalmente. “Moro construiu um património fortíssimo à frente da Lava Jato. E Bolsonaro surfou politicamente nesse combate à corrupção liderado pelo então juiz. Agora, com o provável rompimento, será possível ver quem é o verdadeiro dono desse capital político”, escreveu esta sexta-feira Marcelo de Moraes, jornalista do Estadão, ainda antes do anúncio oficial da demissão.
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O jornalista abre a porta a uma possibilidade que está a ser explorada por outros jornais brasileiros: a eventualidade de Jair Bolsonaro ter começado a olhar para Sérgio Moro como um eventual adversário nas eleições de 2022, face à popularidade do juiz, e ter decidido esvaziá-lo por completo de poder. Resta saber se, em plena pandemia, com o surgimento de um movimento pró-impeachment devido à presença nas manifestações de domingo e mais isolado do que nunca, Jair Bolsonaro não terá falhado na premissa que indica que é necessário manter os amigos por perto e os inimigos ainda mais perto. Entretanto, a Folha de S. Paulo avança que os militares também não foram informados da exoneração na Polícia Federal, ficaram descontentes com a saída de Moro e surpreendidos com as acusações do agora ex-ministro e estão a ponderar a retirada de apoio ao Presidente — algo que, escreve o jornal, poderia culminar na renúncia ao mandato de Bolsonaro.
Sérgio Moro, por seu lado, perde por agora a possibilidade de ser indicado para o Supremo Tribunal Federal, uma ambição assumida pelo próprio e que foi grande parte da razão de ter aceitado o convite para integrar o governo. Se vai ou não candidatar-se às eleições em 2022, só o futuro o poderá dizer: pelo meio, engrossou os pedidos de impeachment, criticou Bolsonaro sem reservas e manteve-se fiel àquilo que sempre disse ser a sua intenção. Mas por agora, já sabe o que fazer. “Vou começar a empacotar as minhas coisas”, disse o ministro demissionário no final da conferência de imprensa em que anunciou formalmente a decisão.