Mário Centeno reconhece que a inflação é um fenómeno “complexo”, “difícil de avaliar”. Um “desafio para os bancos centrais” que está a ser objeto de estudo mais aprofundado nas publicações do Banco de Portugal, que lidera. À luz dos dados atuais, o regulador acredita que a inflação não será mais do que temporária — mesmo apesar de já estar a subir desde o final do ano passado, antes da guerra na Ucrânia. Mas há neste indicador um certo “efeito estrutural”, ligado à transição energética. E é nesse âmbito que Centeno arrisca uma receita: “Adaptar, mesmo que temporariamente, o nosso consumo e decisões a este precioso sinal que as economias nos dão, o preço”.

Como? Uma pista veio logo na intervenção inicial, quando Centeno refletiu sobre as causas do aumento da inflação: aproveitar esta altura para adaptar comportamentos que contribuam para a transição energética — que “tem também um papel no valor da inflação que hoje observamos”.

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“Parte destes efeitos [na inflação] são efeitos estruturais de uma transição climática que tem impacto nas nossas vidas, mas é um objetivo a que todos devemos estar comprometidos. E essa transição tem também um papel no valor da inflação que hoje observamos. Ela é também transitória, ainda que mais longa, e temos de a refletir nas nossas decisões de consumo e produção se quisermos ser consequentes com os objetivos que traçamos”, disse Mário Centeno, numa conferência de imprensa para apresentar o boletim económico sobre a evolução da economia em 2021 (mas que acabou por focar-se em grande parte na inflação deste ano).

Significa isto que, para Centeno, devemos reduzir o consumo? Ou direcioná-lo para padrões mais sustentáveis? À pergunta dos jornalistas, o governador não respondeu diretamente. Já questionado sobre se quis com isto deixar algum “alerta” para a subida de preços, o também economista tentou explicar melhor o sentido das palavras.

Diz Centeno que os preços são um “sinal” que os portugueses devem ter em conta nos seus consumos. “Devemos estar sempre muito atentos àquilo que os preços nos sinalizam nas nossas tomadas de decisão. Foi nesse âmbito que as palavras foram proferidas. A transição climática — que tem um pacote de apoio muito significativo nos PRR (Planos de Recuperação e Resiliências) dos países europeus — é uma transformação estrutural no nosso comportamento, na forma como produzimos e consumimos, como geramos energia para todas estas atividades, desde as nossas deslocações ao trabalho, à forma como temos ares-condicionados e fábricas a funcionar. É absolutamente inevitável que tenhamos consciência deste sinal que os preços nos dão“, acrescentou.

Pouco depois, viria a dizer que temos de estar “dispostos a adaptar, mesmo que temporariamente, o nosso consumo e decisões” aos preços, pelo que “qualquer interferência nos mecanismos de formação dos preços pode ter impacto na forma como se desenrola a transformação económica”. Centeno deixa mesmo um aviso ao governo, ainda que indireto: se por um lado devemos “encontrar mecanismos de acomodação temporária” destes fenómenos inflacionistas, por outro lado “seria um erro” querer “esconder” essa pressão com “medidas que possam prejudicar essa mesma transição [climática]”.

Centeno repete que defende “medidas temporárias” para “choques temporários”. “A transição climática tem custos energéticos significativos e a resposta que temos preparada para isso está no PRR (…). Não pode ser a política fiscal nem políticas orçamentais do lado da despesa a dar essa resposta estrutural. São outros mecanismos que, felizmente, estão disponíveis.”

Cuidado com as atualizações salariais, diz Centeno

A sessão era de apresentação do boletim económico sobre a evolução da economia em 2021, mas logo na intervenção inicial, Mário Centeno não fugiu ao tema do dia: a inflação. Até porque ela já vinha a acelerar antes da guerra, no final de 2021. Aliás, sintetiza o boletim do Banco de Portugal, subiu de valores em torno de 0% no início de 2021 para 2,8% em dezembro. “(…) o aumento da inflação não se cingiu aos itens habitualmente mais voláteis” e a subida poderá “prolongar-se”, indica mesmo a instituição.

As pressões externas sobre os preços dos bens “aumentaram ao longo de 2021”, refletindo a “subida forte e generalizada dos preços da energia e das matérias-primas internacionais”, com destaque para o petróleo e o gás natural, e as disrupções nas cadeias de distribuição mundiais sobre os preços de diversos bens e os custos de transporte. “A transmissão aos preços nos consumidores foi visível na componente energética, mas também nos preços dos bens industriais não energéticos”, lê-se.

Por isso, na intervenção inicial, Centeno apelidou a subida dos preços como um fenómeno “pandémico”, com “raízes” na forma como a economia portuguesa recupera da crise provocada pela Covid-19. A fase da recuperação, explica, é caraterizada por certas “tensões” — que considera temporárias —, como as “dificuldades de oferta nalguns setores que alimentam esta dinâmica inflacionista”, numa altura em que a procura renasce.

A pandemia trouxe ainda um “deslocamento” da procura pelos serviços para os bens duradouros (aqui se incluem os carros ou mobiliário, por exemplo), “o que criou tensões inflacionistas do lado da procura de bens”. “Já estava a acontecer e vai continuar a acontecer. Lisboa é evidência disto, a procura vai deslocar-se para os serviços de novo e, em particular, o turismo vai ser o motor da continuação da recuperação económica”, atira Centeno. A economia ainda não estava recuperada quando outro choque, causado pela guerra na Ucrânia, chegou. “Estamos a sobrepor choques da oferta a choques da oferta, que é um fenómeno muito pouco frequente.”

O Banco de Portugal vê todas estas causas como contributos temporários para a inflação. E mais: são todas externas, defende. “Continuamos a não identificar nenhuma natureza interna endógena ao fenómeno de formação dos preços, que não sejam estas raízes temporárias, por exemplo, a nível salarial ou no comportamento das empresas”, disse. O boletim concretiza este argumento: por exemplo, as remunerações por trabalhador em 2021 subiram 3,5%, menos do que antes da pandemia (4,3% em média, em 2018-2019).

É por isso que Centeno quer medidas de política temporárias para um problema que acredita ser temporário, o que exclui aumentos salariais em linha com a inflação. Questionado sobre se o governo devia aumentar salários ou controlar preços, o governador do Banco de Portugal diz que é preciso ter “muita cautela na avaliação daquilo que são as atualizações salariais”. A argumentação de Centeno é que os salários já estiveram a subir mais do que a inflação. E usa um exemplo relativamente ao período em que foi ministro das Finanças: desde 2015, a inflação subiu “em termos compostos” abaixo de 5% e os salários médios registados na Segurança Social cresceram “muito próximo de 20%” (Centeno não refere, porém, que neste efeito está incluída a subida do salário mínimo, que se tem aproximado do salário médio).

Além disso, o Banco de Portugal acredita que a inflação atual — que em abril acelerou para 7,2%, o valor mais alto em 29 anos — possa estar a atingir “o ponto mais alto de um fenómeno inflacionista”.

Inflação acelera para 7,2% em abril, o valor mais alto em 29 anos

“Esta é uma avaliação [dos salários] que não pode ser feita apenas no momento em que estamos a viver. (…) Neste momento, é importante ter muita cautela na avaliação daquilo que são as atualizações salariais porque esta questão de reforço do rendimento disponível não é uma matéria apenas para um semestre ou um ano, é uma matéria mais longa”, defendeu.

Como já tinha defendido, Centeno diz que é preciso, ao invés, usar os “buffers” (folgas) acumuladas, como a poupança dos portugueses, que ainda assim diminuiu em 2021 face a 2020, mas está acima do pré-pandemia.

O governador do Banco de Portugal não acredita que o regresso das moratórias seja uma opção. “Não estamos com problemas de liquidez que justifiquem este tipo de medidas e considero que existem mecanismos do ponto de vista orçamental que, de forma temporária, atuem quando e se for considerado necessário”.