Já há muito tempo que Portugal não tinha um arguido mediático em fuga. Os casos mais conhecidos remontam aos anos 90 do século passado, como o corretor Pedro Caldeira ou Zezé Beleza (o irmão da ex-ministra Leonor Beleza), sendo que na década de 2000 ocorreram fugas como as de Fátima Felgueiras para o Brasil e de João Vale e Azevedo para Londres.
O caso da fuga de João Rendeiro acaba por quebrar com a prática de cooperação e o respeito pela Justiça demonstrada por condenados recentes como Armando Vara (caso Face Oculta), Duarte Lima (caso BPN/Homeland), Isaltino Morais (caso contas na Suíça), Paulo e José Penedos e Domingos Paiva Nunes (caso Face Oculta), entre outros.
Afinal, o que aconteceu? O Observador avança com 8 perguntas e respostas para explicar a fuga de João Rendeiro.
João Rendeiro fugiu mesmo?
Sim. O ex-presidente do Banco Privado Português (BPP) confirmou isso mesmo esta terça-feira em comunicado: “Estou no estrangeiro e não vou voltar”. Significa isto que Rendeiro não pretende cumprir uma decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa que ordena a sua presença em Lisboa no dia 1 de outubro para ser interrogado no âmbito da alteração das medidas de coação promovidas pelo Ministério Público (MP) no processo do chamado caso dos prémios. Para mudar as medidas de coação, o MP tinha invocado perigo de fuga de Rendeiro.
Trata-se de um processo no qual João Rendeiro foi condenado a uma pena de 10 anos de prisão efetiva por alegadamente se ter apropriado, juntamente com os ex-administradores Fernando Lima, Salvador Fezas Vital e Paulo Guichard, de cerca de 30 milhões de euros do BPP em prémios e outro tipo de remunerações sem a aprovação dos acionistas do banco.
Quantas penas de prisão efetivas estão pendentes? E alguma já transitou em julgado?
O caso BPP é constituído essencialmente por três processos criminais + 1. Os primeiros três prendem-se com acusações deduzidas pelo Ministério Público pela prática de alegados crimes na gestão daquele pequeno banco privado.
O único caso que já transitou em julgado é aquele relacionado com a falsificação da contabilidade do banco. João Rendeiro foi condenado a uma pena de prisão efetiva de cinco anos e oito meses pela Relação de Lisboa. A condenação é de julho de 2020, tendo a mesma transitado em julgado no dia 17 de setembro de 2021.
Com João Rendeiro em Londres, Constitucional confirma trânsito em julgado da pena de prisão
A segunda condenação prende-se com um caso de abuso de confiança, fraude fiscal e branqueamento de capitais no qual Rendeiro foi condenado a uma pena de prisão de 10 anos pelos crimes de abuso de confiança, fraude fiscal e branqueamento de capitais por, em conjunto com os ex-administradores Fernando Lima, Salvador Fezas Vital e Paulo Guichard, ter alegadamente desviado entre 2003 e 2008 cerca de 30 milhões de euros do BPP em prémios e outro tipo de remunerações sem a aprovação dos acionistas do banco.
O terceiro processo resultou numa absolvição de João Rendeiro e de outros ex-gestores do BPP em primeira instância e confirmada pela Relação de Lisboa. Trata-se uma acusação pelo crime de burla qualificada de um número alargado de clientes do BPP.
Finalmente, há um quarto processo (o processo + 1 acima referido) que também diz respeito a uma alegada burla qualificada a um ex-cliente do BPP e que terminou esta terça-feira com uma condenação de Rendeiro a uma pena de prisão efetiva de três anos e meio.
Se uma sentença já transitou em julgado, como foi possível que o arguido tenha fugido?
A resposta é um pouco complexa. Vamos por partes.
O nosso processo penal tem várias pedras basilares e uma delas é a presunção da inocência. Significa isto que um réu presume-se inocente até uma eventual condenação transitar em julgado. O que faz com que os mandados de condução à prisão para cumprimento da pena só sejam emitidos após terminarem todas as hipóteses de recurso — ou após os arguidos abdicarem de tais recursos.
Ora, João Rendeiro comunicou aos autos de todos os processos em que está envolvido de que iria viajar para Londres de 13 a 30 de setembro, tendo deixado os contactos da Embaixada de Portugal em Londres para poder ser contactado. A comunicação foi feita apenas 24 horas depois de Rendeiro ter aterrado na capital do Reino Unido.
Contudo, o trânsito em julgado da condenação no caso da falsificação da contabilidade do BPP só ocorreu no dia 17 de setembro — cerca de cinco dias antes de os autos contra Rendeiro terem sido encerrados.
Um arguido pode deixar a morada de uma embaixada como ponto de contacto?
Não. Certo é, contudo, que João Rendeiro já tinha viajado para a Costa Rica no verão, tendo, na altura, dado a morada do Consulado de Portugal como ponto de contacto com os autos.
É possível que um arguido com pena de prisão pendente (mas não transitada em julgado) possa viajar regularmente para o estrangeiro?
Sim. Como o nosso sistema penal assenta na presunção da inocência, e como o João Rendeiro apenas está sujeito a Termo de Identidade e Residência, a medida de coação mínima, o ex-banqueiro era (e ainda continua a ser no momento em que escrevermos este artigo) livre de poder viajar para qualquer país do mundo.
Isto é, apenas tem de informar os processos em que é arguido sobre o destino e uma morada do local onde esteja hospedado — o tal Termo de Identidade e Residência. Rendeiro não fez bem isso, tendo dado a morada de postos diplomáticos ou consulares para ser contactado.
Ora, “é inequívoco que uma representação consular ou uma embaixada não são lugares de livre disposição e fruição pelos cidadãos, sendo portanto desprovido de razoabilidade que o arguido as indique como constituindo o seu paradeiro”, lê-se no despacho da juíza que ordenou a presença de Rendeiro em Lisboa no próximo dia 1 de outubro.
Resumindo e concluindo: qualquer arguido que esteja sujeito ao Termo de Identidade e Residência apenas apenas está obrigado a comunicar aos autos a sua localização quando se ausenta da sua área de residência por um período superior a cinco dias. Se o fizer, pode viajar para onde entender. Desde que, claro, regresse quando convocado pela justiça.
Havia alguma hipótese de evitar a fuga?
Não é fácil evitar uma fuga num sistema penal que assenta na presunção da inocência, logo os recursos sobre condenações costumam ter efeito suspensivo e a pena de prisão só pode ser executada quando transita em julgado.
Contudo, a decisão tomada no dia 23 de setembro pela juíza Tânia Loureiro Gomes num dos três processos do caso BPP que ainda não transitaram em julgado comprova que algo mais poderia ser feito. Explicando: mesmo num processo com pena de prisão pendente mas que ainda tem recursos pendentes, a magistrada quis — porque podia fazê-lo — alterar a medida de coação de Rendeiro por promoção do Ministério Público, daí que o tenha notificado para se apresentar em tribunal na próxima 6.ª feira.
A questão que se coloca é simples: haveria fundamento legal para tomar esta decisão mais cedo?
Diversas fontes judiciais alertaram o Observador nos últimos meses para o perigo de fuga, atendendo que João Rendeiro é casado, não tem filhos nem família direta próxima. E continuava a atacar a Justiça e a não assumir os erros que cometeu (como aconteceu na entrevista à TVI aquando do lançamento do seu livro sobre o processo BPP em abril último.
Pouco antes do trânsito em julgado também não era possível mudar as medidas de coação?
Vamos concentrar-nos no processo em que a pena de prisão de cinco anos e oito meses já transitou em julgado. Depois de ter sido condenado a essa pena de prisão efetiva em julho de 2020, João Rendeiro viu o Supremo Tribunal de Justiça recusar admitir o seu recurso em janeiro de 2021 e, seis meses depois, foi a vez do Tribunal Constitucional (TC) decidir rejeitar liminarmente o seu recurso. O ex-banqueiro anda reclamou para o plenário do TC, mas não conseguiu resultado diferente.
Podia ter sido feito algo durante este processo? De acordo com várias fontes judiciais, o Constitucional poderia ter mudado oficiosamente o efeito do recurso apresentado no primeiro trimestre de 2021 de suspensivo para devolutivo, o que poderia ter levado à emissão de mandados de condução à prisão para cumprimento da pena. Certo é, contudo, que esta tese não é unânime.
E agora? É possível capturar João Rendeiro?
Vamos regressar ao princípio. Como João Rendeiro confirmou num comunicado publicado durante a madrugada desta quarta-feira no seu site pessoal que não cumprirá a ordem judicial de se apresentar na próxima sexta-feira no Tribunal Judicial de Lisboa, o Ministério Público poderá promover a prisão preventiva, cabendo a decisão final à juíza Tânia Loureiro Gomes do Tribunal Judicial de Lisboa.
Tal promoção até pode ser feita já esta quarta-feira, podendo a juíza deferir a mesma e emitir os respetivos mandados de captura europeu e internacional, de forma a que sejam acionados os mecanismos de cooperação internacionais para deter João Rendeiro.
Desconhece-se, para já, qual o país em que João Rendeiro está a viver. O Observador sabe que o empresário está num país não europeu e sem acordo de extradição com Portugal — o que complica a sua detenção. A questão está no facto de, uma vez acionados os mecanismos de cooperação internacional da Europol e da Interpol, o seu nome ficar na lista internacional dos foragidos à justiça. Logo, sempre que entrar num aeroporto internacional de um país que colabore com a Europol ou Interpol, Rendeiro poderá ser detido.
Assim sendo, são muito poucos os países para os quais João Rendeiro poderá viajar.
Curiosamente, e com a exceção de João Vale e Azevedo, os restantes casos referidos no início desta peça culminaram com o regresso de todos fugitivos a Portugal. Uns para serem julgados com diferentes resultados no final, outros para cumprirem pena efetiva de prisão.
O que acontecerá a João Rendeiro?