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O estalar das agulhas a perfurarem os tecidos, o roçar das linhas a cruzarem os panos e os motores das máquinas de costura dão ritmo ao guarda-roupa do Cirque du Soleil. A noite anterior foi de estreia para o espetáculo “Ovo” em Bordéus, uma criação que leva o público para dentro de uma colónia de insetos e que chega a Lisboa a 3 de janeiro. Entre fatos e chapéus, pincéis e batons, sapatos e rolos de linha, o guarda-roupa do maior circo do mundo é feito de mil peças que precisam de ser transportadas de país para país, às vezes entre continentes, em apenas três dias. O Cirque du Soleil é como um caracol que anda com a casa às costas. Mas à velocidade de um besouro.
Um ano e meio a estudar bichos ao microscópio
Há uma nuvem de pó brilhante rosa a flutuar por cima das gavetas com a maquilhagem e umas missangas perdidas debaixo da cadeira de Mar Gonzalez Fernandes, chefe do guarda-roupa do espetáculo “Ovo” há um ano. Mar tenta enfiar uma touca azul ornamentada com lantejoulas na cabeça de um artista que em breve se vai estrear no palco do Cirque du Soleil para interpretar uma libelinha. Cada um dos fatos tem tantos pormenores que demorou ano e meio a ser criado, recorda Mar: “Os tecidos são especialmente estudados para cada personagem. Não nos limitamos a imitar a morfologia do bicho. Quem criou estes fatos estudou-os ao microscópio e simulou cada detalhe e cada textura nos tecidos dos figurinos”.
Todas as manhãs, Mar e a equipa que a acompanha, composta por duas costureiras do Cirque du Soleil e outras duas contratadas em cada cidade por onde o espetáculo passa, fazem uma vistoria aos armários do guarda-roupa. Ali estão “as maiores obras de arte do Cirque du Soleil”, adjetiva Mar: são cem fatos e cem pares de sapatos, dois exemplares para cada um dos 50 artistas que compõem o “Ovo”. Todos são adaptados às exigências dos atores, que precisam que os figurinos assentem como uma luva para fazerem piruetas vertiginosas e contorcionismos arrepiantes. Por exemplo, antes os fatos dos grilos, que protagonizam os números com trampolins, eram mais rígidos. Todos tiveram de ser trocados por materiais mais flexíveis que lhes permitisse saltar até três vezes o tamanho de um humano. Disso depende o perfecionismo do espetáculo com o carimbo Cirque du Soleil. E disso depende também a vida de quem trabalha para ele.
O dia a dia de Mar é passado com um dedal de metal e uma pasta preta cheia de micas nas mãos. O indicador, desgastado pelas linhas, vai folheando os desenhos que estão lá dentro e que ilustram a lápis de cor todas as personagem que compõem o espetáculo “Ovo”. Umas gravuras fazem lembrar a criatura anfíbia humanóide que Guillermo del Toro criou para o filme “A Forma da Água”, outros têm mais a candura de um filme da Disney. Por mais delicados que estes fatos sejam — uns são feitos de tafetá azul com tons de verde, outros de lycra branca e preta — todos podem ser lavados nas cinco máquinas em constante funcionamento nas traseiras da arena. Depois são secos nas outras cinco máquinas ou, se estiverem ocupadas, com ventoinhas. Mas todos são trocados a cada cinco ou seis meses para garantir que os tecidos nunca se desgastam.
As máquinas de lavar e secar roupa e as ventoinhas ficam todas nas traseiras da arena por onde o espetáculo “Ovo” passa — por cá vai ser no Altice Arena, em Lisboa. Para colocar a atuação na estrada são precisas 200 pessoas: são 50 artistas, 25 técnicos, 25 funcionários do Cirque du Soleil e mais 100 pessoas contratadas localmente para reforçar as nove equipas que compõem o espetáculo. E todas utilizam essas máquinas. É daqui que vem “o maior drama do Cirque du Soleil”: não há arrufos nos bastidores, não há problemas amorosos nem histórias de escárnio e maldizer. Garantem-nos os próprios funcionários que só há um motivo capaz de fragilizar relações no mundo do Cirque du Soleil: quando alguém não cumpre o horário estabelecido para cada uma das máquinas de lavar roupa.
Oito quilos de carne para alimentar 200 pessoas
Enquanto a roupa esvoaça ao sabor das hélices das ventoinhas, ali mesmo ao lado está a dispensa do Cirque du Soleil. Tem todos os tipos de enlatados, todos os tipos de verduras e várias caixas de laranjas e maçãs. Também a comida costuma viajar com as equipas dos espetáculos: o Cirque du Soleil tem um fornecedor que anda na estrada juntamente com os artistas para garantir que todos os alimentos chegam à cozinha. Mas há comida que é comprada nos mercados locais, como a carne, o peixe e alguma fruta.
Essa comida é toda preparada por uma equipa de cinco cozinheiros que quando estão a servir o almoço já estão a cortar cebolas e a descascar batatas para o jantar. Têm de estar sempre “uma refeição mais à frente”, conta-nos o chef, de mangas arregaçadas, enquanto comemos os peitos de frango grelhados com molho de manga que ele preparou para o almoço daquele dia. Em média, em cada refeição usam-se oito quilos de carne, oito quilos de peixe e seis caixas de laranjas, por exemplo: “Fazemos duas opções de carne, duas opções de peixe, duas opções vegetarianas e três tipos de saladas diferentes”.
São tantas as opções que quem entra na cozinha do Cirque du Soleil não precisa de se preocupar com a falta de alternativa para cumprir o regime alimentar que segue. “Por exemplo, temos uma artista que é alérgica a uma especiaria. Não fazemos uma opção especial para ela: essa especiaria simplesmente não entra na nossa cozinha”, afirma o chef ao Observador. De resto, cada prato vai para a mesa com uma etiqueta que discrimina os ingredientes usados durante a confeção. Assim, se alguém responder mal a algum deles, fica a saber que não pode comer aquele prato.
Máquinas de lavar, ventoinhas, toneladas de comida enlatada, baixela, material de ginásio, mil peças de guarda-roupa, mesas de matraquilhos, trampolins, quilómetros de cabos, colchões de treino, paredes de escalada, material de som e de imagem, cenários, as malas de cada um dos funcionários do circo. Do mais pequeno parafuso de um trapézio à mais volumosa peça de cenário construída para o espetáculo, tudo — literalmente tudo — viaja com o Cirque du Soleil na tour mundial dos espetáculos. São precisas 12 horas para o montar e três horas para o desmontar. E tudo anda de um lado para o outro em 25 a 60 camiões TIR, dependendo do local onde o espetáculo vai ser feito, em arena ou em tenda. É assim que um único espetáculo anda de cidade em cidade. Para perceber a real dimensão de todos as apresentações do Cirque du Soleil espalhados pelo mundo, tem de multiplicar tudo isto por 18. E juntar os mil funcionários que estão em Montréal, sede da companhia, a coordenar os espetáculos fixos do Canadá e a garantir que todos os outros prosseguem sobre rodas.
Apesar da tranquilidade nos bastidores do Cirque du Soleil, a rotina é frenética e preparada com muitos meses de antecedência. Neste momento, todos os aspetos logísticos de todos os espetáculos do circo estão planeados até ao fim de 2019. Segundas e terças-feiras são os dias de folga para os artistas, mas à terça os camiões — que podem chegar a ser 60 — chegam aos locais das próximas atuações e tudo começa a ser montado. O palco é preparado no mínimo de tempo possível e os cabos de que dependem alguns números — e de que depende também a vida de alguns artistas — são verificados pelo menos uma vez por mês.
À quarta-feira os artistas regressam ao trabalho e fazem a “validação”, que serve para se habituarem ao novo local de trabalho e para se certificarem que têm todo o material de que precisam. Demoram duas horas a vestirem-se e a fazerem a maquilhagem de cada personagem. À noite, faz-se o primeiro espetáculo, que depois fica na cidade até domingo à noite. Por norma, cada apresentação do Cirque du Soleil fica uma semana em cada cidade da tour. Em Lisboa, “Ovo” vai ficar durante dez dias, de 3 a 13 de janeiro. Mas os artistas chegam a Portugal a tempo da passagem de ano.
O dicionário da “algaraviada”, a língua do Cirque du Soleil
O espetáculo “Ovo” surgiu em 2009 por altura do 50.º aniversário do Cirque du Soleil. “Queríamos fazer alguma coisa que fosse ambientalmente amigável. Havia muitas ideias, mas decidimos literalmente manter os pés na Terra e pensar: que mundo podemos criar e que esteja próximo do planeta Terra? Insetos, claro. O Cirque sempre se assumiu como uma empresa preocupada com o ambiente e com uma mensagem social positiva. Quando o espetáculo foi criado, queríamos que transmitisse uma mensagem de inclusão, de como as pessoas são verdadeiramente todas iguais”, descreve Tim Bennett, diretor artístico do circo, ao Observador.
Foram precisos dois anos para montar este espetáculo e mesmo assim, quase dez anos depois de ter sido estreado nos palcos de todo o mundo, continua a sofrer atualizações. Ao longo desse tempo, os profissionais do circo visitam jardins zoológicos e insetários — e depois escrevem relatórios distribuídos por todos os artistas — para aperfeiçoarem os números do circo. “Fomos estudar os grilos e soubemos que conseguiam saltar a uma altura 800 vezes maior que o tamanho deles. Por isso fomos buscar os nossos melhores acrobatas nos saltos em altura, que também conseguem saltar a alturas muito grandes. São os nossos ginastas de trampolim, os que fazem escalada, por exemplo. Passámos muito tempo a fazer isto”, exemplifica Tim Bennett.
Esses estudos do Cirque du Soleil não se limitam a servir de apoio à criação dos fatos nem à invenção dos números acrobáticos. Servem também para criar uma linguagem própria para o espetáculo. Os criadores de “Ovo” passaram longos meses a gravar sons de insetos, tanto em estado selvagem como dentro de zoológicos, e depois distribuíram os ficheiros áudio pelos palhaços. São eles os responsáveis por criar a linguagem da atuação, que mistura não só palavras de várias línguas — os artistas costumam incorporar palavras do país onde estão para criar proximidade com o público — mas também os sons emitidos pelos próprios bichos: “Houve uma pesquisa exaustiva visual e auditiva durante um ano e meio para estudar os insetos retratados no espetáculo. Passámos esse tempo todo a visitar jardins zoológicos no Canadá e a ver vídeos de pesquisas científicas, para determinar qual seria a melhor linguagem corporal e vocal para cada personagem”, explica o diretor criativo.
Dois dos três responsáveis pela criação dessa língua foi Neiva Nascimento, a artista brasileira que protagoniza o número dos palhaços na pele da joaninha “Lady Bug”, e Jan Dutler, que interpreta uma mosca que se apaixona por ela. A outra personagem é interpretada por Gerald Regitschnig, na pele de “Master Flipo”, um escaravelho que coordena a colónia de insetos. Os três trabalharam em conjunto para combinar o tipo de comunicação que iam ter em palco. “Não podemos falar, só podemos imitar sons. Criámos uma linguagem própria, mas não é um texto. É um improviso que depende das emoções do inseto”, resume Neiva.
A esta linguagem os três palhaços chamaram algaraviada, que é qualquer língua incompreensível porque mistura vários idiomas diferentes com vários sons não-humanos. No entanto, tem alguns significados fixos: a mosca de Jan Dutler trata-se a ela própria por “Iazubitz” e a joaninha Lady Bug chama-se “Chenuzibuzi” em algaraviada, especifica o palhaço por detrás da mosca. Por exemplo, quando está zangada, a mosca pode dizer ‘bizuiót’, ‘tzabótz’ ou ‘tsapalótz’. E quando está feliz, a joaninha pode dizer ‘passessa’, ‘prrrrr’ ou ‘siquidi’. É “um código criado entre os palhaços” sem qualquer intromissão da direção, garante Tim Bennett: “O Cirque du Soleil exige um perfecionismo fulcral para manter o nível do espetáculo e para garantir a segurança dos artistas. Mas os palhaços têm mais espaço para o improviso, por isso damos-lhes essa liberdade”.
“Continuas gorda? Ótimo!”. Como entrar no maior circo?
Vestida de preto da cabeça aos pés, com um rabo de cavalo na cabeça, Neiva Nascimento atravessa o palco inteiro do Cirque du Soleil com a mesma postura com que incarna “Lady Bug”. É ágil e extrovertida, ri-se até para quem não conhece porque “os brasileiros são mesmo assim” e até com os trapezistas russos, com quem não consegue falar, lá arranja formas de comunicar através de sorrisos. Está em casa em vários sentidos. Primeiro porque “Ovo” é “um espetáculo colorido, enérgico e absurdo sobre uma colónia de insetos”, adjetiva o diretor criativo. O ritmo é marcado pelas cantorias de outra artista brasileira, Júlia Barros, e pelos ritmos da bossa nova e do funk. E depois porque o berço dela é um circo tradicional: os pais eram palhaços, trapezistas e malabaristas.
Neiva Nascimento precisou de esperar uma década para pisar um palco do Cirque du Soleil, contabiliza ela ao Observador. Passou anos a viajar pelo Brasil no circo onde os pais trabalhavam, mas em 1984 parou no Rio de Janeiro, onde agora mora, para entrar na Escola Nacional de Circo. O pai achava que era melhor para ela e para os irmãos assentarem numa cidade e estudarem, mesmo que fosse para regressar ao circo. Foi assim até 1990, ano em que começou a trabalhar por vários circos internacionais que passavam pelo Brasil. Só em 2009 é que saiu do país natal, ano em que fez a primeira viagem internacional para a Europa através de um circo que fazia entretenimento num parque temático em Estocolmo.
Nessa altura, Neiva já sonhava trabalhar no maior circo do mundo. A primeira audição que fez para o Cirque du Soleil foi em 2004: “O meu número foi de trapezista com uma dança do jongo, que é uma dança típica dos negros africanos, uma prima do samba. Fui com uma saia comprida, mas depois tirava a saia e ia para o trapézio fazer uns movimentos que não eram muito comuns. Fazia caretas de cada vez que punha o pé atrás do rosto. Eles gostaram dessa brincadeira”, garante ela.
O responsável pela audição disse-lhe: ‘Olha, gostámos muito de ti, mas para personagem’“. Pediram que aguardasse por um telefonema e Neiva aguardou meses a fio. Fez outra audição em 2006, pediram-lhe que aguardasse e ela aguardou. Fez mais uma audição em 2011, voltaram-lhe a pedir que aguardasse e ela voltou a aguardar. Aguardou até janeiro de 2014. Só nessa época, aos quase 39 anos, é que recebeu o telefonema que lhe tinha sido prometido em 2009. Precisavam de uma substituta para a palhaça que interpretava a “Lady Bug” na altura. “Eles ligaram-me e disseram: ‘Tu continuas gorda?’. E eu disse: ‘Continuo’. ‘Ótimo!’, disseram eles”.
Essa era parte fundamental para garantir a entrada de Neiva Nascimento no Cirque du Soleil. “A atriz que fizesse de Lady Bug tinha de ser redonda. Tanto que quando me fizeram uma nova entrevista presencial para nos conhecermos, a responsável pela audição olhou para mim e disse: ‘Estás ótima, mas precisas de engordar um pouco mais’”. Neiva assume que o facto de o Cirque du Soleil não ter um padrão de beleza fixo lhe agradou: “Há brancos e pretos, pessoas mais velhas e mais novas, anões. Há espaço para toda a gente. O que interessa é o talento”, concretiza.
Mas, de uma maneira ou de outra, confessa não ser fácil ter o corpo debaixo do olhar da direção artística: “Não posso emagrecer. Isso incomoda-me um bocadinho porque a personagem da Lady Bug é muito ágil. Tem de correr, tem de andar rápido e é atrevida. Quando me sinto muito pesada também perco alguma dessa agilidade. Já tive de conversar com os diretores criativos e pedir para emagrecer cinco a oito quilos para ficar mais equilibrada. Eles disseram que sim porque a própria roupa ajuda a dar a ideia de volume. Tem uns pneus feitos de espuma para dar volume à barriga. Quando perco peso, muitas vezes não noto, mas no guarda-roupa reparam logo e avisam os supervisores”, explica Neiva ao Observador.
Entrar no Cirque du Soleil não é apenas uma questão de talento. Também exige “uma dose de sorte”, assume Heather Reilly, gestora da companhia: “Há muitos bons e muitos ótimos artistas espalhados pelo mundo. Para nós, o segredo está essencialmente no timing e em agarrar as oportunidades. Normalmente pensamos nas capacidades que essas pessoas têm: se fazem alguma coisa que ainda não temos no nosso espetáculo, se criam alguma coisa verdadeiramente única, por exemplo. Isto é tudo sobre ser a pessoa certa no momento certo”, desvenda ela.
E onde é que esses momentos surgem? O Cirque du Soleil faz audiências por todo o mundo em todas as categorias artísticas. Às vezes podem ser presenciais, outras podem ser feitas online ou através de gravações vídeo enviadas posteriormente aos responsáveis pelo recrutamento. Basta enviar um vídeo, uma gravação ou um currículo para o Cirque du Soleil para que um artista entre para a base de dados da companhia e depois seja chamado se encaixar em algum espetáculo. Mas há quem tenha mais probabilidades de entrar, alerta Heather: “Mais depressa contratamos um artista conhecedor de várias disciplinas do que um que seja muito especializado numa matéria, mas mediano nas outras”.
Essa odisseia foi vivida por Júlia Barros, a cantora escolhida para o espetáculo “Ovo” que, embora seja brasileira, mora em Lisboa desde há um ano porque a cidade é “muito parecida com Salvador”. A caminha dela em direção ao Cirque du Soleil começou em 2011: “Convidavam-me a toda a hora para fazer audições, mas tinha sempre de ser pessoalmente e eram sempre muito longe. Era em Austin, Nova Iorque, Madrid. Não parecia a oportunidade certa porque tinha de pagar muito dinheiro para fazer uma audição sem uma garantia. Tive de esperar uma oportunidade melhor“, recorda Júlia ao Observador.
Enquanto esperava por essa oportunidade, Júlia Barros conquistou os holofotes brasileiros ao entrar no concurso de talentos The Voice. Estávamos em 2013 quando as quatro cadeiras se viraram para ela. Não venceu, mas continuou a fazer espetáculos e a dar concertos. Até que, finalmente, o telefone tocou com uma oportunidade a bordo: “Chamaram-me para fazer uma audição para o Ovo, mas desta vez disseram: ‘Júlia, sabemos que é difícil para ti deslocares-te para fazer a audição, então pensámos que poderias fazer uma audição online‘. Eu disse: ‘Finalmente, essa é a minha oportunidade, pôxa!‘”. A oportunidade veio para ficar: Júlia Barros é desde há três anos a intérprete do espetáculo “Ovo”. É a única cantora brasileira do circo desde há 35 anos e uma das únicas cinco pessoas vindas do Brasil a trabalhar ali. Mais do que isso: estreou-se no Cirque du Soleil numa atuação criada de raiz pela primeira diretora mulher, Deborah Colker, natural do Rio de Janeiro.
E quando a voz falhar? O que acontece quando a idade pesar e o corpo não obedecer como antes? Ninguém tem medo do que vai acontecer nessa altura. O Cirque du Soleil certifica-se que o medo da velhice não assombra estes artistas e tem um programa educativo que comparticipa, por vezes na totalidade, os estudos dos artistas. Há contorcionista e acrobatas a tirarem cursos de direito, de contabilidade ou na área de saúde. Alguns, além do trabalho que fazem no palco, passam algumas horas por dia junto dos funcionários de gestão e administração para um dia passarem a trabalhar nessas áreas. Há sempre um futuro depois do tempo dos palcos.
É para isso que Aruna Bataaz se tem preparado. A contorcionista faz parte da terceira geração de profissionais de circo da família: “Quando era mais pequena, ia ver os espetáculos com o meu pai e com o meu avô e ficava encantada com os contorcionista. Queria ser como eles e o meu pai treinou-me para isso. Mais tarde, quando fiz 18 ou 19 anos, quis parar. Já trabalhava profissionalmente desde os 9 anos e achava que queria ter uma vida normal”, conta ela ao Observador. Aruna começou a estudar Direito, mas os amigos de faculdade incentivaram-na a enviar um currículo para o Cirque du Soleil. Ela mandou, julgando que “não ia dar em nada”. Mas deu: ao fim de oito meses foi chamada. E trabalha no circo desde então, tinha ela 21 anos.
Agora tem 30 e diz que já nota a diferença na condição física. “Obviamente, quando era mais nova podia sair à noite e voltar para um espetáculo no dia seguinte que tudo me corria pelo melhor. Agora isso já não acontece”, confessa ela ao Observador. Mas se esses sinais começam a surgir, outros positivos também vêm ao de cima: “Tenho muito mais consciência de mim mesma, do meu corpo e da minha dieta. Sei como me recuperar e deixei de ser tão inconsciente em relação ao meu próprio corpo. Sou mais forte e madura agora, mesmo que antes fosse mais flexível”, afirma. De resto, confia na passagem do tempo. Sabe que o organismo lhe vai dar sinais de que está a chegar a altura de parar. Nessa altura, pensa no que fazer. Talvez dar aulas, imagina ela.
O treino entre pó de magnésio e suplementos de vitamina D
Mesmo por trás do palco onde a libelinha exercita os movimentos dos próximos espetáculos — agora está numa pausa, a ser assistida pela médica, porque bateu com a cabeça num ferro –, os acrobatas russos concentram-se para o treino. Têm calções azuis, tops de manga à cava vestidos, umas sapatilhas pretas e sacodem as mãos uma na outra para espalhar pó de magnésio, não vá a força, ou a inércia, falhar. Passam duas horas a equilibrarem-se em cima de fios com milímetros de espessura, a testarem a gravidade entre dois postes e a renderem-se aos tapetes azuis se um único músculo cede à fraqueza. Saem de lá com feridas nos nós dos dedos, bolhas nas palmas da mão e o suor a escorrer-lhes pelo rosto. E riem-se.
Todos os treinos acontecem depois de uma cortina preta que separa os técnicos e a orquestra dos bastidores do Cirque du Soleil. A sala onde os artistas passam a maior parte do tempo é estreita, mas comprida, e não tem qualquer luz natural. Passam tanto tempo fechados entre quatro paredes que as análises médicas feitas ainda este ano mostraram que a maior parte deles — um número acima dos 90% — tinha deficiência de vitamina D e foram obrigados a tomar suplementos por não apanharem sol suficiente.
Ao fundo está uma televisão grande com as gravações dos espetáculos e dos treinos e um sofá onde os artistas se podem sentar para analisar as performances. No resto do espaço acontecem os treinos, rotativamente, normalmente em intervalos de duas horas. Ali perto estão içadas as bandeiras dos 24 país de onde veem os artistas e os funcionários do Cirque. E mais ao fundo estão uns trampolins: alguns leem em cima deles, outros jogam matraquilhos ao pé dos camarins, que desanuviam a mente; outros ainda dormem e trocam beijos discretos por debaixo dele, refugiados da luz dos holofotes.
Num espetáculo dedicado aos insetos, atrás do palco não há entre os artistas uma única barata tonta. Toda a gente chegou à arena o mais tardar ao meio-dia, depois de passear pela cidade ou de uma sessão de ginásio. Depois de almoço, todos se encontram com os colegas de espetáculo, falam sobre os erros e as vitórias da noite anterior e passam uma hora a treinar. A seguir, cada um pode treinar individualmente ou participar numa das atividades preparadas pelos outros colegas: há contorcionistas que dão aulas de pilates, artistas que ensinam outras línguas e formações em áreas relacionadas com a criatividade. Ou então podem aproveitar as legs, uma parte do horário que se destina a receber a família dos artistas durante mais ou menos duas semanas.
Aqui reina a tranquilidade e a disciplina. Só duas coisas podem perturbar o silêncio dos bastidores do Cirque du Soleil: a música enérgica que chega do palco, onde os trampolinistas treinam os passos mais arriscados do espetáculo “Ovo”, ou os gritos de ordem, curtos e estridentes, da treinadora do grupo de chinesas. São seis e não sabem falar inglês. Estão deitadas com as costas nos colchões azuis, braços pregados ao chão e as pernas esticadas no ar. São os pés, e apenas os pés, que se mexem frenética e coordenadamente para fazerem girar bolas com 9 kg pintados para imitarem kiwis. “Yí, èr, sān, zhuǎn wān! Yí, èr, sān, zhuǎn wān!” — “Um, dois, três, virar! Um, dois, três, virar!” –, grita a treinadora.
Tudo aqui funciona como uma família, garante Heather, que tem em mãos a vida de 200 pessoas: “Como viajamos juntos, vivemos juntos e trabalhamos juntos, somos obrigados a tornarmo-nos uma família. Como em todas as famílias, temos as nossas lutas, também há a tia louca e o tio maluco. Mas as pessoas que levam esta vida querem realmente estar aqui e isso é um passo enorme em frente. Isto não é para toda a gente. Algumas pessoas acham que é um sonho, mas quando chegam aqui percebem que têm mesmo de estar sempre longe da família de sangue e são obrigados a arranjar um substituto“, conta ela ao Observador.
Lidar com dezenas de pessoas vindas de dezenas de países implica estar atento à realidade de dezenas de culturas. Heather garante que está sempre de calendário em punho para satisfazer todos os feriados nacionais, celebrações e aniversários de toda a gente. E toda a gente festeja os dias especiais mais comuns: “Há o Natal que acontece a 25 de dezembro, mas depois há o Natal que só acontece a 6 de janeiro. Como uma data é importante para uns e outra data é importante para outros, faz-se festa nos dois. Com o Dia de Ação de Graças é a mesma coisa: no Canadá é celebrado em outubro, mas nos Estados Unidos é em novembro. Por isso fazemos duas festas também”. E se essas datas calharem em dias de espetáculo? Festeja-se à mesma. Ainda no ano passado, a ceia de Natal foi feita no intervalo entre dois espetáculos em mesas corridas por baixo do palco. E havia iguarias típicas de todos os países.
É este o mundo que chega a Portugal já no início do próximo ano. Depois de passar por Bordéus, o espetáculo “Ovo” seguiu para Toulouse, Montpellier e Estrasburgo. Passou por Nantes e a seguir ainda vai estar na Corunha. Só depois disso é que o Cirque du Soleil aterra em Lisboa para passar por cá a noite de Ano Novo. “Ovo” estreia-se no Altice Arena a 3 de janeiro e fica por cá até dia 13. O preço dos bilhetes varia entre os 40 euros e os 75 euros, mas há um desconto de 20% para crianças com menos de 12 anos nas sessões entre terça e quinta-feira e na matiné de sexta.
O Observador viajou a convite da Everything is New